Um dia alguém me disse que, editando imagens, a gente se sente um artista. Quem foi, não lembro, sei é que mentiu. Há mais de ano venho aprendendo, ainda grosseiramente, a manipular minhas fotos. Mando o programa reforçar as cores, reduzir o brilho, aumentar o contraste. Corto o que não interessa, cubro o feio com belezas importadas de outras figuras, de chapas batidas meses mais cedo, em outros lugares, cidades que nem falam a mesma língua. Misturo, retoco, distorço, enfim, brinco um bocado. Mas… que artista, que nada, eu me sinto é como criança.
Quando pequeno, eu desenhava absurdos. Queria resumir no mesmo enquadramento todos os capítulos de uma história que se ia criando ao instante, sem roteiro, no cruzamento caótico das imaginações múltiplas. Alguém que acompanhasse a inquietude dos meus dedos, tiranizando o lápis e as canetinhas coloridas, se desviasse a atenção por um segundo, voltaria surpreso. Da folha em branco teria resultado uma loucura de linhas e círculos, suja, pesada, grossa, incompreensível. Para mim, uma epopéia intergalática ou coisa que o valha. Para qualquer outro, garranchos e só. Mas eu não me incomodava. Enquanto a idade e a escola não metiam semáforos nessas encruzilhadas, eu me divertia com a composição das quimeras que, querendo abraçar a narrativa, a figuração e a temporalidade, acabavam sem se agarrar nenhum.
Pequeno, eu também dizia absurdos. Tanto quanto os desenhava e até mais. Pensava que a fantasia valia pelo real, agia em intermediário entre um e outro, convencido de que meu universo particular se bastava, era completo já, com tão poucos anos de formação (mas, para mim, eram todos os anos que pudesse ter havido). Os disparates que eu dizia, se punham em gargalhadas os grandes da família, não carregavam a carga pejorativa da mentira. Pelo menos não como eu a entendia, o crime das supremas punições. Não, eram inocentes idéias, que se vinham organizar como num quadro de avisos, substitutas de um mundo que se dava a perceber rápido demais, desordenado, sem interesse, feinho, muito opaco para merecer meu apego.
Agora, crescido (em algumas coisas mais, em outras, nem tanto), eis que me flagro entusiasmado, como uma criança, diante de um computador. À minha frente, uma foto qualquer, tirada no meio de uma viagem ou de um passeio pela cidade. Alta é a chance de que já empunhasse a câmera com a idéia de fazer uns retoques mais tarde. Faço-os agora, o programa oferecendo três fileiras horizontais, mais duas verticais, com alterações que posso impor ao retângulo inocente. Imponha-as!, é o que parece exigir a máquina. Para ela, o golpe do obturador é sempre muito pouco, ele que já secciona, congela e falseia um segmento do universo. É imperativo, prossegue o computador, nesse diálogo delirante, fazer uso das minhas ferramentas!
E obedeço, como criança. Mas tento não exagerar: o resultado estético é tão importante quanto o técnico, porque dele será derivado o poder retórico. E não há retórica mais sediciosa que a da imagem, quando se passa por espontânea. Talvez seja aí que o artista exerce seu sarcasmo, com edição ou sem. O artista, seja qual for sua intenção, é um sarcástico porque, ao contrário da criança que só quer desvendar o mundo, ele busca a força da retórica. Sua segunda verdade, escudada na estética, tenta se esgueirar para dentro da primeira, desdobrá-la e multiplicá-la.
Acabo de descrever o artista como um sofista maquiavélico. Foi um erro. Passei por cima da beleza de seu trabalho, a investigação tátil dos materiais deste mundo. Comparei-o à criança, mas não o comparei ao adulto, seu verdadeiro concorrente. Aquele que, como a criança, diz do mundo disparates, apoiado em sua experiência do real. Com a diferença de que a criança gosta de seus disparates enquanto tais, não quer deles mais que a delícia da invenção. Já o adulto sustenta o edifício de suas verdades sobre a reconstrução que faz, sem querer, sem saber, do entorno. Chama de verdade algo que lembra, mas a memória não é fato, é imagem. Como a que vou trabalhando no editor, lentamente, até que corresponda ao ideal daquilo que retrata, bela e formatada.
O artista entrelaça à primeira verdade uma segunda, de sua lavra. E está em seu direito, pois que aquela primeira, a real, a dos fatos ou que assim se crê, não é feita da carne, do material deste mundo. Ela é composta de proposições e conceitos que, como os garranchos e os disparates das crianças, ocupam o lugar da bruma fluida de uma realidade muito imprecisa, vaga, confusa demais para as consciências maduras e orgulhosas de o ser. A primeira verdade, no fundo, no fundo, já não é nada mais do que uma reconstrução improvisada, que tenta se harmonizar com o mundo indizível, mas não consegue evitar os confrontos, sempre tão freqüentes.
É por isso que minha edição de imagens não aspira ao artista, mas também não atinge a criança. Retoquei o monumento de Genebra porque as cores estavam pálidas, debaixo do sol que não teve trabalho para ofuscar a objetiva, embora em mim não causasse o menor desconforto. Escondi uma enorme bola de futebol que, à força de celebrar a Eurocopa, vulgarizava o lago. Escolhi que uma determinada vista de Paris deveria ficar em preto-e-branco, porque desbotada e pálida estava minha alma no dia em que a registrei. Não foi fantasia, nem retórica. Foi falsidade ideológica, um estelionato cuja vítima é minha própria experiência.
Eis a essência da fraude. Contemplo minhas próprias fotografias em busca das emoções de tempos vividos. Mas as emoções que elas contêm estão todas nelas e em nenhum outro lugar. Evocam lembranças que não partem do passado, mas da imagem, só da imagem. Editadas, redobram seu poder de convencer meus olhos e ouvidos, como as mulheres que, belas e às lágrimas, nos dão a crer que as fazemos infelizes.
A imagem é mentirosa tanto quanto a palavra. Como quando digo a alguém que estou feliz ou que estou triste e entendem o que quero dizer, muito embora ignorem sempre de que é feita minha alegria, meu pesar. Mas a palavra voa, a imagem fica, seduz, não carece de um idioma comum para se remontar nas retinas. Enquanto trabalho, suponho um mundo construído apenas com imagens, quais tijolos. Entre o olho e uma figura, sempre apenas mais imagens. Parece terrível, parece pesadelo, mas não: afora o ganho de clareza e o silêncio extasiado, não é diferente de um mundo construído com palavras. A comparação, no fundo um silogismo frouxo, me reconforta. E sigo trabalhando, submerso no passatempo infantil dos meus retoques.