Começo a escrever na noite de sexta-feira anterior à Marcha da Liberdade marcada para a avenida Paulista, 28 de maio – dia que no futuro talvez seja nome de rua. Provavelmente só vou terminar de manhã, logo antes de partir para a referida marcha. Aliás, bem disse alguém por aí: não se deveria dizer “marcha”, mas alguma outra coisa, porque a liberdade não marcha, ela dança. (Voltaremos a isso.) Sábias palavras. Continuar lendo
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A “sensação de segurança” é um engodo
O penúltimo texto tratava de um dos aspectos mais cansativos e artificiais da forma marqueteira que assumiu a política de uns tempos para cá. (Quanto tempo? Dez, vinte anos? Difícil estabelecer um início preciso para um processo tão paulatino…) Embora o tema a perpasse sem descanso, não me refiro à política enquanto disputa de poder, embora esse aspecto tenha recoberto o termo quase inteiramente no debate público, mas ao verdadeiro quotidiano político, o esforço constante de viver em comunidade. Trata-se da questão da segurança, martelada em todos os telejornais, muitos filmes, conversas no barbeiro e no táxi, e repetida inclementemente por candidatos a qualquer coisa em seus discursos temerários.
Poderia ser uma particularidade brasileira. Afinal, nossas maiores cidades são território livre para assaltos, sequestros-relâmpago e o diabo a quatro, quando não estão em franca guerra civil, sem contar os acordos de bastidores entre governos e grupos criminosos para que estes últimos “peguem leve”. Mas não. A julgar pela prioridade que o tema recebe, o mundo inteiro deve estar à beira de centenas de guerras civis entre criminosos satânicos e os pobrezinhos dos cidadãos de bem, sempre acuados em seus cantos, tentando levar suas vidas sem serem esquartejados por bandos criminosos. Sem contar os terroristas, claro. Porque, afinal de contas, eles existem. E se existem, só podem estar por toda parte, certo? O raciocínio parece tortuoso, mas tem dado sucesso a seus proponentes em eleições mundo afora.
Muitos meses atrás, comentei aqui sobre a violência policial, comparando maio de 68 e todos os meses de 2008, na França como no mundo. Só de confrontar fotografias antigas com recentes, ficou claro que a tropa de choque (CRS na França) que trocaram cascudos com estudantes diante da Sorbonne em 68 mais parece uma fileira de guardas de trânsito, comparada à tropa de hoje. Aqueles policiais tinham capacetes, escudos e espingardas (não usaram), por certo; os de hoje parecem robôs de filmes de ficção científica, com suas armaduras, máscaras e coturnos à la Kiss. A polícia de hoje é bem mais ameaçadora. Tem um visual que intimida enormemente. Mesmo as patrulhas simples, pelo menos na França (e pelo que vi, no Rio também), vestem-se com blusas negras que lhes dão um ar de muito mais fortes, além de rasparem a cabeça como recrutas do exército. Não consegui explicar isso à época, então retomo a pergunta: por que a polícia deste início de século precisa causar tanto terror?
Para responder, volto ao penúltimo texto: a estação ferroviária, a cerveja, os soldados em uniforme camuflado exibindo suas boinas negras e seus fuzis semi-automáticos, desses que disparam sei lá quantas centenas de projéteis por segundo. Também coturnos, também cabeças raspadas, uma forma de olhar que, sem a menor fagulha de sucesso, buscava passar a impressão de investigar qualquer coisa. Um quarteto que se arrastava entre malas e bilhetes, simbolizando o mesmo programa anti-terrorismo que eliminou os bagageiros das estações de trem. Imagino o alto comando do exército a formular sua política de combate aos homens-bomba: colocar alguns rapazes sobre as plataformas, prontos para metralhar o primeiro zé-mané que pareça ter uma banana de dinamite por baixo da bata ou do turbante (sim, porque gente de paletó está acima de qualquer suspeita).
A segurança é a prioridade número um da maioria dos governos ao redor do mundo. Economia, saúde, educação, meio-ambiente, tudo isso é obrigado a disputar o segundo lugar, onde ainda sobram eventuais migalhas de atenção midiática. Talvez haja duas exceções. Uma é nosso bom e velho Lula, porque também não tem muito como competir com os políticos estaduais Brasil afora, que ainda enchem as PMs de carros enquanto a criminalidade teima em não ceder. A outra é o celebérrimo Obama, que, não é nada, não é nada, prossegue com duas guerras do outro lado do mundo, uma delas justamente contra o terrorismo. Fora esses aí, há anos ouvimos falar, e vemos na prática, em aumento do efetivo policial, tolerância zero, combate à delinqüência, câmeras espalhadas pelas cidades, monitoramento de lan-häuser, atenção particular para os “subúrbios sensíveis”. O público, já apavorado, porque já escutou esses discursos todos e já viu cenas de jovens em confronto com a tropa de choque, adere. Vota, esquece todos os outros problemas, fecha os olhos para a má gestão da estrutura pública… essa ladainha, todos conhecemos.
Mas, ora, que coisa estranha: nenhuma dessas políticas de segurança tem surtido um grande efeito duradouro. A não ser, talvez, o programa de Rudolph Giuliani em Nova York, o “tolerância zero”. Mas não é a mesma coisa, porque o que se fez na Big Apple foi deixar de fechar o olho para as pequenas infrações, como avançar o sinal vermelho e encher as calçadas de cadeiras. Isso, mais um policiamento ostensivo em nada diferente do que fazem os tradicionais guardas londrinos, conseguiu um nível de paz e tranqüilidade urbana muito maior do que a paranóia policialesca que, por exemplo, levou ao assassinato de Jean Charles.
