Ainda um tema inspirado no cinema. Ainda um documentário. Espero que tenha sobrado alguma paciência para minha falta de imaginação, mas, vamos convir, existem questões que realmente não podem ser deixados de lado. Principalmente quando é alguma a que damos menos atenção do que ela merece.
Fico me perguntando se um filme como Estratégia Xavante tem chance de entrar em cartaz. Acho que não, e vai ser uma pena. Embora trate de índios e, claro, toque na questão indígena, esse filme é agradável e não é panfletário, não é denúncia. Por outro lado, também não é sentimental, nem ingênuo, como a maioria dos filmes sobre povos que o núcleo branco e urbano do mundo se compraz em considerar exóticos.
Fico muito envergonhado de admitir que não guardei o nome do cacique xavante, homem brilhante, um verdadeiro visionário, que concebeu a estratégia que dá o título ao documentário. Para todos os autores de uma literatura que anda tristemente na moda, esse ramo disfarçado da auto-ajuda que trata de liderança e líderes, o velho chefe indígena daria um estudo de caso excepcional. Sem MBA, sem competição interna, sem head-hunter, ele imaginou e pôs em marcha um projeto de enorme coragem e ambição, que pôs sua tribo, recém-descoberta pelos “civilizados”, em contato com o mundo, sem jamais arriscar sua integridade étnica. Ao contrário, foi a resposta rápida do cacique que resguardou a identidade dos Xavantes.
Foi assim: eram inícios dos anos 70. A tribo havia sido “descoberta” pouco mais de vinte anos antes, quando da famosa marcha para o Oeste que ia desbravando o território. Lembra da famosa reportagem de David Nasser e Jean Manzon para O Cruzeiro? Pois é, justamente, eis a tribo. O tal cacique entendeu na mesma hora que a vida não poderia continuar igual. Aquela gente clara e coberta de roupas tinha muito mais recursos que os vizinhos e inimigos Xerentes; o cerrado não seria mais uma vasta área aberta; o território, a língua, a cultura, tudo estava sob ameaça. Convocou-se uma reunião da tribo. O chefe levou a madrugada inteira para convencer seus pares da necessidade de agir, mas conseguiu.
Nos dias seguintes, alguns meninos foram destacados para cumprir a missão mais importante da história da etnia. Um dos exploradores dos anos 50, que havia se tornado amigo da tribo, levou-os para Ribeirão Preto e os fez adotar por famílias amigas. Os garotos aprenderam o português, foram à escola, incorporaram a cultura dos brasileiros. Mas também transmitiram um pouco da sua. Esclareceram, mesmo sem saber o que faziam, uma relação que poderia se pautar pela ignorância e o desprezo, como é o caso na maior parte do Brasil, a respeito da maior parte das tribos.
Os índios são um assunto em que o brasileiro, em geral, quase nunca pensa. É compreensível. O país cresceu, tem cidades enormes, taxas de juros flutuante, estradas e ferrovias clamando por reparos, televisão, geladeira e forno micro-ondas. Para o paulistano, o carioca e os demais modernos, “houve índios no Brasil”, mas enfim, depois chegou Cabral e foi aquele massacre, sem dúvida terrível, mas é coisa do passado, bola pra frente.
É claro que, de tempos em tempos, o assunto volta à baila. Modas, digamos. Em priscas eras, houve o romantismo, José de Alencar, enfim, cada brasileiro deveria se considerar um valoroso Peri. Décadas mais tarde, Darcy Ribeiro, em sua voz mil vezes carismática, tentou que amássemos esses povos, a quem tanto devemos. Mas aí veio o golpe, nada de índio, é “pra frente, Brasil” e ponto final. Agora, faz uns bons vinte anos que Sting passeou pelo mundo com Raoni e, por alguns meses, falou-se tanto em Ianomâmis quanto em futebol, inflação e Vale a pena ver de novo. Depois, o assunto morreu mais uma vez.
Quer dizer, morreu mais ou menos. Nós, nas cidades, é que preferíamos que tudo isso se resolvesse de uma vez, que demarcassem logo as terras, que exterminassem logo todo mundo, que dessem um CPF para cada índio desses e os pudessem para trabalhar na lavoura. A comida está cara e não dá para ter tanta gente e tanta terra alienada do mercado internacional.
Nos jornais, é esse mesmo o tom das matérias. Garimpeiros invadem áreas demarcadas e são flechados; voltam com carabinas e derrubam tudo que se move; os próprios índios compram armas de fogo e revidam sem misericórdia, com suas bermudas coloridas fabricadas na China. Lá de longe, achamos tudo isso muito estranho, como se o Brasil não estivesse entre as maiores economias do mundo, como se esses eventos se passassem em Marte. Acompanhando notícias desse gênero pela televisão de plasma, não é de estranhar a dificuldade em crer que metade do nosso território está entregue à disputa cruenta entre esses povos nus e os miseráveis que o país deixa como sobra: trabalhadores desesperados por um grãozinho de metal, pistoleiros a mando de senadores, jagunços, eles mesmos, que ironia perturbadora, com muito sangue índio nas veias.
Sábio foi o tal cacique xavante, ao perceber que sua tribo era, de longe, a parte mais fraca de uma eventual disputa. Impossível vencer um conflito com toda essa gente. É fazendeiro querendo pasto, é militar vendo invasão estrangeira em todo canto, é a Funai loteada e depauperada, servindo, não raro, a interesses que passam longe dos índios. Daquele grupo de garotos xavantes, quase todos voltaram ao lar para retransmitir o que aprenderam. Os demais prestaram vestibular e, hoje, se dedicam a lutar por sua tribo e pela causa indígena em geral. Resultado: dentre tantos povos dizimados, os Xavantes vão sobrevivendo.
E na última semana, divulgou-se na imprensa que foi feito contato com uma nova tribo, na fronteira com o Peru. As imagens lembram muito as de 60 anos atrás em Mato Grosso: guerreiros assustados, mas firmes, apontando flechas nos arcos tesos contra os aviões, entre as tabas dispostas com esmero na clareira. Voltou-se a falar em índios, vamos ver por quanto tempo. Quanto a mim, enquanto me pergunto o que será dessa nova tribo, fico na torcida para que Estratégia Xavante entre em cartaz.