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A “sensação de segurança” é um engodo

O penúltimo texto tratava de um dos aspectos mais cansativos e artificiais da forma marqueteira que assumiu a política de uns tempos para cá. (Quanto tempo? Dez, vinte anos? Difícil estabelecer um início preciso para um processo tão paulatino…) Embora o tema a perpasse sem descanso, não me refiro à política enquanto disputa de poder, embora esse aspecto tenha recoberto o termo quase inteiramente no debate público, mas ao verdadeiro quotidiano político, o esforço constante de viver em comunidade. Trata-se da questão da segurança, martelada em todos os telejornais, muitos filmes, conversas no barbeiro e no táxi, e repetida inclementemente por candidatos a qualquer coisa em seus discursos temerários.

Poderia ser uma particularidade brasileira. Afinal, nossas maiores cidades são território livre para assaltos, sequestros-relâmpago e o diabo a quatro, quando não estão em franca guerra civil, sem contar os acordos de bastidores entre governos e grupos criminosos para que estes últimos “peguem leve”. Mas não. A julgar pela prioridade que o tema recebe, o mundo inteiro deve estar à beira de centenas de guerras civis entre criminosos satânicos e os pobrezinhos dos cidadãos de bem, sempre acuados em seus cantos, tentando levar suas vidas sem serem esquartejados por bandos criminosos. Sem contar os terroristas, claro. Porque, afinal de contas, eles existem. E se existem, só podem estar por toda parte, certo? O raciocínio parece tortuoso, mas tem dado sucesso a seus proponentes em eleições mundo afora.

Muitos meses atrás, comentei aqui sobre a violência policial, comparando maio de 68 e todos os meses de 2008, na França como no mundo. Só de confrontar fotografias antigas com recentes, ficou claro que a tropa de choque (CRS na França) que trocaram cascudos com estudantes diante da Sorbonne em 68 mais parece uma fileira de guardas de trânsito, comparada à tropa de hoje. Aqueles policiais tinham capacetes, escudos e espingardas (não usaram), por certo; os de hoje parecem robôs de filmes de ficção científica, com suas armaduras, máscaras e coturnos à la Kiss. A polícia de hoje é bem mais ameaçadora. Tem um visual que intimida enormemente. Mesmo as patrulhas simples, pelo menos na França (e pelo que vi, no Rio também), vestem-se com blusas negras que lhes dão um ar de muito mais fortes, além de rasparem a cabeça como recrutas do exército. Não consegui explicar isso à época, então retomo a pergunta: por que a polícia deste início de século precisa causar tanto terror?

Para responder, volto ao penúltimo texto: a estação ferroviária, a cerveja, os soldados em uniforme camuflado exibindo suas boinas negras e seus fuzis semi-automáticos, desses que disparam sei lá quantas centenas de projéteis por segundo. Também coturnos, também cabeças raspadas, uma forma de olhar que, sem a menor fagulha de sucesso, buscava passar a impressão de investigar qualquer coisa. Um quarteto que se arrastava entre malas e bilhetes, simbolizando o mesmo programa anti-terrorismo que eliminou os bagageiros das estações de trem. Imagino o alto comando do exército a formular sua política de combate aos homens-bomba: colocar alguns rapazes sobre as plataformas, prontos para metralhar o primeiro zé-mané que pareça ter uma banana de dinamite por baixo da bata ou do turbante (sim, porque gente de paletó está acima de qualquer suspeita).

A segurança é a prioridade número um da maioria dos governos ao redor do mundo. Economia, saúde, educação, meio-ambiente, tudo isso é obrigado a disputar o segundo lugar, onde ainda sobram eventuais migalhas de atenção midiática. Talvez haja duas exceções. Uma é nosso bom e velho Lula, porque também não tem muito como competir com os políticos estaduais Brasil afora, que ainda enchem as PMs de carros enquanto a criminalidade teima em não ceder. A outra é o celebérrimo Obama, que, não é nada, não é nada, prossegue com duas guerras do outro lado do mundo, uma delas justamente contra o terrorismo. Fora esses aí, há anos ouvimos falar, e vemos na prática, em aumento do efetivo policial, tolerância zero, combate à delinqüência, câmeras espalhadas pelas cidades, monitoramento de lan-häuser, atenção particular para os “subúrbios sensíveis”. O público, já apavorado, porque já escutou esses discursos todos e já viu cenas de jovens em confronto com a tropa de choque, adere. Vota, esquece todos os outros problemas, fecha os olhos para a má gestão da estrutura pública… essa ladainha, todos conhecemos.

Mas, ora, que coisa estranha: nenhuma dessas políticas de segurança tem surtido um grande efeito duradouro. A não ser, talvez, o programa de Rudolph Giuliani em Nova York, o “tolerância zero”. Mas não é a mesma coisa, porque o que se fez na Big Apple foi deixar de fechar o olho para as pequenas infrações, como avançar o sinal vermelho e encher as calçadas de cadeiras. Isso, mais um policiamento ostensivo em nada diferente do que fazem os tradicionais guardas londrinos, conseguiu um nível de paz e tranqüilidade urbana muito maior do que a paranóia policialesca que, por exemplo, levou ao assassinato de Jean Charles.

