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Na última postagem, esqueci de mencionar uma hipótese “engraçada” (na medida em que a discriminação étnica, racial ou cromato-cutânea pode ser engraçada…) Há males que vêm para o bem, enfim. Meu esquecimento vai servir de gancho para encadear um texto no outro. Não que isso seja indispensável, mas há puristas que não passam sem a elegância do gancho e vão certamente ficar aliviados. Pois bem, à hipótese. Vamos supor que as previsões se confirmem e o carismático Obama, candidato preferido de dez entre dez não-obscurantistas, seja eleito presidente dos EUA na próxima terça-feira. Que será do eufemismo etno-geográfico dos europeus? Seria engraçado e significativo se resolvessem excluir “o império” da idéia de “ocidente”…
Mas isso não vai acontecer. Mais lógico seria esperar declarações, mesmo apologéticas, dando conta de que um “não-ocidental” governa a mais rica nação do Ocidente. Não-ocidental… logo Obama, que fez a vida em Chicago, como Al Capone. Porém, a língua está bem aquém da lógica e o discurso europeu não tem segredo. Eles dirão, maravilhados: “Isso é excelente! Um negro na presidência! A civilização (ocidental) evoluiu muito… É um exemplo para o resto do planeta!” E, como a língua não leu Tarski, nem Gödel, duvido seriamente que algum ocidental considere contraditório o fato de ainda usar a palavra “ocidental” para se referir à gente de pele branca.
Mas chega de Europa! Ao mencionar os Estados Unidos, chegamos a um país cuja “questão racial” é mais próxima da nossa, uma óbvia conseqüência do fenômeno comum da escravidão, a que se soma, embora em escalas bem diferentes, a chegada de imigrantes do mundo inteiro. Lá, como no Brasil, associaram-se, durante gerações e gerações, certos conceitos de valor às peles branca e negra (e “vermelha”, aliás), que determinam profundamente o modo de ser nacional (o ethos, podemos dizer). Obama é um exemplo particularmente curioso da forma como seu país retrata a si mesmo. Se um indivíduo de pai negro e mãe branca entra imediatamente na categoria “negro”, sem maiores considerações sobre a mestiçagem, só posso concluir que o termo “branco” funciona como uma espécie de núcleo lógico para a classificação racial, de forma que tudo o mais é associado ao “outro”. Assim, à exceção do estritamente branco, toda a gama de porcentagem genética de outro grupo é automaticamente encaixada, por inteiro, nessa outra categoria (chamada de “raça” por ranço ideológico, aliás). Não é uma escolha consciente. É a maneira como as populações vêem a si mesmas e às demais. Um resquício lingüístico, mas difícil de identificar e, por extensão, de combater.
Dos EUA, passemos, finalmente, ao Brasil. Como se manifesta esse fenômeno vergonhoso e renitente da discriminação étnica camuflada pela língua? Não é como na Europa, nem como nos EUA, e esse simples fato é suficiente para nutrir a velha falácia de que não existe preconceito (de cor) no Brasil. Porém, se essa idéia falsa subsiste há tanto tempo, ela só pode ser sintoma de alguma outra coisa. E é onde vamos encontrar o pulo do gato, nossa particularidade embaraçosa.
Certo está que a divisão estanque entre “branco” e “negro”, que “funciona” tão bem no contexto americano e se escamoteia com tamanha eficiência no desvio terminológico dos europeus, enfrenta uma dificuldade a mais para se sustentar no Brasil. Nossas peles têm muitos matizes, nosso sangue é o ápice da fusão, o sol que amamos muda sem trégua a cara que apresentamos. Mesmo assim, o problema existe. Mas existe de uma maneira muito esquisita, tipicamente nossa. Infinitamente mais do que nas outras terras que usamos como exemplo, é dificílimo distinguir, em cada caso e mesmo no quadro geral, até que ponto um ato (ou uma situação) de discriminação é racial ou social. É por isso que tantas vezes, com a maior boa vontade, o brasileiro se deixa cair na esparrela de que a totalidade da discriminação que existe no país é da natureza social, puramente social, sem um pingo de questão racial envolvida. E, por mais conscientes que estejamos do erro desse tipo de concepção, como nem tudo em nossa mente é consciência, acabamos todos caindo, mais cedo ou mais tarde. Isso acontece porque a confusão se forma de maneira sediciosa e notavelmente eficiente, que envolve nossa própria faculdade cognitiva, a tal ponto que a cor de uma pessoa pode variar enormemente de acordo com sua condição social. É quase como se, no Brasil, o dinheiro tivesse o poder de alterar estruturas genéticas. Seria muito interessante, do ponto de vista fenomenológico, se não fosse terrível, do ponto de vista humano. Mas explico.
