alemanha, arte, barbárie, Brasil, calor, capitalismo, centro, cidade, comunicação, costumes, crônica, descoberta, deus, direita, doença, escândalo, esquerda, estados unidos, Estocolmo, frança, francês, história, humor, imprensa, inglaterra, inglês, ironia, Itália, línguas, literatura, livros, London, madrid, modernidade, opinião, paris, passado, Politica, português, prosa, reflexão, religião, Rio de Janeiro, saudade, tempo, tristeza, verão, viagem, vida

É uma crônica, mas pode chamar de Brasil

A história do texto que segue copiado aí abaixo é, vamos dizer assim, tortuosa. Na semana passada, alguém achou na internet o conteúdo da nota de rodapé, essa da imagem, e o espalhou por aí. Achei o caso bem curioso e tratei de procurar a origem.

Resulta que era o livro de crônicas Verdades Indiscretas, de Antônio Torres. O dito Torres, autor mineiro e eventualmente diplomata, era um rival de João do Rio na imprensa carioca do início do último século. Eis uma biografia do referido. Continuar lendo

Padrão
Brasil, crônica, descoberta, futebol, opinião, prosa, reflexão, saudade, tristeza, viagem

O tempo e o Rio

null
Desta vez, foi o motorista do táxi. Como se o céu não estivesse visível, enorme, através do pára-brisa, pesando grave sobre as pistas do Aterro do Flamengo, o bom homem esticou o pescoço e arqueou as sobrancelhas, na postura de quem quer avistar ao longe. Ainda nessa posição significativa que lhe esgarçava as peles do pescoço, emitiu um decreto carioca típico, idêntico ao que sempre escutei pela cidade, desde menino. Disse ele, alongando as sílabas:

– É… quando faz tempo feio, o Rio é muito triste mesmo.

Não conheço um só carioca que discorde.

Jamais em minha vida pude constatar tão rápido a verdade de um lugar-comum. Pousei no Galeão numa dessas madrugadas de bruma que fecham o Santos Dumont pela manhã, mas pela hora do almoço já deram lugar ao céu azul e à cerração. Enfrentei os primeiros incômodos do trânsito por uma Linha Vermelha esfumaçada e pálida, mas consegui atingir a cidade são e salvo. Fazia até um certo frio, guardadas as devidas proporções.

Mal cheguei e fui me dedicar à minha atividade preferida quando estou no Rio. Desci para caminhar pelos antigos bairros da Zona Sul – Catete, Glória, Largo do Machado -, onde resistem aqui e ali algumas belas fachadas de tempos gloriosos, algumas largadas, outras preservadas, todas sufocadas pelo horror arquitetônico e urbano que se espraiou pela consciência brasileira no último século.

Com um certo esforço, nesses belos dias de temperatura suportável e luz forte, é possível sentir-se caminhando em outra cidade, um Rio de Janeiro que diz respeito menos a nós do que a gente do estirpe de Machado de Assis, Pereira Passos, Coelho Netto, Nelson Rodrigues. O Rio pelo qual todo brasileiro suspira e sonha, ressalva feita aos cretinos, e olha que somos pródigos em cretinos.

Esse é um Rio talhado para captar as pequenas conversas, fragmentadas, mas pungentes. Os ambulantes, aqui, que riem histéricos e provocam as clientes; as senhoras, ali, que reclamam dos preços e dos jovens; em todo canto, as moças de coxas queimadas, que entortam pescoços por onde passam.

Há algo nesse Rio de Janeiro que é imortal, por mais que há décadas o asfixiem. Algo de muito atávico e brasileiro, uma cordialidade mansa, encantadora, uma beleza que está, sim, na paisagem, mas também nas pessoas. Sobretudo nas pessoas. Com tempo bom, o Rio é irresistível, mas perigosamente enganador. O vazio econômico parece irrelevante e a guerra urbana parece mentira, tão absurdos que não conseguimos acreditar em nenhum dos dois, essas tragédias que crescem pelos bastidores.

Rio, és estranho, és único.

E assim foi na terça-feira. Na quarta, ainda mais. O céu parecia ter ficado mais anil. Vi muitos desconhecidos que puxavam papo, muitos transeuntes caminhando quase a dançar, juro que minha visão periférica captou uma pincelada de civilidade no trânsito. Copacabana cintilava, as bandeiras na areia pareciam bailar o Quebra-nozes, caminhei pela orla até a Visconde de Albuquerque e fui cumprimentado por um punhado de pessoas que jamais havia visto. O caminho de volta foi pela Ataulfo de Paiva, excelente para me atardar pelas livrarias, onde todos os títulos pareciam interessantes, todas as capas elegantes, e recebi sugestões de vendedores que me tratavam como se me conhecessem desde a infância, eu que já perdi o hábito da familiaridade.