A reação do público, no entanto, parece não reverberar a contradição. Nas pesquisas, as pessoas, aquelas normais, trabalhadoras, de bem (e assim por diante), continuam manifestando um medo enorme, diante de um mundo que lhes aparece como cada vez mais perigoso, instável e coalhado de bandidos, desde criminosos comuns até terroristas religiosos. Mesmo assim, elas declaram, diante da reação governamental, isto é, diante da presença massiva de gente com uniforme futurista, cacetete, fuzil, boina, cabeça raspada, escudo, capacete, óculos de visão noturna e gás lacrimogêneo, que experimentam uma maior “sensação de segurança”.

Ora, direi, sensação de segurança! Mas se dizíeis estar a vos cagar de medo! Como é possível?

Diante de tamanho paradoxo, refleti sobre o assunto e cheguei à conclusão que segue: essa tal “sensação de segurança” é um engodo. Ela não existe. Quando alguém acredita experimentar uma “sensação de segurança”, está enganada, não porque não esteja sentindo nada, mas porque aquilo que ela toma por uma “sensação de segurança” é, na verdade, outra coisa. Logo veremos o quê. Primeiro, preciso mostrar que não faz sentido falar em “sensação de segurança”. Ora, “sensação de segurança”…

Imagine você, em sua casa, deitado em seu sofá numa tarde de sábado, depois daquela feijoada, vendo pela televisão seu time ser esculachado em rede nacional. Você está seguro? Até certo ponto, sim. Pode cair um meteoro em sua casa, claro, mas afora essas hipóteses mirabolantes, você corre pouco risco de ser vítima de algum evento traumático ou perigoso. E que sensação você tem nesse momento? Sonolência, provavelmente. Raiva do juiz, talvez. Preocupação com o aluguel, eventualmente. Azia, posso arriscar. Mas “sensação de segurança”? Duvido.

Outra situação: você está dirigindo numa estrada escura. É noite. Chove a cântaros (é uma chuva das antigas). De repente, uma enorme vaca ruminando a um palmo dos faróis. Você entra em pânico. Solta um berro de pavor. Mas não há tempo para faniquitos: no último instante, você dá uma guinada com o volante, afunda o pé no freio, depois no acelerador, e consegue se safar. Seu coração ainda está disparado, você continua sem fôlego, suas mãos tremem. Mas o medo já passou. O que você sente? Alívio, certamente. Ódio da péssima iluminação da estrada, sem dúvida. Pena da vaca que talvez não escape ao próximo carro, nem ele a ela. Mas “sensação de segurança”? Necas…

Talvez eu esteja querendo brigar com os fatos, admito. Se as pessoas garantem que têm essa tal sensação, se elas insistem que é uma experiência verdadeira, quem sou eu para contradizê-las? Mas antes que me lapidem: eu nunca disse que elas não sentem nada. Eu disse simplesmente que essa sensação não é de segurança. Então, direis, é de quê? Tentarei responder.

Metade da resposta, acredito, está nas explicações dos pesquisados. Elas sentem medo e o associam de alguma maneira à “sensação de segurança”. Essa associação é muito freqüente para ser coincidência. De fato, tudo aponta para a noção de que a “sensação de segurança” corresponde à constatação (talvez inconsciente) de uma ausência de ameaça ou, melhor ainda, da ameaça contida, afastada, superada. É o que vimos nos exemplos acima, de maneira rudimentar, mas válida. Portanto, é impossível conceber a “sensação de segurança” sem uma sensação mais fundamental e mais evidente de medo, pavor, terror, ameaça, risco, decadência, desordem, chame como quiser – escolha, por exemplo, uma palavra do repertório de analistas políticos ligados a qualquer governo ao redor do mundo.

Seguimos no campo do paradoxo: como é possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre o medo, se o medo é o oposto da segurança? Estranho, não? Falta alguma coisa nessa nossa definição…

Então voltemos aos dois textos que mencionei nos primeiros parágrafos. O que encontramos? Policiais saídos de algum videogame, desses baseados em Robocop ou Exterminador do Futuro. O temor (mal dirigido) do terrorismo islâmico, que põe soldados armados até os dentes em todas as estações de trem da França (e muitos pontos turísticos), como se aqueles rapazes recém-saídos do treinamento fossem capazes de evitar a detonação de uma bomba. As tropas de choque que, e isso eu vi com meus próprios olhos, precisam de dois ou três batalhões, camburões e jatos d’água para desbloquear escolas onde garotos e garotas de 16, 17 anos fazem seu mui ameaçador piquete.

Para que serve tudo isso? Quem está mais seguro graças a esses bravos profissionais da violência estatal? A população? A gente de bem? O nobre e honrado cidadão? Alguém realmente acredita nisso? Sim, alguém acredita nisso. Basta ver, também alguns parágrafos acima, a reação habitual dos já mencionados cidadãos. Mortos de medo, mas ainda eleitores dos Sarkozys, Berlusconis e Serras da vida, graças a essa formidável “sensação de segurança”.

