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A origem insuspeita da crise econômica

Cuidado ao criticar Wall Street. A crise financeira mundial pode ser culpa sua. Pode ter começado, certo dia, quando um amigo, desses que trabalham no governo ou no setor financeiro, vem lhe contar de um pequeno país caribenho, uma ilha parcamente habitada, que acaba de anunciar o projeto de construir um aeroporto ultra-moderno. Com isso, a ilhota, até agora de destaque apenas na produção de conchinhas ornamentais, é garantidamente a próxima coqueluche do turismo internacional.

Barbada, você pensa. Os terrenos ainda se compram a preço de banana, os grandes resorts ainda não tomaram suas decisões de investimento, a hora é agora. Impossível perder dinheiro. Quem investir vai virar milionário. Com os olhos brilhando, vocês juntam um grupo de dez camaradas dispostos a investir, no total, um milhão redondinho de dólares em terrenos na ilha. Colocando em termos cartográficos, dá metade da superfície do país. Quando os hotéis e mansões resolverem correr atrás da carniça, vão ter de desembolsar o dobro. E quem vai ganhar nessa são vocês, investidores atentos. Brilhante!

Seu problema passa a ser, naturalmente, como arrumar cem mil dólares. Um bom dinheiro, que você, é claro, não tem. Pelo menos não assim, disponível. Felizmente, você se lembra então de um personagem que nunca o deixou na mão, tendo inclusive lhe adiantado mil pratas no ano passado, quando o guri quebrou o braço num acidente de patinete. Viva o sogrão!

No almoço do próximo domingo, você expõe seu projeto ao sogrão, carregando nas emoções. Sogrão ouve atento e lhe responde que cem mil não é trocado, é muito mais difícil de emprestar que mil, não dá para abrir mão desse dinheiro todo de uma vez só. Mas você já sabia que o empréstimo não sairia de mão beijada. Já preparou uma proposta que lhe parece bastante boa para ambas as partes. Promete pagar, ao final de dois anos, cento e dez mil dólares. Por gratidão. Traduzindo para a linguagem racional das contas financeiras, são cinco porcento ao ano. Nada mal, pelo menos para uma economia estável.

Mas ainda existe um risco nesse negócio. Sogrão quer algum tipo de garantia, ele precisa de segurança, esse é um prejuízo que ele não tem musculatura financeira para engolir. Você tem algum bem que valha cem mil dólares? Claro! Sua casa, pequena e suburbana, mas agradável e sua, está avaliada mais ou menos por esse valor. Verdade seja dita, você ainda não conseguiu se livrar da hipoteca. Mas a casa lhe pertence, é lá que estão seus objetos queridos, é lá que vive sua família amada. Além do mais, com os lucros da ilha, você paga o sogrão, a hipoteca, a dívida do pôquer e a faculdade do guri.

Para sua felicidade quase incontrolável, o sogrão aceita, contanto que tudo seja posto no papel. Problema nenhum, é assim mesmo que tem de ser. Ele lhe pede uma semana para fazer a transferência. É claro que ninguém deixa esse dinheiro todo dormindo na conta corrente.

No dia seguinte, seu sogrão vai ao banco com uma proposta para o gerente. Considerando a trajetória do mercado imobiliário nos últimos anos, a casa que você lhe prometeu em garantia deverá valer cento e oito mil dólares daqui a dois anos. O sogrão se compomete a entregar daqui a dois anos um bem que vale cento e oito, recebendo agora cem. Nada muito diferente do negócio que você fez com o mesmo sogrão, mas com uma perspectiva um pouco diferente. Afinal, o banco pode projetar um aquecimento maior do mercado imobiliário para os próximos dois anos, o que faria o tal bem, que seu sogrão vai entregar por cento e oito, valer cento e doze.

Mais importante ainda, vale mais a pena para o banco contar com uma promessa de pagamento de cento e oito do que com líquidos cem na mão, porque, ao contabilizar os cento e oito no balanço, é possível liberar uma porção maior dos depósitos dos correntistas para comprar as ações de uma determinada empreiteira no mercado futuro. E essa empreiteira, qual seria, senão a que foi contratada para tirar do papel o aeroporto na pequena ilha? Indiretamente, sem saber, você ajuda seu próprio sonho a se tornar realidade quando pede o empréstimo ao sogrão. Afinal, com seus múltiplos projetos ao redor do globo, a empreiteira não tem caixa para fazer a obra. Mas tem uma estrutura sólida e um excelente valor de mercado. Por meio de uma oferta pública de ações, não deve ter problemas para se financiar. Nunca teve. Com garantias como a sua casa, bancos como o do sogrão fornecem o dinheiro de que a empresa precisa. Felizmente!, porque o governo insular conta justamente, veja só, com a venda de seus terrenos valorizados para pagar pela obra, ao final de sua execução.

