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Houellebecq e sua ilha

Acabou de sair por aqui um filme dirigido por Michel Houellebecq. Fiquei curioso para vê-lo, embora a somatória de todos os trechos seus que li não dê um livro inteiro. E não li por birra, simplesmente. Sempre tive a impressão de que seu jeito polêmico era forçado. A antipatia é uma das estratégias de marketing mais exploradas pelos autores hodiernos, não me pergunte a razão. Temendo que minha opinião sobre o escritor contaminasse minhas impressões sobre sua obra, me abstive de abrir um volume de Houellebecq. Mas fui ver o filme, graças a uma promoção de início de outono que atirou lá para baixo o preço dos ingressos de cinema em Paris. Passamos a tarde inteira de domingo entrando e saindo de salas de exibição, numa maratona que começou com uma comédia musical americana e terminou com uma ficção científica metida a conto filosófico. Se o sentido tivesse sido o oposto, talvez tivéssemos dormido melhor, mas o fato é que fechamos a noite com as imagens desiludidas de A possibilidade de uma ilha (La possibilité d’une île).

Em poucas palavras, o que para alguns é fundamental, mas para mim não tem importância alguma: o filme é bom? Não chega a ser. A ironia amarga da prosa de Houellebecq mal dá o ar de sua graça, assim como a condensação do tempo e da identidade individual, pedra de toque do livro que deu origem ao filme. As personagens não têm carisma, ao contrário do livro, em que mesmo o grande líder religioso é um cínico desiludido. (Antes que me pergunte como sei disso, se não li o livro: folheei-o.)

Agora que estou livre da obrigação de avaliar o filme, posso entrar nos assuntos muito mais interessantes que ele pode gerar. Em primeiro lugar, fico imensamente feliz de saber que ainda é possível fazer filmes assim. Uma linguagem longe do convencional, longos planos e pausas, atores imóveis, ângulos oblíquos, cortes inesperados. Como nos bons tempos do cinema. É verdade que, apesar das entradas quase gratuitas, a pequena sala estava praticamente vazia. Não mais de oito pessoas, enquanto no tal musical americano (muito divertido, por sinal) saía gente pelo ladrão de uma sala muitas vezes maior. Mas isso não quer dizer nada. Bem ou mal, Houellebecq conseguiu dinheiro para adaptar seu próprio livro da maneira como bem entendesse, e isso é sinal de que ainda existe alguém disposto a investir nas empreitadas arriscadas. Certo dia, alguém deu uma soma considerável na mão de Fellini para ele imprimir no celulóide seus sonhos absurdos. Não sei quem foi o empresário visionário, mas garanto que ficou rico. Tampouco sei quando surgiu o consenso de que o público é formado única e exclusivamente por gente sem imaginação e dopada pelas fórmulas consagradas de Hollywood. Só sei que é uma lástima.

Mesmo não sendo o caso de Houellebecq, existe uma legião de cineastas cheios de boas idéias e muito talento, jovens, arrojados, inventivos, sedentos por uns caraminguás para rodar o primeiro longa. Esse pessoal não é invenção minha, qualquer festival de curta-metragens revela um caminhão de gente interessante. Entre eles e as obras-primas da próxima geração, o único obstáculo é o investidor, que precisa perder o medo do fracasso, para aprender a apostar no longo prazo. Foi assim que os empreendedores do passado ficaram ricos; não foi pela repetição temerosa de velhas fórmulas cansadas e disseminadas ad nauseam.

* * *

Agora, ao segundo ponto que eu gostaria de levantar. Dizem que Houellebecq tem uma personalidade desprezível. Eu não teria como avaliar. Mas é certo que uma das coisas interessantes sobre sua obra literária é a dificuldade de distinguir o que é opinião sua e o que é pensamento das personagens. Os protagonistas de seus livros costumam ser pessoas vis, baixas, rasteiras, vulgares, cínicas, inescrupulosas e por aí vai. Mas a tinta consegue, com o concurso de uma certa habilidade estilística, misturar os traços de forma tão indiscernível, que idéias e conceitos passam por entre os dedos do julgamento, como areia fina. É Houellebecq o racista, ou seu herói? Autor ou personagem, qual é o cretino? São exemplos das discussões que os literatos gostam de ter a respeito do escritor.