Devem então ser esses os componentes da magia paradoxal de nosso tempo. Primeiro, o medo; depois, o belicismo encarnado em policiais e soldados. Mas por que o belicismo? O que ele representa, quer dizer, o que ele provoca em quem o presencia? Traduzindo, como é que ele contribui para a “sensação de segurança”? Afinal de contas, guerras são tão opostas a qualquer noção de segurança quando o próprio medo, aliá seu correlato. Será possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre duas coisas que se opõem tão perfeitamente a qualquer idéia de estar seguro?

Sim, é possível. E talvez exatamente como conseqüência da contradição, da mesma forma como a multiplicação de dois números negativos produz um positivo. O belicismo dos assustadores soldados faz sentido quando entendemos a impressão que ele esconde: uma percepção de força, ou seja, uma demonstração de poder. Talvez o conforto implícito de que é possível agredir de volta, ou até agredir antes. De que qualquer ameaça será contrabalançada por um efeito punitivo e multiplicador. Que sei? Só posso afirmar que essa projeção de virilidade primitiva é o segundo componente da tal “sensação de segurança”.

Com isso, acho que já temos um quadro da nossa vítima. A “sensação de segurança” nada mais é senão um núcleo de medo recoberto por uma couraça de poder. Como o medo exige alguma forma de força e a força só é necessária quando temos medo, um anula e alimenta o outro. Desse estranho equilíbrio, dessa tensão delicada e perigosa, nasce essa tal “sensação de segurança” que tanta gente afirma sentir. Ou seja, é um engodo e um engodo arriscado.

Digo arriscado porque a “sensação de segurança” só pode aumentar de duas maneiras: ou cresce o medo e, em seguida, a demonstração de força como reação que restabelece o equilíbrio, ou aumentam, forçando um pouco a barra, as demonstrações de força, que por sua vez reverberam até multiplicar também o medo original. Não é difícil perceber que estamos diante de uma bola de neve. Só lembrando que o destino de toda bola de neve é a avalanche.

Até onde conseguimos levar o discurso e a estrutura reticular que sustentam a “sensação de segurança” tão fundamental a essa política mané de nossos tempos? De onde mais podem vir as ameaças que justifiquem tropas de choque e soldados com fuzis desfilando pelas ruas e estações de trem? Que outras medidas podem ser tomadas para, como é mesmo que se diz?, garantir a tranqüilidade dos cidadãos? Respostas nos comentários, por favor.

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Dos sustos

De súbito, salta a meus olhos a razão dos sustos. Refiro-me àqueles que parecem se abater sobre cada vivente de tempos em tempos, regulares como as crises sistêmicas do mercado financeiro, mas bem mais freqüentes. Esses traumas, maiores ou menores, são o mecanismo que a natureza criou para nos trazer de volta à vida, quando estamos, sem saber, há muito levando os dias como autênticos defuntos.

Explico. É um engano conceber nossa existência como um arco no tempo, embora seja nossa interpretação mais corrente: uma parábola que salta do nascimento, na maturidade atinge seu cume suave e daí vai descaindo pela velhice, até reencontrar o eixo das abscissas quando a morte nos alcança. Uma curva assim tão suave não pode representar a vida, essa que é tudo, menos suave, e tão menos viva quanto mais tranqüila e regular.

Para quem a observa com atenção, diria mesmo com carinho, a vida desvenda seu doce segredo. Ela se revela inteira, como um fractal surpreendente. Dentro do tempo que nos é reservado nesta existência, que por sinal é muito pouco, temos o dom de nascer muitas vezes, em várias direções, com intervalos que podem ser incrivelmente curtos. No fundo, em vez de uma só, levamos levamos várias vidas, um fragmento dela a cada vez. E isso faz de nós caleidoscópios pulsantes, com todas as cores e movimentos que um caleidoscópio deve ter.

Que isso implique um sem-número de pequenas mortes para cada um de nós não deveria ser causa de aflição. Quem chegou até aqui já provou sua resistência. Não sucumbiu aos muitos finais que já sofreu, nem ao medo de cada reviravolta, mesmo se chegou a pensar que não mais poderia. A última morte, aquela que atinge também a carne, arrisca perder-se no esquecimento, depois de tantos traumas e tantas primaveras.

É assim que passam os anos, é assim que se forma aquele arco que, por desatenção, tomamos pela vida de verdade. Vivemos por um tempo, depois morremos sem saber. E podemos ficar anos, muitos anos assim. Pobres zumbis, cadáveres ambulantes mas asseados, confortáveis no esquife acolchoado de certezas em que nos enterra o quotidiano.

Quanto mais rápido vier o susto, melhor e menos traumático. Quanto mais nos acomodamos na segurança, tão artificial, que se apresentava, ardilosa, como objetivo maior de qualquer vida, mais teremos de sofrer para aceitar que há muito já não vivemos e precisamos nascer de novo, com o impulso de um bom susto. Mudanças desse gênero são quase sempre muito difíceis e deixam sequelas na versão renascida do defunto.

