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A morada dos insumos

Tomara que eu não seja o único a se entristecer com a lembrança de algumas idéias que o último século aplaudiu longamente, como o princípio de Le Corbusier segundo o qual a casa é uma maquina de morar. Suspiro: no raciocínio do mundo ultra-industrial, o ser humano é um insumo de produzir. Você e eu, já sabemos, somos recursos humanos; o que não podemos esquecer é que, no frigir dos ovos, somos antes recursos que humanos. E podemos deixar nossa humanidade na soleira da porta ao entrar, façamos o favor.

Pois a Biblioteca Nacional da França está situada no meio de um punhado dessas máquinas de morar. Nelas, vivem centenas, talvez milhares de pequenos insumos felizes da vida, modernosos, hoje talvez menos contentes com a ameaça de verem evanescer seus empregos (nome que damos às linhas de montagem onde insumos desse tipo são utilizados). A própria biblioteca é uma máquina de sentar e ler, mas uma máquina que funciona muito mal, ou seja, é um desastre arquitetônico que merece um texto só para elencar a infinidade de seus problemas.

À noite, quando finalmente consigo vencer todas as etapas para sair da caverna de livros (já falei que é um desastre arquitetônico? Se já, peço desculpas), sou obrigado a atravessar um quarteirão enorme desses edifícios metálicos. Construídos como máquinas, lar de famílias e yuppies cuja estratégia talvez seja sentir-se em casa no escritório ou vice-versa. E me dá um desconforto, um frio na espinha, uma tristeza, como se uma epidemia de circuitos e transístores tentasse se apropriar da minha pobre carne ainda muito humana.

Tenho ganas de correr, chegar mais rápido ao buraco do metrô, ou desviar pela beira do rio. Ou ainda, tapar as orelhas e saltitar aos berros, renunciar à sanidade para guardar, ao menos, o lado biológico do que faz de mim um ser humano, seja lá o que isso for. Só fico aliviado quando estou enfim sentado ao fundo do trem na linha 14, a mais avançada da cidade, única em que a abertura das portas é automática e o condutor foi substituído por um software em funcionamento ininterrupto numa sala bem no centro da Terra. (Às vezes duvido que essa versão seja verdadeira. No centro da Terra? Uau!)

Não culpo Le Corbusier, é claro. Ele fez sua declaração nos anos 20, quando a ideia que se fazia da máquina ainda era de algo fechado numa sala, a ativar e desligar conforme as necessidades da produção, apuradas em grandes painéis estatísticos, que uma legião de especialistas controlava de um mezanino acima da fábrica, a decidir em que ritmo Carlitos teria de torcer suas porcas. Os arquitetos das gerações seguintes propuseram, e continuam propondo, suas máquinas segundo princípios de conforto e funcionalidade muito bem calculados, tão precisos que os contemporâneos de Le Corbusier não sonhariam. Nem mesmo Oscar Niemeyer, e talvez seja por isso que nosso gênio nacional desistiu da arquitetura para se tornar um grande desenhista de fachadas inverossímeis (mas eventualmente postas de pé por gente que não entendeu bem o princípio). Resultado: os prédios de apartamento de hoje são, muitas vezes, indiscerníveis dos escritórios.

Por sinal, aí está o mais curioso: não me incomodam tanto os prédios comerciais em grandes blocos de vidro, com suas torções futuristas e grandes jatos de néon, lisos e limpos, voltados para o céu, as janelas mais altas vedadas para impedir o salto dos banqueiros arruinados. Sinto-me perfeitamente confortável no meio desses espigões onde, de fato, a pessoa é um insumo, um recurso humano a ser administrado com tanto zelo quanto o suprimento de papel para as impressoras do departamento. Se vou a La Défense, uma espécie de Berrini que funciona, a oeste de Paris, a única coisa que me incomoda é o monstruoso polegar que César (o escultor, não o ditador) implantou no meio de uma praça de concreto (outra das manias contemporâneas que não compreendo). Mas essa é uma obra de arte feita com o propósito claro de me perturbar, sugerindo um titã soterrado e doido para ter sua vingança. Não creio que qualquer um dos insumos ameaçados desconfie do que o espera quando passeia em torno da escultura.

