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Se um estoura, estouram todos (ou O Sapo de La Fontaine)

Sapo gordo prestes a estourar (La Fontaine)
É feio dizer “eu avisei” ou “eu já sabia”; mas acontece que, bem, eu avisei. E eu já sabia. Com as ferramentas rudimentares do raciocínio econômico que tinha aprendido a manusear ao final de uma formação quase involuntária, consegui provar por A+B que, não importa em que direção aponte o gráfico de crescimento do PIB brasileiro, a cidade de São Paulo caminhava com destino certo para o colapso definitivo. Isso, perdoe reiterar, é o que eu dizia há coisa de cinco anos. Mas só hoje, ao tentar discutir soluções para o problema do trânsito, a sociedade e seus governantes percebem o óbvio.

Bem que tento conter o impulso de me vangloriar. Mas lembro dos fins-de-tarde nos botecos da Augusta, contemplando a guerra entre carros, motos e ônibus, tomando cerveja gelada enquanto os afoitos profissionais derretiam na tentativa de voltar a casa; lembro dos amigos a rir, já altos, da exposição detalhada de minha teoria. Lembro que eles consideravam impossível duas tendências opostas darem o mesmo resultado. Enfim, só quero lembrar a eles que estava tudo previsto.

Aqueles meus cálculos contemplavam duas possibilidades, ou seja, um Brasil em franco crescimento econômico, digamos, quase um novo milagre; ou um Brasil estagnado, irremediavelmente estagnado, pior ainda do que foi nos anos 80 e 90. Em ambos os casos, a própria concentração pantagruélica de riqueza na terra que um dia teve garoa se encarregaria de sufocá-la. Vejamos, em primeiro lugar, o que aconteceria se o país não conseguisse retomar o crescimento:

À primeira vista, a idéia não parece má para a vida paulistana. Sem crescimento econômico, vendem-se menos carros, constroem-se menos arranha-céus, menos pessoas se espremem nas plataformas do metrô, menos aviões chegam e partem de Congonhas. Olhando assim, não parece terrível, para a cidade de São Paulo, que o país siga estagnado. Acontece que, como de hábito, a coisa não é tão simples. Mesmo estagnado, o país produz novas pessoas; é gente que precisa encontrar trabalho e, como já se viu durante décadas em nosso país, vai atrás dele onde ele está. Conseqüência: o fluxo de gente em desespero, fugindo da miséria, que chegaria em São Paulo em busca de emprego não deixaria de aumentar. A cidade ficaria ainda mais apinhada, mais favelizada, mais desigual e, bem provavelmente, mais violenta. Em duas palavras, ela sufocaria.

E se o país enriquecesse, (sem redistribuir a economia pelo território)? Nesse caso, o crescimento dos investimentos, o aumento da renda, a queda do desemprego, a pressão por novos empreendimentos – em resumo, tudo que acompanha o crescimento econômico vigoroso – tornaria a cidade intransitável em dois segundos. E irrespirável, naturalmente. O horizonte sumiria de vez, as aeronaves se chocariam, tentando pousar no meio da cidade, o barulho de helicópteros ficaria insuportável; no metrô, um grito de “fogo”, “rato” ou “tarado” causaria uma onda de choque que atiraria os cidadãos mais próximos da linha sobre os trilhos eletrificados (já é assim). O caos, que estava evidente para qualquer um com o mínimo senso de civilização, ficaria patente.

Na última semana, li diversos comentários sobre os recordes de engarrafamento em São Paulo. 180 quilômetros, 190, 200, 220. O metrô teria sido uma solução, mas é tarde, não dá tempo. Tampouco bastaria a proposta de pedágio urbano: por falta de opções, os carros pagariam, mas continuariam circulando quase tanto quanto hoje. Há mais de dez anos, li que o prejuízo com o trânsito, só em São Paulo, passava da casa do bilhão e meio de dólares por ano. Hoje, deve ser o triplo disso. Já era uma cidade em que eu não conseguia trabalhar direito, porque já chegava “no serviço” (como se diz) esgotado. Hoje, tremo de lembrar.

A única solução para São Paulo e, de maneira geral, para o Brasil e suas metrópoles, é repensar nossa lógica econômica. Precisamos tomar consciência de nossa dificuldade em romper com a tradição do Convênio de Taubaté. Eis o ponto-chave nefasto de nossa história, que escancarou, em papel passado, nossa escolha pelo latifúndio. Passamos dos cafeicultores aos industriais, depois aos bancos, mas ainda somos os mesmos. Queremos concentrar a lavoura (em sentido metafórico), queremos crescer com a energia que sugamos dos vizinhos, e ainda acreditamos demais em superlativos: de que vale termos o maior estádio, a segunda maior frota de automóveis e terceira de helicópteros, a maior sala de concertos, as maiores cidades? Do outro lado, o país ainda produz miséria, ignorância e barbárie em profusão. Voltando à realidade de São Paulo, temos uma Berrini que vai se verticalizando, enquanto, ao nível do solo, a vida é, há tempos, insuportável. Má escolha.

Sem desconcentrar a economia, integrar o país e desenvolver as regiões, ou seja, o território como um todo, o país e sua maior cidade estão condenados. É o anátema da cobiça. Mas isso é apenas o evidente. São Paulo, primeiro, cresceu como centro industrial e era um modelo para o resto do país; locomotiva, dizia-se. No meio do caminho, o maquinista parece ter exagerado no carvão; achacado pelo espírito do Convênio de Taubaté, depenou das tábuas os demais vagões, para continuar acelerando. A cidade se pôs a concentrar o setor financeiro, o cultural, o varejista, o esportivo, o editorial, o aéreo…

Faz lembrar o sapo da fábula de La Fontaine, que queria ficar do tamanho de um boi. Foi se enchendo de ar, cresceu, cresceu, até que estourou. No caso de Sampa, o maior problema é que tem um país em volta. Se um sapo estoura, estouram todos. Parece que a barriga do bicho já apresenta algumas rachaduras preocupantes. E as perspectivas de crescimento para o PIB brasileiro em 2008 vão além dos 5% de 2007. Não tem metrô, pedágio ou rodízio que sirva de esparadrapo para um sapo tão inchado.

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O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

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