Como ele pode vir, esse tal susto, todos sabem. Quem se flagrar em dúvida deve desconfiar. Se jamais tiver passado por um, é provavelmente porque ainda está precisando. Ainda vive como um morto e não descobriu. Quando soar o alarme, soará em alguma forma inusitada, imprevisível, sorrateira. Eventos físicos e óbvios, talvez, como a experiência de quase ser atropelado, ou se cortar profundamente com uma faca de cozinha ao fatiar tomates. Mas podem sobrevir ainda os superlativos do padecer moral: separações, traições, desilusões.

Venha como vier, o susto é um novo parto. Acordamos para um mundo que tínhamos esquecido, isto é, acordamos para a vida. Descobrimos o quanto éramos mortos, quão idênticos eram nossos dias, como o são os dias da matéria inerte que fatalmente nos tornaremos. Somos atingidos, reagimos. Sentimos o sangue que corria em nossos vasos sem que déssemos por ele. É para isso que tomamos sustos, é por isso que desabam nossos universos.

Porque sofremos, podemos fruir. Eis um decassílabo que resume a existência.

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A origem insuspeita da crise econômica

Cuidado ao criticar Wall Street. A crise financeira mundial pode ser culpa sua. Pode ter começado, certo dia, quando um amigo, desses que trabalham no governo ou no setor financeiro, vem lhe contar de um pequeno país caribenho, uma ilha parcamente habitada, que acaba de anunciar o projeto de construir um aeroporto ultra-moderno. Com isso, a ilhota, até agora de destaque apenas na produção de conchinhas ornamentais, é garantidamente a próxima coqueluche do turismo internacional.

Barbada, você pensa. Os terrenos ainda se compram a preço de banana, os grandes resorts ainda não tomaram suas decisões de investimento, a hora é agora. Impossível perder dinheiro. Quem investir vai virar milionário. Com os olhos brilhando, vocês juntam um grupo de dez camaradas dispostos a investir, no total, um milhão redondinho de dólares em terrenos na ilha. Colocando em termos cartográficos, dá metade da superfície do país. Quando os hotéis e mansões resolverem correr atrás da carniça, vão ter de desembolsar o dobro. E quem vai ganhar nessa são vocês, investidores atentos. Brilhante!

Seu problema passa a ser, naturalmente, como arrumar cem mil dólares. Um bom dinheiro, que você, é claro, não tem. Pelo menos não assim, disponível. Felizmente, você se lembra então de um personagem que nunca o deixou na mão, tendo inclusive lhe adiantado mil pratas no ano passado, quando o guri quebrou o braço num acidente de patinete. Viva o sogrão!

No almoço do próximo domingo, você expõe seu projeto ao sogrão, carregando nas emoções. Sogrão ouve atento e lhe responde que cem mil não é trocado, é muito mais difícil de emprestar que mil, não dá para abrir mão desse dinheiro todo de uma vez só. Mas você já sabia que o empréstimo não sairia de mão beijada. Já preparou uma proposta que lhe parece bastante boa para ambas as partes. Promete pagar, ao final de dois anos, cento e dez mil dólares. Por gratidão. Traduzindo para a linguagem racional das contas financeiras, são cinco porcento ao ano. Nada mal, pelo menos para uma economia estável.

Mas ainda existe um risco nesse negócio. Sogrão quer algum tipo de garantia, ele precisa de segurança, esse é um prejuízo que ele não tem musculatura financeira para engolir. Você tem algum bem que valha cem mil dólares? Claro! Sua casa, pequena e suburbana, mas agradável e sua, está avaliada mais ou menos por esse valor. Verdade seja dita, você ainda não conseguiu se livrar da hipoteca. Mas a casa lhe pertence, é lá que estão seus objetos queridos, é lá que vive sua família amada. Além do mais, com os lucros da ilha, você paga o sogrão, a hipoteca, a dívida do pôquer e a faculdade do guri.

Para sua felicidade quase incontrolável, o sogrão aceita, contanto que tudo seja posto no papel. Problema nenhum, é assim mesmo que tem de ser. Ele lhe pede uma semana para fazer a transferência. É claro que ninguém deixa esse dinheiro todo dormindo na conta corrente.

No dia seguinte, seu sogrão vai ao banco com uma proposta para o gerente. Considerando a trajetória do mercado imobiliário nos últimos anos, a casa que você lhe prometeu em garantia deverá valer cento e oito mil dólares daqui a dois anos. O sogrão se compomete a entregar daqui a dois anos um bem que vale cento e oito, recebendo agora cem. Nada muito diferente do negócio que você fez com o mesmo sogrão, mas com uma perspectiva um pouco diferente. Afinal, o banco pode projetar um aquecimento maior do mercado imobiliário para os próximos dois anos, o que faria o tal bem, que seu sogrão vai entregar por cento e oito, valer cento e doze.