Pois bem, acontece que o próprio escritor resolveu colocar na tela um de seus livros. Deve ser o sonho de muitos artistas, imagino. É muito raro que um filme seja melhor do que o livro de que é adaptação, a não ser nos casos em que o texto original é um romance de quinta, e a resultante cinematográfica, uma obra-prima. É o caso de Psicose, por exemplo. No mais das vezes, vale mais a pena perder uns dias sobre o papel do que um par de horas diante da tela. Logo, o melhor é criar algo inteiramente diferente do original, que não possa ser comparado a ele, que provoque no máximo uma ligeira reminiscência.

É que, dizem, uma imagem vale por mil palavras. Eu estaria mais inclinado a considerar que uma imagem vale por uma imagem; uma palavra, por uma palavra. São linguagens que atingem campos diferentes da nossa sensibilidade. Uma cena não é o mesmo que a descrição da cena, nem é o mesmo que sua representação. Assim, alguém que assista a um filme com a cabeça de um leitor está fadado a não compreender absolutamente nada do que tem pela frente.

É nessa distinção que Houellebecq entrega o ouro. A grande vantagem do texto escrito é que, embora demore muito mais tempo para ser absorvido do que o visual, deixa sempre um espaço enorme para a imaginação. Por mais detalhada que seja uma descrição, ela não entrega pronta a figura descrita, como acontece na tela. Determinadas idiossincrasias do autor conseguem manter-se veladas, se for essa sua intenção. A imagem exige cuidados maiores. A escolha dos atores tende a reproduzir os mecanismos inconscientes de quem os escolheu, e no caso de A possibilidade de uma ilha, o diretor é o próprio escritor. Paisagens, cores, cortes, tudo isso é parte do discurso, tanto quanto vírgulas, parágrafos e capítulos no romance original. É possível ler através desses detalhes.

Não sei como explicar, para alguém que não o viu e provavelmente não o verá, o que o filme deixa revelar, provavelmente sem querer. Chego a imaginar, também, que posso ter projetado minhas próprias opiniões sobre a obra; isso não é de todo impossível. Mas, ressalvas à parte, o tom decadentista de Houellebecq parece desnudar-se inteiramente. Revela-se, como eu desconfiava, forçado. Tive a impressão de que o autor não acredita em seus próprios argumentos.

A desolação que as paisagens deveriam transmitir parecem estar só na reiteração dos horizontes calcinados, enfileirados sem sentido, incapazes de tocar o espectador. A acidez do protagonista, interpretado por Benoît Magimel (que já encarnou Luís XIV), parece vir mais de sua fisionomia peculiar do que de sua postura diante dos fatos que presencia.

A heroína silenciosa, cujo clone vagueia por terras inóspitas após o desaparecimento da humanidade, faz um esforço enorme para expressar seu desespero. Mas não é fácil, sobretudo se comparamos sua situação à do clone do protagonista, que passeia em filosofices verborrágicas por campos e vales, acompanhado de um cãozinho muito simpático. Não estou querendo corroborar a idéia de que Houellebecq seja racista por fazer cair repetidamente sua protagonista negra, seminua, ao chão de um deserto, sem lhe dar ao menos uma fala para mostrar seu trabalho de atriz, enquanto o rapaz esbelto, louro e culto paira sobre a desgraça humana com um belo terno negro e um cajado, falando sem parar. Mas é difícil entender por que tanta desigualdade, mesmo depois que acabou o sistema capitalista.

Não quero demover os amantes da literatura de uma ida ao cinema para ver A possibilidade de uma ilha. Pelo contrário, apesar de todos os defeitos que eu acreditei encontrar no filme, o fato de que ele exista é um acontecimento a ser aplaudido. Ademais, para quem gosta mesmo de livros, de Houellebecq ou não, é uma oportunidade rara ver como um autor adapta sua própria obra para a tela.

PS: Para quem lê em francês, eis uma discussão interessante sobre o filme.

E outra aqui, indicação de Bruno Carmelo.

Padrão
Brasil, descoberta, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Um repórter, finalmente!

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Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

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