A reação do público, no entanto, parece não reverberar a contradição. Nas pesquisas, as pessoas, aquelas normais, trabalhadoras, de bem (e assim por diante), continuam manifestando um medo enorme, diante de um mundo que lhes aparece como cada vez mais perigoso, instável e coalhado de bandidos, desde criminosos comuns até terroristas religiosos. Mesmo assim, elas declaram, diante da reação governamental, isto é, diante da presença massiva de gente com uniforme futurista, cacetete, fuzil, boina, cabeça raspada, escudo, capacete, óculos de visão noturna e gás lacrimogêneo, que experimentam uma maior “sensação de segurança”.
Ora, direi, sensação de segurança! Mas se dizíeis estar a vos cagar de medo! Como é possível?
Diante de tamanho paradoxo, refleti sobre o assunto e cheguei à conclusão que segue: essa tal “sensação de segurança” é um engodo. Ela não existe. Quando alguém acredita experimentar uma “sensação de segurança”, está enganada, não porque não esteja sentindo nada, mas porque aquilo que ela toma por uma “sensação de segurança” é, na verdade, outra coisa. Logo veremos o quê. Primeiro, preciso mostrar que não faz sentido falar em “sensação de segurança”. Ora, “sensação de segurança”…
Imagine você, em sua casa, deitado em seu sofá numa tarde de sábado, depois daquela feijoada, vendo pela televisão seu time ser esculachado em rede nacional. Você está seguro? Até certo ponto, sim. Pode cair um meteoro em sua casa, claro, mas afora essas hipóteses mirabolantes, você corre pouco risco de ser vítima de algum evento traumático ou perigoso. E que sensação você tem nesse momento? Sonolência, provavelmente. Raiva do juiz, talvez. Preocupação com o aluguel, eventualmente. Azia, posso arriscar. Mas “sensação de segurança”? Duvido.
Outra situação: você está dirigindo numa estrada escura. É noite. Chove a cântaros (é uma chuva das antigas). De repente, uma enorme vaca ruminando a um palmo dos faróis. Você entra em pânico. Solta um berro de pavor. Mas não há tempo para faniquitos: no último instante, você dá uma guinada com o volante, afunda o pé no freio, depois no acelerador, e consegue se safar. Seu coração ainda está disparado, você continua sem fôlego, suas mãos tremem. Mas o medo já passou. O que você sente? Alívio, certamente. Ódio da péssima iluminação da estrada, sem dúvida. Pena da vaca que talvez não escape ao próximo carro, nem ele a ela. Mas “sensação de segurança”? Necas…
Talvez eu esteja querendo brigar com os fatos, admito. Se as pessoas garantem que têm essa tal sensação, se elas insistem que é uma experiência verdadeira, quem sou eu para contradizê-las? Mas antes que me lapidem: eu nunca disse que elas não sentem nada. Eu disse simplesmente que essa sensação não é de segurança. Então, direis, é de quê? Tentarei responder.
Metade da resposta, acredito, está nas explicações dos pesquisados. Elas sentem medo e o associam de alguma maneira à “sensação de segurança”. Essa associação é muito freqüente para ser coincidência. De fato, tudo aponta para a noção de que a “sensação de segurança” corresponde à constatação (talvez inconsciente) de uma ausência de ameaça ou, melhor ainda, da ameaça contida, afastada, superada. É o que vimos nos exemplos acima, de maneira rudimentar, mas válida. Portanto, é impossível conceber a “sensação de segurança” sem uma sensação mais fundamental e mais evidente de medo, pavor, terror, ameaça, risco, decadência, desordem, chame como quiser – escolha, por exemplo, uma palavra do repertório de analistas políticos ligados a qualquer governo ao redor do mundo.
Seguimos no campo do paradoxo: como é possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre o medo, se o medo é o oposto da segurança? Estranho, não? Falta alguma coisa nessa nossa definição…
Então voltemos aos dois textos que mencionei nos primeiros parágrafos. O que encontramos? Policiais saídos de algum videogame, desses baseados em Robocop ou Exterminador do Futuro. O temor (mal dirigido) do terrorismo islâmico, que põe soldados armados até os dentes em todas as estações de trem da França (e muitos pontos turísticos), como se aqueles rapazes recém-saídos do treinamento fossem capazes de evitar a detonação de uma bomba. As tropas de choque que, e isso eu vi com meus próprios olhos, precisam de dois ou três batalhões, camburões e jatos d’água para desbloquear escolas onde garotos e garotas de 16, 17 anos fazem seu mui ameaçador piquete.
Para que serve tudo isso? Quem está mais seguro graças a esses bravos profissionais da violência estatal? A população? A gente de bem? O nobre e honrado cidadão? Alguém realmente acredita nisso? Sim, alguém acredita nisso. Basta ver, também alguns parágrafos acima, a reação habitual dos já mencionados cidadãos. Mortos de medo, mas ainda eleitores dos Sarkozys, Berlusconis e Serras da vida, graças a essa formidável “sensação de segurança”.
Devem então ser esses os componentes da magia paradoxal de nosso tempo. Primeiro, o medo; depois, o belicismo encarnado em policiais e soldados. Mas por que o belicismo? O que ele representa, quer dizer, o que ele provoca em quem o presencia? Traduzindo, como é que ele contribui para a “sensação de segurança”? Afinal de contas, guerras são tão opostas a qualquer noção de segurança quando o próprio medo, aliá seu correlato. Será possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre duas coisas que se opõem tão perfeitamente a qualquer idéia de estar seguro?
Sim, é possível. E talvez exatamente como conseqüência da contradição, da mesma forma como a multiplicação de dois números negativos produz um positivo. O belicismo dos assustadores soldados faz sentido quando entendemos a impressão que ele esconde: uma percepção de força, ou seja, uma demonstração de poder. Talvez o conforto implícito de que é possível agredir de volta, ou até agredir antes. De que qualquer ameaça será contrabalançada por um efeito punitivo e multiplicador. Que sei? Só posso afirmar que essa projeção de virilidade primitiva é o segundo componente da tal “sensação de segurança”.