Mais importante ainda, vale mais a pena para o banco contar com uma promessa de pagamento de cento e oito do que com líquidos cem na mão, porque, ao contabilizar os cento e oito no balanço, é possível liberar uma porção maior dos depósitos dos correntistas para comprar as ações de uma determinada empreiteira no mercado futuro. E essa empreiteira, qual seria, senão a que foi contratada para tirar do papel o aeroporto na pequena ilha? Indiretamente, sem saber, você ajuda seu próprio sonho a se tornar realidade quando pede o empréstimo ao sogrão. Afinal, com seus múltiplos projetos ao redor do globo, a empreiteira não tem caixa para fazer a obra. Mas tem uma estrutura sólida e um excelente valor de mercado. Por meio de uma oferta pública de ações, não deve ter problemas para se financiar. Nunca teve. Com garantias como a sua casa, bancos como o do sogrão fornecem o dinheiro de que a empresa precisa. Felizmente!, porque o governo insular conta justamente, veja só, com a venda de seus terrenos valorizados para pagar pela obra, ao final de sua execução.

Tudo está bem, tudo está em equilíbrio. Nenhum dinheiro de verdade entrou em jogo porque ele simplesmente não é necessário. Basta a expectativa de algum valor ser gerado para colocar em movimento uma grande ciranda de operações econômicas. A essa expectativa corresponde um dinheiro imaginado, suposto, para não dizer fictício, o que seria maldade.

É claro que muita coisa pode dar errado, mas todos os envolvidos estão cientes. Um furacão pode varrer a ilha. Uma revolução. A descoberta de uma doença misteriosa. Um sócio que foge com o dinheiro de vocês. Mas para todos esses casos, a princípio, há solução. Um seguro contra eventos naturais e políticos. Um outro empréstimo, para cobrir a perda iminente da casa. A venda de um ativo da empreiteira. A emissão de títulos, pelo banco, e moeda, no caso do governo da ilha. Não há por que ter medo. Passado o susto, você negocia com o sogrão, que negocia com o banco, que negocia com a empreiteira, que negocia com os mandatários da ilha. Tudo muito civilizado, para que as obras possam finalmente ter lugar.

A não ser, é claro, que todo mundo tenha esticado demais a corda. Se a ilha estiver considerando que vai vender todos os terrenos disponíveis a preços satisfatórios. Se o fluxo esperado de turistas estiver mal calculado. Se a empreiteira apertar o orçamento e esperar um preço irracionalmente alto para suas ações. Se o banco não tiver em reserva o suficiente para cobrir os saques dos clientes. Se o sogrão avaliar com benevolência demais o valor da casa. Se você tiver confiança excessiva em sua capacidade de quitar a hipoteca.

Basta que o mercado desconfie das projeções de construção de hotéis na ilha, digamos. O governo, ao se ver incapaz de pagar pelo aeroporto, emite moeda e causa inflação. Os acionistas fogem da empreiteira. As ações caem. O banco perde liquidez, quer resgatar seus empréstimos, mesmo com taxas menores. A empreiteira precisa do dinheiro, corre atrás de empréstimos, a oferta escasseou, os juros sobem como um foguete. Juros altos, o mercado imobiliário esfria. As casas perdem valor. As hipotecas se tornam mais caras. O sogrão tem de pagar o banco, mas sua garantia de cem mil caiu para setenta. Você acaba tendo de lhe ceder também seu carro, mas continua endividado ainda assim. O sogrão também, por sinal, apesar do novo bólido. O banco não consegue cobrir os saques, tenta vender ações, elas estão em baixa. A empreiteira não consegue empréstimo, pede concordata. A ilha fica sem aeroporto, sem turistas, mas cheia de dívidas, inflação e terrenos baldios, além das conchinhas multicoloridas. Mas ninguém mais quer os terrenos. Aquele milhão de vocês vale agora menos de seiscentos mil dólares. Eis o desastre. Sem contar com os trabalhadores da ilha que já planejavam comprar eletrodomésticos, pagar dívidas, expandir casas…

O sistema financeiro funciona, em grande medida, dessa maneira. Uma cadeia interminável de projeções, expectativas, apostas, dívidas, equilibrando-se umas nas outras. Uma série de regras tentam obrigar as grandes corporações a manter alguma reserva, um certo resguardo. Mas em situações calmas, sobretudo quando esse tipo de garantia existe, um volume financeiro mantido imóvel soa como um atentado ao bom senso. Um pouco mais de risco permitiria investimentos que gerariam riqueza ao redor do planeta. E o planeta precisa de riqueza. Com uma concorrência tão cruel, quem fizer provisões para tempo de tormenta acaba ficando no meio do caminho.