Tudo está bem, tudo está em equilíbrio. Nenhum dinheiro de verdade entrou em jogo porque ele simplesmente não é necessário. Basta a expectativa de algum valor ser gerado para colocar em movimento uma grande ciranda de operações econômicas. A essa expectativa corresponde um dinheiro imaginado, suposto, para não dizer fictício, o que seria maldade.

É claro que muita coisa pode dar errado, mas todos os envolvidos estão cientes. Um furacão pode varrer a ilha. Uma revolução. A descoberta de uma doença misteriosa. Um sócio que foge com o dinheiro de vocês. Mas para todos esses casos, a princípio, há solução. Um seguro contra eventos naturais e políticos. Um outro empréstimo, para cobrir a perda iminente da casa. A venda de um ativo da empreiteira. A emissão de títulos, pelo banco, e moeda, no caso do governo da ilha. Não há por que ter medo. Passado o susto, você negocia com o sogrão, que negocia com o banco, que negocia com a empreiteira, que negocia com os mandatários da ilha. Tudo muito civilizado, para que as obras possam finalmente ter lugar.

A não ser, é claro, que todo mundo tenha esticado demais a corda. Se a ilha estiver considerando que vai vender todos os terrenos disponíveis a preços satisfatórios. Se o fluxo esperado de turistas estiver mal calculado. Se a empreiteira apertar o orçamento e esperar um preço irracionalmente alto para suas ações. Se o banco não tiver em reserva o suficiente para cobrir os saques dos clientes. Se o sogrão avaliar com benevolência demais o valor da casa. Se você tiver confiança excessiva em sua capacidade de quitar a hipoteca.

Basta que o mercado desconfie das projeções de construção de hotéis na ilha, digamos. O governo, ao se ver incapaz de pagar pelo aeroporto, emite moeda e causa inflação. Os acionistas fogem da empreiteira. As ações caem. O banco perde liquidez, quer resgatar seus empréstimos, mesmo com taxas menores. A empreiteira precisa do dinheiro, corre atrás de empréstimos, a oferta escasseou, os juros sobem como um foguete. Juros altos, o mercado imobiliário esfria. As casas perdem valor. As hipotecas se tornam mais caras. O sogrão tem de pagar o banco, mas sua garantia de cem mil caiu para setenta. Você acaba tendo de lhe ceder também seu carro, mas continua endividado ainda assim. O sogrão também, por sinal, apesar do novo bólido. O banco não consegue cobrir os saques, tenta vender ações, elas estão em baixa. A empreiteira não consegue empréstimo, pede concordata. A ilha fica sem aeroporto, sem turistas, mas cheia de dívidas, inflação e terrenos baldios, além das conchinhas multicoloridas. Mas ninguém mais quer os terrenos. Aquele milhão de vocês vale agora menos de seiscentos mil dólares. Eis o desastre. Sem contar com os trabalhadores da ilha que já planejavam comprar eletrodomésticos, pagar dívidas, expandir casas…

O sistema financeiro funciona, em grande medida, dessa maneira. Uma cadeia interminável de projeções, expectativas, apostas, dívidas, equilibrando-se umas nas outras. Uma série de regras tentam obrigar as grandes corporações a manter alguma reserva, um certo resguardo. Mas em situações calmas, sobretudo quando esse tipo de garantia existe, um volume financeiro mantido imóvel soa como um atentado ao bom senso. Um pouco mais de risco permitiria investimentos que gerariam riqueza ao redor do planeta. E o planeta precisa de riqueza. Com uma concorrência tão cruel, quem fizer provisões para tempo de tormenta acaba ficando no meio do caminho.