Para isso, vou precisar evocar um episódio que se passou comigo. Antes que venham me dizer que é um caso isolado, já aviso que não é. Escolhi esse como exemplo porque foi o primeiro que vivi e, talvez por isso mesmo, considero paradigmático. Foi na casa de um amigo da escola. A certa altura do almoço, por algum motivo, o assunto passou a ser o problema do racismo. Eis um tema em que, naturalmente, a palavra “negro” dificilmente deixa de ser pronunciada. E, justamente, à sua primeira menção, o pai de meu amigo sugeriu, sussurrando, que falássemos todos mais baixo. À guisa de explicação, indicou com a cabeça a cozinha, onde, fora de nosso campo de visão, a doméstica preparava a sobremesa. No mesmo instante, meu amigo, um piadista incorrigível e um tanto imprudente, observou: “mas ela não é negra. Ela é marrom”.
Espero que a piada de mau gosto do garoto (hoje homem feito, claro) não lhe valha uma fatwa tardia. Minha intenção, na verdade, é chamar a atenção para as implicações do que ele disse. Do ponto de vista cromático, afinal de contas, ele até tinha razão; mas o importante é que, sem perceber, meu camarada deu azo a duas constatações fundamentais e sintomáticas. Em primeiro lugar, o tom da pele da moça estava longe de ser negro, como negra era a pele, por exemplo, de Milton Santos. Mas, até aí, nenhuma novidade. Estamos ainda no quadro do princípio que apontamos para o caso de Barack Obama: numa sociedade dominada pela idéia do branco (mesmo idealmente, por suposto), basta ser ligeiramente não-branco para entrar na categoria “negro”.
A verdadeira marca de nossa diferença em relação ao “modelo” americano, uma marca, pensando bem, talvez até mais grave, é a segunda constatação, essa absolutamente involuntária, de meu amigo. Ao final da refeição, percebi, não sem surpresa, que a pele da jovem na cozinha não só não era negra, como não era mais escura do que a de nenhum de meus anfitriões. Nem pai, nem mãe, nem filho engraçadinho. A imagem continua clara na minha lembrança: o momento em que ela veio servir a sobremesa. Postas lado a lado, a humilde contratada tinha a tez mais clara do que a de sua distinta contratante. Mesmo assim, que fenômeno, que horror, que vergonha, nada disso impediu que, na percepção imediata de todos nós, mesmo da própria doméstica, sentados à mesa estavam os “patrões brancos” e, de pé, a “empregada escurinha” (para usar um termo cínico, mas corrente).
Não era defeito em nossos olhos, não era uma incidência esquisita da luz. Ao longo dos anos, fui me dando conta de até que ponto nós somos condicionados a colar a percepção da cor ao estatuto do indivíduo na sociedade. Para justificar a crença atávica e, a princípio, involuntária na superioridade dos brancos, nosso aparelho cognitivo transforma automaticamente em branco quem nos parece superior, seja pela renda, pelo poder ou pelo que tenha produzido. O rico se sente mais claro do que alguém com o mesmo tom de pele, mas menos abonado. O pobre se sente mais escuro. E o mesmo vale para as relações mútuas. O processo tem lugar em nosso inconsciente.
Lembro de quando Fernando Henrique (o sociólogo, não o goleiro) afirmou de si próprio ser “mulatinho” (e ter um pé na cozinha), e da reação sarcástica da imprensa e dos comentários na rua. Contudo, não é mentira. Se fosse pedreiro ou frentista, com o mesmo tom de pele, no Brasil, ninguém o consideraria “branco”. Ele seria um “escurinho”, tanto quanto a doméstica de meu velho amigo. Mas ele não era frentista, nem pedreiro, era presidente do país. Logo, branco. Outro exemplo divertido é o tom de confidência, diria mesmo de transgressão, a cada vez que alguém escreve que Machado de Assis era mulato. Como se todas as fotografias que ainda temos não o deixassem evidente. Mas o fato de ser um de nossos principais autores (senão o principal) desbota as imagens e transforma o bruxo num nórdico, a tal ponto que apontar a mestiçagem, que seu rosto não esconde, passa por exclamar que o rei está nu. São coisas do nosso Brasil.
É claro que há limites. Por exemplo, mais uma vez, o grande Milton Santos, que era negro, lutava pela causa negra e sempre foi visto como negro. Ainda bem, porque, afinal, qualquer coisa diferente disso indicaria que somos todos uns loucos. Este texto, cabe frisar, se refere aos “casos intermediários”, aqueles em que é possível manejar os fatos para que caibam em nossa interpretação do mundo. Foi para isso que serviu a comparação com os EUA e a Europa. Se, para os americanos, o branco é um conceito puro, que rejeita qualquer associação, qualquer mistura, no nosso país o branco assimila o que lhe parece bom nas ocorrências de conceitos concorrentes, deixando para os demais apenas o bagaço. O resultado é uma tendência perniciosa a considerar nosso preconceito menor, quando ele, na realidade, é apenas diferente, mas tão condenável e atrasado quanto qualquer outro.
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