O fato de supor um dinheiro que não existe soa assustador, claro. Mas não há outra maneira. Existe um efeito multiplicador da moeda que faz com que cada dólar impresso se transforme em dezenas na dita ciranda financeira. Deveríamos dizer, talvez, castelo de cartas financeiro. Uma que saia do lugar derruba o edifício inteiro. Isso não deveria ser tão alarmante quanto provavelmente fez parecer a forma em que foi expresso. O capitalismo sempre avançou aos trancos. São os ditos ciclos de crescimento, que culminam em crises, e assim por diante. Se não houvesse um sujeito como o sogrão, que especula entre o banco e você, não haveria esse dinheiro, o fictício, então não haveria crises. Mas tampouco haveria ciclos de crescimento, esses em que o emprego aparece com facilidade, em que você sai para viajar, em que você compra casas e põe os filhos em escolas melhores, em que portos, estradas e linhas de metrô são construídas.

O problema parece ser o dinheiro “fictício”. Mas o dinheiro, seja ele qual for, é uma espécie de encarnação do valor, qualquer valor que se possa comercializar. E valor, em geral, nada mais é senão algo que atribuímos a um objeto, idéia ou pessoa quando sentimos desejo ou necessidade por ele. Sendo assim, projeções esperançosas e ambiciosas para o futuro contêm uma carga enorme de valor, sobretudo porque determinam como os objetos do engenho humano estarão dispostos nos tempos vindouros.

Essas expectativas lidam com a incerteza, é claro, e só podem ser transformadas em valor do ponto de vista econômico através dessa figura mágica que é o dinheiro “fictício”. Essa suposição quanto ao valor futuro, essa incerteza inevitável, está na base do conceito de juro, assim como está na base do mercado de futuros. Juros e negociações futuras são estratagemas para internalizar a incerteza e o risco. Eles perdem, desta feita, todo seu mistério e toda sua temeridade, pelo menos em aparência. A incerteza começa a aparecer, dissimulada que é, sob a forma de uma moeda, um valor negociável. Pois é justamente com essa incerteza velada que negociaram você, o sogrão, o banco, a empreiteira e o governo da ilha.

Imagine agora um certo número de grandes jogadores do mercado agindo como você e seu sogrão, mas concorrendo como cães selvagens por um naco de carne, obrigados a se submeter a todos os riscos possíveis para não serem atirados fora pelos investidores. Muito bem, daí saem as crises.

PS: Este assunto me deu vontade de começar uma reflexão de caráter mais ou menos ontológico sobre alguns conceitos econômicos. Os argumentos estão sendo colocados no papel. Quando prontos, irão para o Cálculo Renal. Mas eu aviso.

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Muito bem. Acabou o mundo?

É hoje o dia do buraco negro. Posso programar o texto para sair quando o mundo já não for mais. Sem preocupação com a gramática e a pontuação. Com palavrões e ofensas vulgares. Sem nexo ou assunto. Eu já estarei sugado, minha matéria e minha luz, estarei indefeso, atado a um campo magnético que comprovou o que as religiões já diziam: somos todos um só.

O grande círculo suicida, que não é de giz nem caucasiano, fica logo aqui ao lado. Se pegasse um trem, não desses comuns, mas dos muito velozes, eu poderia ter descido até a Suíça para ser o primeiro a morrer. Que delícia, aniquilar-se à beira do lago Léman! Que os cientistas tenham colocado a humanidade em risco, não discuto. Mas você há de conceder que eles sabem se acabar com classe.

Quanto tempo o buraco negro leva para sugar todo o planeta? A essa altura, é uma pergunta tão relevante quanto qualquer outra. Estamos todos condenados a sumir na consistência pastosa do espaço-tempo, pelo que entendi. Sendo assim, discernir os milésimos de segundo entre minha morte e a dos meus amigos, do outro lado do oceano que vai deixar de existir, conta tanto quando decifrar, por exemplo, as estruturas da percepção. Isto é, a rigor, não conta nada, porque a resposta não vai chegar a tempo de nos esclarecer ainda em vida. Mas convenhamos que é um jeito de passar a espera e atenuar a apreensão.

Noves fora, segue tudo no mesmo. Construir um acelerador de partículas gigantesco é tido por muita gente boa como brincar com o fim do mundo. Concordo, mas tenho que deixar minha ressalva, se permitem os distintos. Que bom abreviar o curso da história. Acaba agora o rame-rame de flertar com a morte, que é no fundo o propósito inconsciente de todo o engenho humano. E terá acabado como acabam todas as coisas: no estouro de seu paroxismo, como os fogos de artifício de Copacabana. Agora que podemos dar cabo de tudo isso, sou a favor, e que seja logo de uma vez.

Só me incomoda uma coisa. A incerteza, a baixa probabilidade, a quase garantia de que, em vez de desaparecer, vamos conhecer mais alguns detalhes sobre os fundamentos do universo. Perdoe a sinceridade, mas assim não vale. Não é isso que queremos conhecer. Já que um possível Armagedom está marcado para hoje, eu teria preferido que me dessem garantias:

“Escute, amigo, o mundo vai acabar, sim, no dia 10 de setembro, 2008, a tal hora”.

Eu teria largado tudo. Você não? Eu lançaria uma sonora banana ao senhorio, tomaria a companheira pela mão, mesmo que ela nem soubesse o que está acontecendo, e partiria em viagem. Dez dias é tempo bastante para conhecer muita coisa. Bastaria alugar o melhor carro disponível, já que não haveria o risco de ter de pagar por ele. Acho que não precisaria nem de mapa rodoviário.