O fato de supor um dinheiro que não existe soa assustador, claro. Mas não há outra maneira. Existe um efeito multiplicador da moeda que faz com que cada dólar impresso se transforme em dezenas na dita ciranda financeira. Deveríamos dizer, talvez, castelo de cartas financeiro. Uma que saia do lugar derruba o edifício inteiro. Isso não deveria ser tão alarmante quanto provavelmente fez parecer a forma em que foi expresso. O capitalismo sempre avançou aos trancos. São os ditos ciclos de crescimento, que culminam em crises, e assim por diante. Se não houvesse um sujeito como o sogrão, que especula entre o banco e você, não haveria esse dinheiro, o fictício, então não haveria crises. Mas tampouco haveria ciclos de crescimento, esses em que o emprego aparece com facilidade, em que você sai para viajar, em que você compra casas e põe os filhos em escolas melhores, em que portos, estradas e linhas de metrô são construídas.

O problema parece ser o dinheiro “fictício”. Mas o dinheiro, seja ele qual for, é uma espécie de encarnação do valor, qualquer valor que se possa comercializar. E valor, em geral, nada mais é senão algo que atribuímos a um objeto, idéia ou pessoa quando sentimos desejo ou necessidade por ele. Sendo assim, projeções esperançosas e ambiciosas para o futuro contêm uma carga enorme de valor, sobretudo porque determinam como os objetos do engenho humano estarão dispostos nos tempos vindouros.

Essas expectativas lidam com a incerteza, é claro, e só podem ser transformadas em valor do ponto de vista econômico através dessa figura mágica que é o dinheiro “fictício”. Essa suposição quanto ao valor futuro, essa incerteza inevitável, está na base do conceito de juro, assim como está na base do mercado de futuros. Juros e negociações futuras são estratagemas para internalizar a incerteza e o risco. Eles perdem, desta feita, todo seu mistério e toda sua temeridade, pelo menos em aparência. A incerteza começa a aparecer, dissimulada que é, sob a forma de uma moeda, um valor negociável. Pois é justamente com essa incerteza velada que negociaram você, o sogrão, o banco, a empreiteira e o governo da ilha.

Imagine agora um certo número de grandes jogadores do mercado agindo como você e seu sogrão, mas concorrendo como cães selvagens por um naco de carne, obrigados a se submeter a todos os riscos possíveis para não serem atirados fora pelos investidores. Muito bem, daí saem as crises.

PS: Este assunto me deu vontade de começar uma reflexão de caráter mais ou menos ontológico sobre alguns conceitos econômicos. Os argumentos estão sendo colocados no papel. Quando prontos, irão para o Cálculo Renal. Mas eu aviso.

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De dois plátanos

Platano
Bem no meio da região conhecida Batignolles, existiu até meados do século XIX um terreno largado, coberto de lixo deixado pelos fazendeiros do entorno, em suas idas e vindas para os mercados da capital. Não havia o menor motivo para prestar atenção no que houvesse sobre os tufos de grama anêmica. Eram objetos esquecidos, indesejados, pontilhando o espaço entre umas poucas árvores quase desfolhadas, tortas, irrelevantes.

Do dia para a noite, Batignolles se tornou um naco do 17o arrondissement de Paris, pelas ordens de Napoleão III (“o pequeno”, segundo Zola). Pequeno ou não, o sobrinho do diabo corso mandou transformar em parque aquela área perdida no meio de seu novo e estimado bairro burguês. Dando seguimento a uma folclórica fixação sua, quis algo no estilo inglês, em que os caminhos são curvos e a grama, impecável. Encarregou seu paisagista preferido, Jean-Charles Alphand, de canalizar a água e criar um córrego com pequenas cachoeiras e pontes, dando num lago artificial para os patos e cisnes negros que passariam a viver ali. Um canto para crianças, caminhos tortuosos, grama capinada e árvores substituídas, uma pequena estufa para uma única pequena árvore, trazida da Ásia e coberta de folhas até hoje. Alphand era um homem muito competente. A square Batignolles, século e meio depois, é um lugar delicioso para ver o tempo passar, pelo menos quando não faz muito frio.

De casa até lá, ando pouco mais de dez minutos. Um caminho que já percorri um sem-número de vezes. Sempre que precisei de sossego, inspiração, verde, rostos. É o lugar em que vivem os tais plátanos sobre os quais venho prometendo escrever desde o início do mês. São dois. Caules robustos e negros implantados com firmeza na terra, um ao lado do outro, seus galhos espalhados a uma distância desrespeitosa. Cobrem o lago inteiro, servem de pouso e guarda-sol para as aves, recortam a vista do céu como se quisessem nos lembrar de que a vida real está aqui, colada ao chão, e as copas das árvores mais vetustas são seu limite.