Eis o clima que reinava, até que o sol se pôs sobre a Cidade Maravilhosa.

Mas aconteceu alguma coisa na noite de quarta, na madrugada de quinta, em algum momento dessas cercanias, e o sol não voltou de manhã. O dia que se desvelou ao clarear era soturno, diria mesmo aterrador. Debrucei-me à janela, mas os prédios eram feios, concreto quadrado manchado por anos de chuva, montanhas encobertas revelando apenas os barracos encalacrados, e buzinas, e berros que soavam como grasnados, e fogos de artifício cujo motivo eu preferia não conhecer. Mesmo a folhagem das palmeiras, na rua Payssandu, era opaca.

Uma outra cidade.

Um pulo na rua revelou um povo que em nada lembrava o da véspera. Talvez a atmosfera opressiva, sombria, tenha se insinuado pelos humores dos passantes, dos estudantes, dos guardas, dos vagabundos, esses que sempre estiveram por aí, sempre aos montes, mas que às vezes podemos até achar pitorescos, tolos que somos. As gentes revelam seu lado mesquinho, sua vulgaridade, a falta de educação, respeito, princípios. A solidariedade parece dissolvida na grande nuvem que paira sobre as avenidas. Aquelas amenas conversas cujos fragmentos captei nos dias de sol para montar meu doce mosaico carioca, valha-me Deus, viraram do avesso. Vendedores e dondocas, bicheiros e secundaristas, no lugar de bater papo, passam a tarde a se espezinhar, resgatando da insignificância os assuntos mais comezinhos. É um susto tremendo descobrir nesse povo tão charmoso o pendor para as maiores baixezas. Um susto tremendo e amargo.

A luminosidade forte que delineava as figuras faz uma falta enorme. Por uma, como se alteram os rostos quando o contraste das peles queimadas com o branco enorme dos sorrisos largos dá lugar a perfis grisalhos e indistintos! Por outra, tornam-se mais visíveis os detalhes que melhor seria não ter de encarar; as pilhas de lixo que bloqueiam as calçadas, a confusão do comércio, mesmo o regular; as rodas mal traçadas de gente desocupada, barriguda, contente de não ter o que fazer. Nas bancas, os jornais com manchetes mentirosas, deliberadamente ofensivas à inteligência e ao bom gosto do público. Os vendedores, espelhando o produto que expunham, só faltavam enfiar nos bolsos dos passantes, mediante o achaque de somas absurdas, os pasquins que parecem infestar a cidade.

Em dias difusos como esta quinta-feira, as belas cores de ontem desaparecem, substituídas por uma feiúra e um mau gosto que não fazem jus ao Rio de Janeiro, aquele Rio de nossos suspiros e sonhos. Mas é impossível não reconhecer aí mais um elemento do enorme paradoxo que é essa cidade sem par. O lado feio e de mau gosto é claramente um dos tantos alicerces que sustentam o mito carioca. O mito, sim, e a verdade, sendo que raramente conseguimos distinguir quando é um e quando é outro, ainda mais no Rio de Janeiro.

Meu sentimento é de que preferia não estar na cidade neste momento agudamente deprimente, em que até respirar é difícil e desagradável. Mas estou, mas vi o que vi, e não é nada que já não conhecesse, mas que a distância fez quase esquecer. Contudo, também sinto, ainda que soe contraditório, que aceitaria de bom grado esse quotidiano, deitando e acordando para Rios tão diversos quanto a diversidade dos dias, e sem os quais não haveria um, unificado, que fosse o Rio de Janeiro.

Sobretudo sinto que, hoje, para acessar aquele Rio de Machado, Nelson, Coelho Netto e Pereira Passos, é preciso ter a coragem de atravessar esse outro Rio, superar a cidade de Cesar Maia, Brizolla, Garotinho, Kleber Leite. Como quem supera a montanha do Purgatório para se banhar na Ipanema do Paraíso. Com isso, finalmente, sinto que compreendo o porquê dos sonhos e dos suspiros. Principalmente dos suspiros.

Padrão
Brasil, crônica, escândalo, ironia, lula, opinião, Politica, reflexão

O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

Padrão
Brasil, descoberta, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Um repórter, finalmente!

%C3%A1rvores+no+inverno

Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

Padrão