Só é triste não poder voltar e contar aos amigos o que vi. Mas como, tudo terminado, meus ouvintes estariam tão mortos quanto eu, pensando bem, não faz mal. Quem sabe no outro mundo, não? Poderíamos passar a eternidade discutindo viagens. Que maravilha.

Mais uma grande maldade que eles aprontaram, esses físicos sem coração. Saiba você que o evento programado para hoje é só um “teste preliminar”. Que decadência, esse mundo. Bilhões de anos de evolução, para terminar durante um “teste preliminar”. Que fim melancólico, que ironia infeliz. Tenho certeza de que, se pudesse escolher, nosso universo teria pedido para acabar (já que insistem em aniquilá-lo) no dia 21 de outubro, essa sim a data de inauguração oficial do tal acelerador de partículas, quando as coisas vão começar a acontecer de verdade.

Seria inesquecível, se é que alguém pode se lembrar do fim do mundo. Centenas de físicos, centenas de políticos, um punhado de operários, uma sigla (LHC) e um nome pomposo (Large Hadron Collider, ou grande aparelho para jogar partículas hipotéticas umas contra as outras). Sobe um grande líder para dar a ordem, suponho que Sarkozy, que está em todas. Ele faz um discurso com seu habitual olhar de peixe morto. Os cientistas estão impacientes, os operários entediados.

Os jornalistas vão filmando, seguros de que haverá o noticiário da noite. Afinal, a chance de uma falha que cause o tal buraco negro (na verdade, um mini-buraco negro, seja lá o que for isso), ou um strangelet (se existir mesmo e seja lá o que for), ou qualquer outra porção de matéria mundicida, é de uma em dez mil. Melhor garantir a matéria (sem trocadilho) e alguns bons ângulos.

Mas, de repente, algo vai errado. Sem delongas, acaba o mundo. Um estouro: BUM!…? Um murchar: pifff…? A substância do universo escoando pelo buraco negro como a água de uma banheira: grolllll…? Boa pergunta, agora fiquei curioso sobre a sonoplastia do Juízo Final. Espero honestamente ter muito tempo ainda para esse tipo de especulação estéril. Aliás, boa para bares.

Porém, é uma pena, mas este texto não pode continuar. Que sentido teria escrever depois do fim do mundo? Aliás, não só não teria sentido: também não seria possível. Mas, como não espero que ele chegue a ser lido, uma vez que estaremos todos aniquilados nos confins do universo, escrevi de qualquer maneira, sem prestar atenção, sem estrutura, sem nada. Espero que não esteja ilegível demais.

No fundo, é a minha forma de dizer que, mesmo confrontados com a possibilidade de uma morte ignóbil, aliás ridícula, devemos sempre ousar e tomar riscos. E desta vez, nunca desejei tanto alguma coisa quanto a vergonha de expor um texto escrito às pressas, se para isso eu tiver sobrevivido ao desaparecimento puro e simples. Eu e o mundo inteiro, é claro.

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O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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O mal que vem dos Trópicos

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Quase uma confusão terrível. Por pouco, não sou tomado por um risco à saúde pública. Do jeito que a turma anda neurótica por estas bandas, uma quarentena seguida de deportação não estaria inteiramente fora de questão. Durante alguns momentos, estive na berlinda, confundido com uma aberração doentia; lepra, micose, varíola, sei lá o que pensaram que eu tinha. Mas é profundamente desconfortável a sensação que dá quando as pessoas, no máximo de discrição de que são capazes, afastam suas cadeiras de você. O isolamento é doloroso, eu digo. E não passava, claro, de um pequeno mal-entendido.

Melhor começar pelo princípio, manda a prudência. Pois bem. Uma sala de aula ocupada por inteiro, três dezenas de pessoas espremidas em algo como 15 metros quadrados. Lá fora, a temperatura oscila entre frações de grau negativo e uns quebrados positivos. Dentro, a calefação automática exala seu ar pesado e mal-cheiroso, relegado à redundância pelas quase trinta respirações simultâneas. Alguém sugere abrir as janelas, mas os outros recusam. Medo do vento gelado e da chuva fina que às vezes cai.

O professor discorre sobre fenômenos, númens e coisas em si. É bom prestar atenção, para não perder o raciocínio. Difícil, com as alfinetadas do calor debaixo das três ou quatro camadas de roupa; entre a primeira e a pele, o suor se dissemina, desconfortável. Nada pior do que suar no inverno. Tentando não incomodar os demais, liberto-me do paletó opressor. Poucos minutos mais tarde, também parte o colete. É pena, mas tirar a camisa seria passar do limite. O máximo permitido é arregaçar – ou melhor, enrolar – as mangas. Eis o erro.