A pergunta que se impõe agora é: por que a arquitetura metida a futurista incomoda tanto na residência e tão pouco do escritório? Talvez porque a fachada e as paredes manifestem a mesma dinâmica do tempo daquilo que se passa em seu interior. O escritório, o edifício comercial, existe em função do futuro: o lucro é sempre futuro, os negócios que interessam são sempre os do futuro, o produto que importa é o que vai ser lançado no futuro. O lucro do passado não importa mais, senão como ativo para novos investimentos (no futuro); os negócios do passado caducam tão logo desaparece seu potencial de gerar receitas no futuro; o produto do passado é encalhe, vergonha, fracasso. A aparência, aliás toda a atmosfera das construções onde se passam os negócios, precisa ter um aspecto de amanhã, como se para lembrar a seus ocupantes que é para o amanhã que seus olhos têm de estar voltados. Sempre, sempre, sempre.

A residência não existe em função do futuro, mesmo se é necessário garanti-lo, migrando diariamente para o outro lado da cidade em busca da comida que se colocará na mesa. Mas isso nem chega a ser presente, porque a comida que realmente interessa é aquela que se come agora, ou no máximo enquanto ela durar na geladeira. Comparado aos grandes negócios e ganhos que se preparam nos escritórios, o futuro da vida habitacional e humana parece pálido e banal: o envelhecimento e a morte, a vinda e o crescimento das crianças. Esse futuro é tão inevitável e corriqueiro que não vale como função para a existência.

É por isso que a vida nas residências é voltada em outra direção. É ela que trata do presente. De reproduzir a vida, garantir o ciclo a partir do qual, em outro canto da cidade, uma fixação com o futuro poderá brotar, como que espontaneamente. E para quem sentiu falta do passado, calma: reproduzir a vida significa trazê-la do passado para o presente. É entregar, por exemplo, às crianças um pacote com o mundo tal como ele era antes que elas chegassem, é recuperar na memória ou no diálogo as ferramentas para lidar com a incerteza que o tempo apresenta à medida em que escorre.

Até coisa de duzentos anos atrás, isso era tudo que existia. É por isso que antigos eram tão apegados à tradição: suas vidas se fundavam na construção reiterada de um tempo passado. Depois vieram a modernidade, a indústria, a comunicação de massa. Quisemos fundar nosso mundo num olhar para o futuro. E de fato o fundamos. Mas o sistema vem com uma falha esquisita, um esquecimento, alguma coisa que falta. Só é possível manter seu funcionamento enquanto as máquinas estão ativas. Deixados à própria sorte, os insumos vivos retornam a seu estado bruto, voltados preguiçosamente para seu presente e seu passado. São saudosos, melancólicos, tacanhos, e se usados em excesso, podem acabar reacionários. Sim, o obscurantismo nada mais é do que a fadiga do material.

Para garantir o bom movimento em cada instante da existência de seus recursos, a lógica futurista precisa se assegurar de que as máquinas nunca estão desligadas. Sempre há alguma por perto. Encerrado o expediente, largadas as máquinas de produzir, toma-se a máquina de transportar, para a máquina de morar, com a máquina de divertir e a máquina de informar, antes da máquina de comer e, aos sábados, a máquina de se embebedar. Le Corbusier, quando imaginou sua singela maquininha, certamente não esperava tanto.

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Litania para o capital

Fuçando nos arquivos mais recônditos deste HD, acabei encontrando a brincadeira que segue abaixo. Foi escrita quando eu estava na faculdade (e, aliás, este HD nem fabricado era), para provocar meus colegas corretores da Bovespa, que andavam um tanto nervosos, conseqüência de alguma dessas crises por aí.