Com isso, acho que já temos um quadro da nossa vítima. A “sensação de segurança” nada mais é senão um núcleo de medo recoberto por uma couraça de poder. Como o medo exige alguma forma de força e a força só é necessária quando temos medo, um anula e alimenta o outro. Desse estranho equilíbrio, dessa tensão delicada e perigosa, nasce essa tal “sensação de segurança” que tanta gente afirma sentir. Ou seja, é um engodo e um engodo arriscado.
Digo arriscado porque a “sensação de segurança” só pode aumentar de duas maneiras: ou cresce o medo e, em seguida, a demonstração de força como reação que restabelece o equilíbrio, ou aumentam, forçando um pouco a barra, as demonstrações de força, que por sua vez reverberam até multiplicar também o medo original. Não é difícil perceber que estamos diante de uma bola de neve. Só lembrando que o destino de toda bola de neve é a avalanche.
Até onde conseguimos levar o discurso e a estrutura reticular que sustentam a “sensação de segurança” tão fundamental a essa política mané de nossos tempos? De onde mais podem vir as ameaças que justifiquem tropas de choque e soldados com fuzis desfilando pelas ruas e estações de trem? Que outras medidas podem ser tomadas para, como é mesmo que se diz?, garantir a tranqüilidade dos cidadãos? Respostas nos comentários, por favor.
Um eu, um ambiente, mil objetos (Mudar de endereço, parte 1)
Para quem passa o dia correndo atrás de assunto, nada melhor do que uma mudança. Vai ver, é por isso que gosto tanto. Aos dez anos, eu acumulava memórias de quatro endereços em três cidades; não é à toa que a estabilidade do decênio seguinte foi tão incômoda. Assim, depois de diplomado e empregado, alguma força interna me empurrou de novo, agora por conta própria, para o deslocamento: novos bairros, cidades, países – e aqui já faço projeções, sonhando com os cantos em que posso vir a me instalar…
Essa tal força foi tão poderosa que me levou a rasgar, mais de uma vez, diplomas e empregos, em nome desses saltos que levam móveis adiante e deixam paredes para trás. Não quero com isso inventar uma história de que eu teria alma de andarilho ou coisa assim. Eu bem que gostaria, mas me falta o espírito de aventura. Meu caso é outro. É uma espécie de pânico. É como se, aos poucos, eu me tornasse um só com minha casa e, nesse processo, murchasse… não, estou me explicando mal. Vou tentar de outro jeito.
Gostaria muito de conseguir conceber meu endereço como só o lugar aonde chega minha correspondência. O imóvel que ocupo, o andar, a porta, a área útil… Como se fosse um acaso, um dado do mundo concreto em que esbarro sempre que levanto de manhã, como as ruas que me conduzem ao escritório e as contas que devo pagar. Se eu pudesse acreditar nisso, ele seria um, eu seria outro, numa relação tão casual quanto a de um tigre com um tamanduá no zoológico.
Mas sempre que tento pensar assim, acabo por perceber que estou mentindo. Pior: mentindo para mim mesmo, o que ultrapassa a desonestidade e cai diretamente na precipício da tolice. Afinal, se me perguntam quem sou, só posso dar como resposta o lugar em que moro, como chego no trabalho, onde compro minha comida, o que vejo todo dia, quem são meus vizinhos, que quadros pendurei, como organizo minha biblioteca. Então que raio de separação medíocre é essa?
Se é verdade que o lar é a fortaleza de um homem, também tenho de aceitar que ele é o centro de meu campo de batalha. É minha cabeça-de-ponte para dominar a cidade. É o fim das minhas linhas de abastecimento. É o quartel-general de meu repouso no fim-de-semana e ponto de lançamento para as expedições no resto do tempo. É meu almoxarifado e meu arsenal.
Mas o oposto também se impõe: sou aquele que frequenta os cinemas do bairro. Que colocou as prateleiras ao lado da porta, longe da janela. Que escolheu as cortinas grossas, garantindo a obscuridade para o sono de domingo. Eu sou a vista que encaro quando as ideias não vêm, sou a porta emperrada do banheiro e a infiltração indetectável na cozinha. Sou o bom-dia que dou a contragosto aos vizinhos; sou a garagem apertada demais; sou o comércio de rua que persiste, embora moribundo.
E, no entanto, o pânico. A certeza de que haveria outras perspectivas e outras identidades, se não fosse essa, já, tão enraizada. Os desejos em conflito: aprofundar ao infinito a dominação deste canto? Ou atirar ao passado essas páginas e esse ser, para começar uma nova infância do outro lado da cidade? Construir-se demais parece, às vezes, um múltiplo assassinato de potenciais; mas a repetição da ruptura arrisca deixar pouco mais do que escombros, quando tudo se acabar. Pânico, sim, mas junto com a reverberação de um renascimento. Sem que, para isso, seja preciso uma morte.
Ao contrário! Desmontar um apartamento é cansativo, mas é das maiores injeções de vida que podemos receber. Recuperamos do fundo das gavetas os folhetos e badulaques que tiveram importância há anos, mas já caíram no esquecimento. Nesse instante, tomamos consciência da vida que fomos (porque não levamos uma vida, somos uma vida), e essa consciência é tão forte que parece nos fazer revivê-la, no instante mesmo em que apagamos suas marcas e a estrutura de existir que ela tinha criado.
Em seguida, vem todo o esforço de transportar os fragmentos de si mesmo. De uma porta a outra, lá se vão objetos e memórias, dentro de caixas que estampam – na verdade, gritam – o provisório, o interlúdio, o desmanche de toda uma identidade. É um parto traumático e ao mesmo tempo emocionante, embora muito menos que o primeiro, o original, que nos colocou neste mundo de potenciais frustrados e realizações subestimadas.