Área perigosa. Segunda fileira, posição central, bem diante dos olhos do professor. Enquanto transcrevo suas explicações intrincadas, ele lança um olhar involuntário para meu braço. Faz uma pausa, engole em seco, titubeia para voltar ao discurso. Mas é experiente e recupera o fio. À direita, um arrastar de cadeira. À esquerda, outro, um pouco mais violento. Buchichos; o mestre se irrita um pouco. Demoro a entender que a culpa é minha, mesmo quando dá a hora e todos se levantam.

Enquanto visto de volta as peças que arrancara em desespero, aproxima-se meu velho amigo Germain. Com a delicadeza que lhe é particular, tenta sorrir. Ofereço-lhe a mão para um cumprimento, mas ele, embaraçado, faz de conta que tem as suas ocupadas. Um ato desajeitado, que só fez sentido mais tarde. Tento não demonstrar que entendi. Germain, esforçando-se por não se aproximar demais, acompanha meus gestos com os olhos esbugalhados. Confesso-lhe minhas dificuldades com a aula. Ele não ouve; ao contrário, emenda uma questão envergonhada, em seu estilo pouco natural de falar, cheio de volteios literários e eufemismos estilísticos.

– Caro amigo, desculpe perguntar; quando você visitou seu país [ele sempre chama o Brasil de “meu país”], parece que cometeu uma pequena imprudência…

Nem preciso dizer que fiquei surpreso.

– Que imprudência, Germain?

– Estou certo de que existem avisos nas praias, para informar quando estiverem impróprias para o banho… Sua saudade era tão grande assim, a ponto de mergulhar em águas poluídas?

Só pude sorrir. Contei-lhe que não mergulhei em praia nenhuma. Nem própria, nem imprópria. Passei ao largo do fato de que os avisos aos banhistas só vêm pelos jornais e, mesmo assim, sem grande clareza. Expliquei que choveu o tempo inteiro nessas duas semanas, não deu praia, para meu desespero. Aliás, não me lembro que expressão usei para “dar praia”. Deve ter sido algo como “as condições não eram propícias”.

Germain alçou as sobrancelhas. Duvidava de mim. Sua incredulidade foi mais surpreendente do que ofensiva. Jamais ele havia colocado restrições a alguma declaração minha. Parecia absurdo que, de repente, ele resolvesse descrer assim. Percebi um movimento em seus lábios. De bem conhecê-lo, soube, desde o primeiro momento, que ele ruminava uma maneira de abordar o assunto incômodo sem causar ferimentos em minha sensibilidade.

– Desculpe, erro meu; pensei isso por causa da doença que te aflige…

Não há doença alguma que me aflija neste momento. Germain percebeu a interrogação desenhada entre meus olhos e se embaraçou. Gaguejou acintosamente e enrubesceu. Jamais eu o vira nesse estado. Quando, condoído, resolvi partir em seu socorro, ele se adiantou, inspirou profundamente e retomou o prumo. Delicadamente, admitiu a origem de sua idéia.

– Quando você enrolou a manga, pude ver o estado da pele… É terrível, quero que você saiba o quanto sou solidário!

Não foi de imediato que liguei os fatos. Quando o fiz, caí na risada. O professor, ainda na sala, me encarou, assustado, e escorregou para fora num instante. A expressão de Germain era toda enigma. Nas duas semanas em que estive no Brasil, de fato não deu praia; houve um único dia de sol. Nesse dia, eu estava nas montanhas. Sol de montanha, bem se sabe, é terrível. Fiquei vermelho, meus ombros ardiam, o peito do pé doía enormemente.

E como explicar para Germain que eu estava apenas descascando? Nem conheço a palavra francesa para “descascar”, nem, pelo visto, o sol da Côte d’Azur, do país basco e da Bretanha são capazes de fazer um banhista trocar de pele no dia seguinte. Tentei lhe explicar o princípio do descascamento: o sol bate, a gente esqueceu a loção 30, a pele vai escurecendo, às vezes fica vermelha, não passamos hidratante (bom, alguns passam…). Dá uns dias, a pele forma umas bolhas, pronto: descasca. Perfeitamente natural.

As sobrancelhas de meu amigo seguiam arqueadas; em sinal de dúvida, sim, mas sobretudo de asco. Esse papo de pele que descasca é coisa de bárbaros tropicais. As epidermes européias podem ficar encardidas, ásperas ou transparentes, mas, pelos céus!, jamais descascam. Nada disso ele formulou explicitamente, claro, mas pude ler por trás de seus olhos cinzentos. Era algo que ele preferia jamais ter aprendido. A esse ponto, eu já me divertia como uma criança; como uma criança, decidi torturá-lo.

Arregacei a manga novamente e anunciei: “vou te mostrar…” Germain é ágil, não me deu nem sequer o tempo de puxar a primeira pontinha de pele morta. Agradeceu, lembrou-se de algum compromisso e projetou-se porta afora, deixando-me de pé, sozinho na sala, brincando de descascar e rindo até cair no chão. Só consegui me controlar muito tempo depois, quando lembrei do professor: a essa hora, o sinistro filósofo poderia estar ao telefone, denunciando um aluno contaminado para o Ministério da Saúde.

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