Até a última vez em que os vi, jamais tinha percebido que eram dois. Contemplava o emaranhado opulento de madeira escura e era só o que via: um emaranhado opulento de madeira escura. Desta vez, por acaso, e essas coisas só acontecem por acaso, vi-me parado diante de um dos troncos, que eu não conseguiria abraçar sozinho. Pude observar as ranhuras da casca, as reentrâncias na madeira, as cicatrizes do tempo, que acumula madeira em camadas, como uma vela que vai derretendo. Mas quanto tempo? Pensei que jamais saberia. Até que avistei, distraído, uma plaqueta verde pendurada, quase invisível. E descobri que se trata de uma árvore de 1860.

Aquele plátano silencioso mudou de figura no mesmo instante. Seu nascimento precedia de alguns anos o do próprio parque. Foi plantado pelo vento, não pelo homem, a quem só coube a sabedoria de não derrubá-lo e incluí-lo em seus cálculos. O lago recebeu seu formato tal como é simplesmente porque, com o tempo, uma bela árvore cresceria e abriria os galhos sobre ele, como asas de um cisne sobre os filhotes. Alphand subiu no meu conceito: além de paisagista competente, não comungava do maior vício de seu tempo, que era a fé doentia na razão e no planejamento humanos. Essa presunção estúpida, que derrubou monumentos e matas, teria levado qualquer engenheiro da época a impor ao lago o traçado de seu esquadro. Mas Alphand considerou que dali a 150 anos um plátano valeria mais do que uma piscina, e cedeu. Com toda razão.

E não foi a última conclusão que tirei do passeio. Mais uma meia-dúzia de passos e fui surpreendido com a informação de que não havia um plátano, mas dois, como eu já disse. Esse segundo tinha o caule ainda mais largo, escuro e áspero. Um grande buraco, à altura de meus olhos, banhava em breu o coração da árvore e revelava o heroísmo com que ela se mantinha de pé. Aquela imagem de força e decrepitude tinha a singular qualidade de ser ao mesmo tempo bela e sublime, se é que os guardiães da Estética me permitem falar assim.

Em seguida, procurei conferir a idade. A placa me deu mais informações do que eu precisava. Seus poucos numerais explicavam que já crescia a árvore antes mesmo de a região entrar para Paris. Os vendedores que atiravam seu lixo sobre a grama o faziam nas redondezas de um jovem plátano. Enquanto Haussmann botava a capital abaixo, folhas nasciam e caíam dos mesmos galhos, em obediência às leis da primavera e do outono, da mesma maneira como as vejo agora.

A regularidade do ciclo biológico não foi alterada nem com as barricadas de 1848, nem com os alemães desfilando pelas Champs-Élysées em 1870, nem com a violência da Comuna, no ano seguinte, nem com a chegada dos nazistas. Tudo isso nada significou para nenhum dos plátanos. Se a Sorbonne parou em 68 e em 2006 (mal comparando), os plátanos nem ficaram sabendo.

De repente, surpreendi meu pensamento nas palmeiras imperiais do Jardim Botânico, enfeitando os caminhos desde que éramos colônia. Quietas, belas, soberanas, enquanto tivemos golpes, ditaduras, escravos e reis, miséria e milagre. Lembrei de D. João VI e do hábito que temos de retratá-lo como glutão e ligeiramente retardado. Que seja, mas então são as palmeiras de um retardado que nos ligam com maior clareza a nosso passado, leia-se nossa história.

De lá para cá, derrubamos o morro do Castelo, abrimos a avenida Rio Branco, demolimos os prédios elegantes que lhe enfeitavam o entorno. Mudamos de capital, de regime, várias vezes de vocação econômica, ao sabor de caprichos nacionais. E as palmeiras balançando ao sabor de ventanias e chuvaradas. Neutras enquanto nossos pais e avós as contemplavam e deixavam de contemplar, elas acompanharam nossos nascimentos e mortes. Exatamente como esses dois plátanos que uma dúzia de crianças agitadas, dois passos à minha frente, tenta desenhar para um trabalho de escola. Plantados no mesmo lugar desde Napoleão III, até Sarkozy e sabe Deus quem mais.

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