Só depois é a nova vida, nova existência, uma infância em que precisamos conhecer outro supermercado, outra agência de correios, outros vizinhos; onde precisamos aprender a nova distribuição das gavetas e corredores, onde ainda tateamos quando acordamos no meio da noite e queremos assaltar uma geladeira que ainda não sabemos tão bem onde está. É assim que reconstruímos nossas perspectivas e nossa identidade, nosso ponto-de-vista sobre a cidade e o mundo, sobre nós mesmos e nossos caminhos.
Pânico e coragem são as palavras que resumem as sensações de uma mudança. A difícil e inevitável escolha daquilo que vai ou fica, daquilo que merece a lixeira ou a recuperação das cinzas do esquecimento. Parte do que nós somos está na relação que estabelecemos com objetos e ambiente, e que objetos e ambiente estabelecem conosco – porque, ora, eles também têm seu poder de escolha. Ao deitar fora uma parte da maldita papelada, deitamos fora também uma fração da forma de viver que levávamos (ou éramos). Em outras palavras, decidimos ser outros.
Simplificando: como é difícil se ajustar a uma casa nova! Mesmo quando sei que é melhor do que a antiga, que nela provavelmente serei mais feliz, que deixo para trás uma série de problemas que jamais teriam outra solução. Mas é como é: estou renascendo sem ter perecido; e acredito que mais essa estranha experiência pode render muito pano pra manga, o que é sempre positivo para este pobre perseguidor de assuntos.
Conhecido entre os traços
Executa seu caminho no meio de outros tantos corpos, sóbrios no vestir e no pisar o pavimento, cada um em respeito solene ao próprio traçado e nada mais. A tarefa não exige esforço algum, como nunca exigiu, se não for a observação estrita do acordado, do decidido há tempos.
A única novidade é quase nada. Uma força esquisita que empurra para trás. Um pouco incômoda. Está presente, insidiosa, desde os primeiros passos, ainda sobre o carpete da sala de estar. Nunca tinha acontecido, essa energia pesada, negativa, que chega sem anúncio, vinda não se sabe de onde.
Com ela, abafando o som dos outros corpos, a percussão das solas e saltos, os grunhidos da cidade a acertar a disposição apropriada, só ascende à consciência a vibração de um pensamento: a repetição monótona de uma expressão vulgar. O palavrão se valoriza ao raspar, áspero, uma garganta imaginária. As idéias que vêm do fundo permanecem insondáveis. Misteriosos como o empuxo que se opõe ao impulso adequado.
Nada de notável.
Sim, sem dúvida, condições objetivas existem. Questões pragmáticas. Uma pequena coleção de falhas, lado a lado com a lista humilde de sucessos, e o equilíbrio pende discretamente para o lado pessimista. Sem esquecer o inevitável; dessintonia conjugal, fantasias capciosas, contratos rompidos, o sucesso profissional postergado, perspectivas sufocadas.
Uma inclinação do momento, coisa de hormônio, conjunção astral, seja o que for, provê a condição que desequilibra a balança. O prato mais pesado é o que verga de amargura. Na liga, entremeados, o cansaço das férias por tirar, a frustração de estar aquém das ambições sexuais, a dificuldade em aceitar que o tempo se arrasta, como sempre se arrastou para todos.
Entre a força anônima e a imagem difusa de todos os nomes, a mente equilibrada se vê na obrigação de decidir uma estratégia. Pois a retirada é uma estratégia sensata. Vergonhosa, mas sensata. Antes retroceder a ser carregado pelos ventos. Cobrir com as mãos o rosto é melhor, muito mais digno, do que arrancar os olhos para seguir na ofensiva.
Encontra uma superfície horizontal para largar o peso do corpo. Fria, seja o que for, exerce bem o papel de um banco. Então basta para retomar o ânimo, que escapara em algum momento do percurso, sem se dar a perceber.
Ao lado, um outro homem. No turbilhão dos vetores que disputavam um corpo, a cegueira temporária o ocultara. Mas ele esteve sempre ali. Deitado, encolhido, abraçado aos próprios ombros como à última posse que lhe resta. Finge dormir.
Observa-o. Um mendigo. Com todos os atributos de quem vive na rua, procurando a cada noite um novo abrigo. Andarilho debaixo do sol, encalacrado sob as estrelas, eis sua única certeza. Um homem que se apropria da cidade sem que nada na cidade lhe seja próprio.
Estranha figura. Um rosto familiar. A tal ponto que os olhos se fixam sobre os traços e rechaçam o esforço de afastamento. Feições que poderiam ser reconhecidas debaixo da escuridão mais profunda. A familiaridade produz um calafrio. As pontas dos dedos gelam, os pelos do braço eriçam. Quer tocar o vizinho, pousar os dedos sobre seu ombro, depois sentir a textura da pele, devagar. Não ousa. Mas não é asco. Não é nada. Apenas encara.
O homem sente que é observado. Sacode-se bruscamente, não a ponto de assustar. Abre enorme a boca, como para escarrar um grito. Desiste. Emite apenas o hálito de álcool. Põe-se sentado, lentamente, na calma de quem não acompanha as centenas de trajetórias riscadas pouco adiante. Desperto, seu rosto é jovem. Terrivelmente familiar. Alguém do passado, talvez. Impossível não fitar. Um olhar fixo assim deveria incomodar, deveria ofender, mas o homem não deixa ler sua opinião. Apenas exibe a face, os traços que parecem os mesmos de algum sempre.
Passado um instante, o homem desvia sua face conhecida. Lentamente, apóia-se nas duas mãos para se erguer. Como um velho. E se põe em marcha. Termina cada passo antes de começar o seguinte. Cambaleia, mas projeta o corpo e conquista o espaço. Desloca-se em curva, pende para um lado, deixa a impressão constante de que vai cair.
Mas o homem segue. Uma atenção aflita o acompanha à distância. Guarda no inconsciente a linha imaginária que o corpo descreve, no menor detalhe de sua irregularidade. O arabesco intercepta os riscos deixados pelos outros pares de pés, como se os conspurcasse. Desenho livre, atinge as trajetórias de todas as direções e não pede licença. Insolente, a figura.