Lembro-me particularmente de um desses meus amigos, a quem perguntei, por pura gaiatice, já sabendo a verdade, se a corda estava apertando demais o pescoço da empresa em que ele trabalhava. (A tal empresa foi absorvida por outra bem maior, poucos dias depois.)

Pois bem, a resposta do rapaz foi adorável: “Agora, só resta rezar.”

Passei o dia imaginando como rezariam os colegas do rapaz, logo antes da abertura dos negócios, à espera do retinir do sininho. Seria como uma grande celebração, engravatados de joelhos, mãos unidas, ar de introspecção. Aos poucos, vai se erguendo uma voz coletiva, um grande uníssono, para este que, em nosso século, tomou o lugar que já foi de Deus e outros deuses.

Enfim, segue abaixo um esboço do que clamariam os infelizes. Já vou avisando a Duncan Niederauer que cobrarei os direitos autorais se ele quiser adotar a nova oração nas cerimônias da NYSE.

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Litania para o capital

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Ó Vós, que permitis, divinamente,
A implosão de todo patrimônio!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que sois pai de todas as Bolsas,
idolatria de derivativos!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que distribuís as sementes
da fortuna e da fome, cegamente!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós que podeis prever o porvir
daqueles que abdicam de consumir!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Vós que negais os frutos do trabalho,
escutai as preces do investidor:

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  • Concedei-nos cobrir as perdas!
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Da urna aos muros

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Quarta-feira, cinco de novembro, oito horas da noite. Entranhas da Gare Saint-Lazare, estação do oitavo arrondissement de Paris. Uma mulher de meia-idade, cabelos brancos e bem curtos, destaca-se da multidão, quase despercebida. Ela escreve com uma caneta pilot negra sobre o fundo branco de um painel publicitário, em movimentos tranqüilos e seguros. Ninguém a incomoda.

Tendo-a avistado à distância, logo penso se tratar de um membro do grupo anarquista que ataca propagandas por toda a cidade, na missão de denunciar o consumismo e a lavagem cerebral. Mas é uma surpresa: eu pensava que os ativistas underground fossem todos muito jovens. Ao menos o são os que, vez em quando, acabam apanhados pela segurança e sofrem processos por dano a propriedade.

A corrente de viajantes vai passando aos encontrões, sem espiar a mulher resoluta em seu discreto vandalismo. Um fluxo penoso, sem ritmo, mil rumos sem direção. Como sangue empurrado por um coração fora de compasso.

Entre pastas, meias de seda e capotes, só uma pessoa interrompe a marcha para ler a mensagem: outra mulher de meia-idade, mas de cabelos anelados, tingidos de vermelho berrante.

Quando a ativista termina seu texto, estou quase perto o bastante para ler. A fulva espectadora sorri de leve. A autora anui de um gesto brusco da cabeça. Um sorriso e ela tampa a caneta. Está claramente satisfeita com o serviço. Pode voltar a seu caminho.

Já estou bastante próximo para enxergar a mensagem. Sobre o anúncio de sapatos elegantes, lê-se:

À quand un Obama ici?

Uma constatação de como a onda azul está espalhada pelo mundo. A onda que venceu, como não venceu a verde, de Gabeira, no Rio. A francesa engajada, figura tão peculiar deste país, queria um Obama para seu país.

Nações diferentes, histórias diferentes, contextos diferentes. Um Obama na França teria de cair realmente do céu, mas pouco importa. A grafiteira do metrô não quer um presidente jovem, inteligente, carismático e negro.

Ela quer o símbolo, a imagem. O Obama dos cartazes, não o do Salão Oval. Ela quer o nome ao qual está associado tudo que se pode esperar de bom e revolucionário neste nosso começo de século, que parecia tão conformista e reacionário.

“Quando teremos um Obama aqui?”, ela quer saber.

Minha senhora, nesse sentido em que a senhora está pensando, já temos.

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O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

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O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

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