Salta quando crê que o homem vai ao chão. Ensaia apoiá-lo com o braço, mas interrompe o gesto em pleno ar. Assim permanece, um passo atrás do rosto familiar, sem a ousadia de aproximar-se. O reconhecimento, que atraía, agora repele, com intensidade parelha. Porque a posição é outra; ou porque, junto com o mendigo, o universo se deslocou; ou porque algo emergiu à consciência.
Está claro, mas não nítido, por que o desgraçado é assim tão familiar. As paralelas que deveriam se encontrar no infinito podem sofrer desvios. Podem chocar-se ainda no tempo. Eventualmente, acontece.
Põe-se a correr. Correr é a saída. As funções mecânicas assumem o leme da mente e a recolocam no trajeto planejado, sem empuxo que arraste, sem força alguma conclamando a retroceder. Quando dá por si, já está em pleno destino, agachado, apertando os olhos para escapar à claridade.
Da experiência, somente uma convicção que se insinuara. A desgraça é livre, é fascinante e familiar. Ei-la, a verdade. Parece temível, a desgraça. Mas dá o poder de interromper e cortar todas as trajetórias com a mera vontade.
Só que as trajetórias, conforme é ensinado, acordado e decidido, são sagradas.
O repouso do general
Quando soube que estariam todos fora – demônios, reis, colombinas, palhaços –, concebeu o mal-estar, dramatizou a doença, conquistou a solidão. Livres as paredes para o silêncio, os salões entregues à vibração do tempo baldio, fremiu e suspirou de alívio e apreensão.
Estacou por instantes sem volume. Quando o sangue voltou aos dedos, entregou-se à tarefa solene de desabotoar a farda, pendurá-la no cabide, encerrá-la na escuridão do guarda-roupa. Puxou dos ombros os galardões cheios de estrelas, apertou-os na palma da mão e os depositou na gaveta. Fora de vista, mas não de alcance. Para o caso de precisar buscá-los às pressas.
Seria lá o repouso do general. Nada de respostas, nada de comandos e decisões. A camisa de algodão lhe caía esquisita, mas agradável. Como trocar de pele.
Respiração caprichada, caminhou a passos arrastados até a poltrona. E se instalou, rijo, como numa sala de interrogatório. Conforme o previsto.
Só então ousou um lançar de olhos para o volume que trazia entre as mãos. O objeto grande, pesado e viscoso, coberto por um pano branco tão limpo, liso, fragrante – por que não dizer: imaculado. Tantos anos à espera do momento de encarar a carga, tantos anos, pareciam uma vida inteira. A exemplo da vida, não tinham começo na memória. Que esforço, que heroísmo, dar a crer aos outros que aquilo, aquela coisa, era natural. Que sabia o que fazia. Que vagava pela casa carregando um pacote branco com algum propósito. Missão misteriosa, mas incontornável.
Agora que estavam todos fora – demônios, reis, colombinas, palhaços –, era o momento de esclarecer tudo de uma vez por todas. Teve orgulho da coragem com que fitava o volume fantasmagórico. As mãos, porém, suavam. O cotovelo empurrava os dedos para o pano, o ombro os retinha. Homem e objeto, como conjunto, entravam em sintonia com o tempo paralisado.
Sentiu-se ameaçado, espantou-se, puxou por reflexo o lençol, violento. O tecido voou como espectro e pousou como pomba. Ficou espalhado sobre o assoalho, inerte.
Diante de seus olhos, o volume descoberto. Como antes, não sabia o que era. Não podia descrever a forma. Irregular e perfeitamente simétrico. Opaco ao extremo. Difuso, fora de questão. Solidez opressiva que se esvaía rumo ao chão. Por hábito, desandou a dar nomes: é o mundo, é minha alma, é o passado.
De súbito, faltou fôlego. Cessou a confusão do batismo cego. Poderia decidir-se por qualquer daqueles nomes, ou qualquer outro; subsistiria o mais terrível dos atributos, sempre. O que trazia nas mãos, nelas teria de seguir. Deixasse cair, é certo que espatifaria. O ar seria tomado de imediato pelo vapor venenoso do mundo, da alma, do passado.
Sufocaria. Pereceria. E não conseguia escolher entre o sacrifício sumário, mas horrendo, e a tortura vitalícia de carregar ainda, diante de todos – demônios, reis, colombinas, palhaços –, o volume abjeto, a massa amorfa, coberta pelo mesmo pano branco outrora imaculado, agora encardido com a poeira das cidades.
Na fúria da indecisão, lembrou-se das insígnias ocultas. Esticou-se com cuidado reverente. Não foi à gaveta, mas ao lençol, ainda enrugado a seus pés. A decisão estava tomada sem que alguém a tomasse.
Mesmo para a alma perturbada, à beira do escapismo, era patente. Sublinhavam-no as lágrimas, ao romper o portal. O peito se ergueu em revolta, soluçava e recusava o ar. Debaixo da mortalha, o objeto estremeceu. Poderia deslizar a qualquer instante. Mas não havia controle para os espasmos do corpo entregue.
De uma porta que se cria inexistente, entrou a desconhecida. O susto invocou o sangue das faces e ressuscitou o general. As estrelas das divisas tinham aparência ridícula sobre o algodão dos ombros, mas expunham uma imposição de respeito.
Só não se entregava à deferência o rosto ainda afogueado. A desconhecida flutuava através do salão. Encarou-o e, com expressão indiferente, perguntou o porquê das lágrimas. A resposta saiu refletida, viril como cumpre replicar:
— Não sei… Não sei.
Com isso, ergueu-se e se pôs em marcha, carregando seu fardo, até a escrivaninha do quotidiano.
A última curva do círculo
Um súbito azedume, raiva contra as folhas amassadas e secas. É injustificado o travo na glote ao pisar sobre elas, mortas e embebidas na água suja da estação. Daqueles caminhos cobertos de amarelo e vermelho, em que o vento dos belos dias erguia redemoinhos, restaram essas pequenas sombras encarniçadas, molduras marcadas pelas solas dos sapatos. E ao erguer os olhos para as poucas que ainda se agarram aos galhos, amedrontadas com a perspectiva da queda e da morte inevitável, não é a melancolia usual de um jovem dezembro que me ataca, mas essa absurda aversão, esse horror despropositado.
Meus ombros não têm marcas de pegada. Têm, sim, o peso de um tempo indiscreto, imperador narcisista que faz questão de se exibir. Deixa em meu corpo um sinal, o afundamento das espaldas, o desejo do tronco de esconder-se do olhar severo que o déspota lhe lança, como a todos. Confundo-o com a chuva, que amolece o tecido da casaca e a aba do chapéu, tal qual o deteriorar-se dos meses me abala o espírito. Tento espanar, com a água, a pressão do tempo. Tento abrir os ombros e preencher os pulmões. Mas o ar que atende ao convite me ofende. Gelado, queima os caminhos; empapado, enrijece minhas faces.
Desisto. Recolho-me novamente, inerte, como inertes estão os cadáveres em que piso, ainda que tente evitá-los, desgostoso.
Reconheço que basta contar quatro meses para brotarem as próximas folhas, minúsculas, redondas, de um verde transparente. Reconheço que é o ciclo, infinitamente mais ancestral do que qualquer ancestralidade a meu alcance. Erradas estão as folhas que insistem em não tombar, que imploram a uma natureza que não responde, que choram quando fustigadas pelo vento, que secam no pé e não entendem a condenação definitiva. Está inscrito, em sua natureza de folha, o destino do outono. Morrer. Nascer em abril. Perecer em novembro.
Eu é que não vou perecer com a aproximação do inverno. Mas sinto, intimamente, que já experimentei diversos ocasos, uma suíte deles, desde que as cores começaram a mudar e os ventos assumiram sua inclemência. Morro com uma folha, morro com mil. Morria alegre com a hemorragia de outubro, quando elas caíam como lágrimas de sangue e jorravam ao longo das aléias. Morro novamente, agora amargo, enquanto os ciprestes se preparam para a estabilidade do olvido.
Sei por isso que sigo o mesmo ciclo das folhas. Estamos na mesma curva, na mesma etapa, a um passo do mesmo mergulho. Se, enquanto a terra permanece congelada, não estarei morto, como elas, estarei ao certo paralisado. Estarei diminuído, abafado pelos panos que me mantêm vivo, pressionado pelas precipitações enervantes, quase sem folga. Como os vegetais, subsistirei na esperança de um novo abril, a nova reversão da curva, do ciclo, do círculo, o renascimento que se vive a cada ano, a volta, o alívio.
Creio que seja essa expectativa que me atemoriza. A evidência de que existo agrilhoado aos ciclos e de que esses ciclos são um só. Minha vida. Entrego-me ao ódio por essas folhas, não por elas, que nada podem, mas pela hélice a que estão amarrados meus pulsos e tornozelos, como elas aos galhos, antes da queda.
Como se falasse, dirijo a palavra às folhas mortas e lhes pergunto por que não ficam assim, por que não se contentam em apodrecer e seguir eternamente como húmus. Brotar novamente na primavera, que terror! É o supremo ato de submissão, um esforço para se entregar mais uma vez, entre tantas, à parábola que resultará em outra morte, em mais lama, em mais pegadas.
Eu me encheria de admiração por elas, se as folhas se recusassem a recomeçar. Elas teriam a força que a razão quis atribuir apenas a si própria, e que tanta desgraça causou aos entes concretos, ao se misturar aos corpos, templos do necessário, sede da condenação ao tempo. Diante da recusa heróica dos vegetais, eu me questionaria.
Eu me perguntaria, vexado, perturbado, por que eu mesmo, por que nós todos, que temos mais vontade do que as folhas, não podemos dar um passo para fora do destino. Da fatalidade, de uma forma de vida que se nutre infinitamente da própria morte. De um estágio que sabemos superar, mas a que nos curvamos como escravos.
Por que nos aferramos a ser trágicos? Eu desejaria saber. Seria a manifestação que eu gostaria de dar à minha inveja dos vegetais forros. Meu rancor mudaria nessa inveja se, e somente se, eu visse, nas folhas, a prostração transmutada em liberdade. Até lá, como parece inevitável, vou morrendo para viver.
Paris não tem segredos
… E logo, logo, nenhuma cidade terá. Veja bem. Isso que aparece na fotografia acima são as duas janelas de minha casa. A da esquerda é o quarto de dormir, com as cortinas vermelhas, improvisadas, que instalei para substituir as originais, também encarnadas, mas bem mais grossas e eficientes, que caíram com um estrondo patético na primeira noite em que tentei fechá-las. À esquerda, a sala, com a cortina original, cor de creme, e dois vasos, um com flores, o outro com uma pimenteira. Os vasos já existem desde o ano passado. Estiveram vazios durante todo o último inverno, a maior parte da primavera, também. As flores, comprei para substituir as antigas, que estavam mortas. Foi no início de agosto, salvo engano. A flor mais alta, violeta, ainda estava fechada, só foi se abrir no final do mês. A fotografia, portanto, só pode ter sido tirada na última semana de agosto ou nas primeiras de setembro.
Quem gerou essa imagem não foi minha máquina fotográfica. Encontrei-a depois de baixar o Google Earth, pensando que seria a ferramenta ideal para me ajudar a preparar as viagens que, queira Deus, ainda farei. E será, sem sombra de dúvida. Navegando por suas telas, passeei virtualmente pela Unter den Linden de Berlim e pela Gamla Stan de Estocolmo. Vi de perto a distância entre o museu Ermitage e a avenida Nevski, tantas vezes evocada no desespero transcrito de Dostoievski. Fui a Roma, que tenho boca, baixei a aplicação que reproduz a capital do império no tempo de Constantino e me esbaldei de passear por suas construções, monumentos e edifícios, descobrindo a aparência intocada das ruínas que conheci há mais de um ano. O Google, novo Constantino ou novo César, como queira, me concedeu a graça que os administradores do turismo italiano me negaram.
Em Roma, encontrei um instrumento magnífico. A princípio, pelo menos. Pequenos ícones que retratam câmeras fotográficas. Clica-se sobre eles e se é atirado dentro da cidade, numa fotografia tridimensional tirada sabe-se lá por quem, sabe-se lá quando. (Era certamente verão.) Da primeira vez, acreditei que seriam só os grandes entroncamentos, os pontos turísticos, os centros importantes da cidade eterna. Qual o quê. A cada número da rua, vê-se um outro ícone, depois outro e outro mais. É possível inventar caminhos por todos os cantos de Roma, como quem anda a pé, mas sem se cansar, sem sentir o calor, sem ser ofendido por algum italiano grosseiro, só de clicar sucessivamente nas máquinas intermináveis que vão se apresentando à sua frente.
Rostos e placas de carro, enfim, tudo que possa identificar alguém, são desfocados. Anda-se por avenidas e vielas onde ninguém tem face, figuras congeladas em seus trajes, poses e caminhos, mas desprovidas de olhos, lábios, expressões. É um passeio em que o vento é morto de uma morte estranha, ainda capaz de inclinar as árvores, mas não balançá-las. Onde os sinais vermelhos se recusam a passar ao verde, mas os motoristas não se impacientam. Onde o pequeno trânsito irritante, causado por algum caminhão parado em fila dupla, é eterno enquanto assim o mantiver o gestor desse programa do Google. É a presença física numa cidade estrangeira, tão física quanto pode ser uma presença virtual.
Cansado da vista de Roma, deixei-me invadir pela curiosidade. Quão bem fotografada seria Paris? Considerando, claro, que, para além do universo Google, é a cidade mais retratada do mundo, logo à frente do nosso malemolente Rio de Janeiro. Os bairros mais afastados teriam o mesmo privilégio do centro? Os mais feios? Os mais sujos? Os mais castigados pela criminalidade? No espaço de um segundo, com o esforço concentrado de digitar as cinco letras do nome da cidade e um Enter decidido, vi-me a sobrevoar esta outra capital, mais nova, mas nem por isso menos célebre que o lar dos papas e imperadores.
Posicionei o cursor sobre meu bairro. Aproximei a imagem e esperei enquanto ela se tornava mais nítida. Aos poucos, pude identificar a praça, a rua de trás, o carrossel das crianças, a fileira de árvores no larguinho. Apareceram, um depois do outro, os ícones de máquina fotográfica. Cliquei no que parecia mais próximo do meu prédio. Não era, havia outros, mas pude ler as insígnias das lojas, dos correios, do restaurante chinês, onde almoço quando a pressa fala mais alto que a saúde. De câmera em câmera, fui me achegando de minha pequena rua. Entrei à direita. Bem à frente, li o nome do estacionamento enorme que é responsável por mais de metade do barulho que às vezes me impede de dormir.
Fui avançando até chegar na imagem que registrei acima. Minhas janelas, visíveis por qualquer um, em qualquer parte do mundo. No meu caso, era quase um espelho. O verdadeiro observador, do lado de cá, no outono, quase inverno, aquecido pelo gás, em plena escuridão. Do lado de lá, minha presença virtual, flutuando pela rua nas últimas semanas do verão, com flores radiantes, essas que, para o verdadeiro eu, de carne, que escreve e não flutua, já estão amarelecidas e sem pétalas.
Estranha sensação. Um sem-número de fotografias tiradas, rostos apagados com esmero, imagens consolidadas e inseridas no enorme sistema de mapas da NASA que o Google transformou em fantástico brinquedinho. Em breve, será assim no mundo todo. Qualquer pessoa que já me enviou uma correspondência, ou qualquer um a quem já enviei meu currículo, poderá ficar curioso de saber onde e, mais ou menos, como moro. Bastará entrar no programa para descobrir. Não imagino que tipo de resultado isso possa ter. Conjecturo, mesmo, que talvez não possa causar nada, seja perfeitamente neutro, não mude coisa alguma no mundo ou só o mude para melhor…
Enfim, não há nada de racional nisso, mas a verdade é que fiquei incomodado, diria mesmo intimidado. Metralhei-me com perguntas: como se produziu a imagem das minhas janelas, pelos céus!? Alguém foi contratado para passear pela cidade inteira, em vários lugares do mundo, visitando ruela por ruela, bairro por bairro, a tirar fotografias tridimensionais a cada três ou quatro passos? Ou teria o Google comprado os registros das câmeras de segurança da prefeitura, que, por sinal, nem são tantas assim…
Essas fotos em que minhas cortinas aparecem fechadas poderiam ter sido tiradas poucas horas antes, ou depois, e as cortinas estariam abertas, meus móveis à vista, as fotografias da parede, essas bem pessoais, expostas. Nesse caso, estou certo, o Google, novo Nero, novo Caracala, teria borrado a visão de minha vida pessoal, ou melhor, da parte mais pessoal da minha vida, antes de lançá-la a público em seu programa. Mesmo assim, segue que o fotógrafo terá visto. O programador, idem. A imagem original talvez ficasse guardada no HD da empresa, como numa gaveta de jornal, esperando para ser descartada ou redescoberta, indefinidamente. Indefinidamente…
Eu disse em algum lugar, talvez até no título deste texto, que Paris não tem mais segredos. Mas se fosse só isso, ora, que é que tem! A tendência é, cada vez mais, que tudo se saiba, tudo se veja, tudo se conheça e esqueça tão rápido quanto acontece. Certo? Boa pergunta, não sei dizer. Mas eu, cá no meu canto devassado pelo Google, bem que gostaria de ter um ou outro segredinho todo meu. E antes que me acusem de ser dissimulado, antiquado, inadaptado, já digo que não é nada disso. Nem se trata de fazer charme. Timidez, talvez seja. Mas pode ser uma mania idiota, coisa de quem não consegue apenas viver no próprio mundo. Talvez seja pedir demais, mas eu gostaria muito se, para ter uma visão das minhas janelas, alguém tivesse de vir até aqui.
Do tradicional e do caduco
Os brasileiros chegam e partem sem dar descanso, no fluxo dos pousos e decolagens de difícil discernimento. Vêm como turistas e estudantes, para visitar amigos ou executar algum trabalho. É uma alegria enorme quando chegam. Trazem notícias, algumas difíceis de engolir, outras tão antigas que dão a pensar que ninguém sabe ao certo há quanto tempo estamos fora. Em seguida, quase sempre, depois de uns dias, os amigos partem; furam as nuvens e desembarcam em suas cidades. Não sem, antes, deixar suas impressões sobre a visita à terra do croissant. De hábito, após a constatação quase generalizada de que “é tudo lindo”, vêm as críticas, severas e indignadas, aos franceses. Ou aos parisienses, o que não é a mesma coisa, embora, de certa forma, seja…
Na Gália, como os gauleses: antes de qualquer comentário, é obrigação expor o método. Método! Eis o segredo do triunfo entre os filhos de Descartes! Saiba que suas idéias podem ser furadas; seus conceitos, irrelevantes; seu discurso, tedioso. Mas se estiver claro o método, um belo método, um lindo método, o método dos métodos, o público será todo aplausos para o que quer que você diga, seja o que for, pouco importa. E lá vou eu, já me adiantando em críticas! Desculpe o deslize. Conforme o prometido, vamos ao método: neste caso, trata-se de dividir em dois campos principais o que se diz de mal da França e seu povo, para facilitar a exposição. Assim, são eles o campo pessoal e o coletivo. Agora, método exposto, missão cumprida, vamos ao verdadeiro assunto.
No plano pessoal, diz-se do francês que ele é grosseiro, mal-educado, sujo. Que destrata os turistas e não tem estima nem pelos próprios filhos, vizinhos ou colegas; gosta, no máximo, de seu cãozinho fiel. Que só abre a boca para xingamentos em brigas de trânsito. Que, finalmente, sua vida sexual só pode ser frustrante (sim, é o que se diz). Não vou me meter a corroborar ou desmistificar nada disso. Quem já foi expulso aos berros de um café, quem já temeu ser agredido por um jornaleiro da Rue de Rivoli só por ter pedido uma informação, quem já ouviu impropérios enigmáticos de um fiscal do metrô, não precisa de nenhuma colaboração de minha parte para firmar sua opinião.
Subamos, agora, ao plano coletivo, ao modo de ser do povo como um todo. Este é até mais interessante, porque comporta uma censura mais grave, aparentemente mais séria e, na minha modesta opinião, também mais acertada. É incrível como todos os visitantes têm a mesma capacidade de apontar o quão difícil parece ser para este folclórico povo europeu o esforço de modernizar-se, ou melhor, de aceitar que as coisas se modernizam. É uma unanimidade. Decolando do aeroporto de Roissy, todos os conterrâneos parecem partir com essa certeza. E, de fato, a turma por aqui costuma revelar uma preferência pelo jeito como as coisas eram feitas “antes”.
Poucas vezes questionamos como é estranho atribuir esse passadismo a um país que produz alguns dos melhores trens, carros e aviões do mundo (embora, no caso da Airbus, o crédito seja mais dos alemães). Mas mesmo entre aqueles que, como eu, não se consideram, de forma alguma, americanófilos inveterados, é difícil evitar de sentir nas ruas um cheiro e escutar nos assuntos uma melodia de coisa antiga. Talvez seja a arquitetura preservada, talvez sejam os monumentos, não sei. Alguém que, por pensar que gosta dos conceitos de mercado e concorrência, se considera liberal, tem certeza absoluta de que a culpa é do governo, que participa em detalhes de qualquer aspecto do dia-a-dia. É, pode ser.
Tudo isso pode, sem dúvida, não passar de mistificação. Preconceito, para usar a palavra da moda. Mas é difícil não concordar com o diagnóstico (quase unânime, repito) diante da preferência declarada de professores e estudantes por trabalhos redigidos à mão. Ou da revolta que o povo demonstra ao ser obrigado a ler um texto em inglês. Ou da veneração diante de formas lingüísticas incompreensíveis, mas recomendáveis “desde a Idade Média”. Convivo com pessoas cujas frases parecem tiradas de diálogos de Proust, para não dizer Racine, e acham perfeitamente normal. Sem contar as correspondências que chegam para a proprietária de meu apartamento, a “Condessa de la R.”
Acredito que a origem da dificuldade francesa com “o presente” é uma confusão difícil de deslindar entre o que é tradição e o que não passa de caducidade. Mas não será o caso de atirar a primeira pedra. Se aprendi algo com esse pequeno e, convenhamos, simpático defeito francês, foi que nós, brasileiros, temos o defeito inverso. Confundimos tradição e entrave, logo progresso com terra arrasada. Não perdemos uma oportunidade de derrubar monumentos do passado ou debochar dos heróis de outros tempos, em nome de disputas e desejos mesquinhos que nasceram ontem e amanhã já estarão mortos.
Assim, de um lado, os franceses não conseguem renovar sua forma de ser e agir; de outro, os brasileiros não conseguem construir coisa alguma de duradouro, porque as estruturas estão sempre sendo corroídas, por dentro como por fora. Em outras palavras, nosso esforço resulta vão, voltamos sempre ao ponto de partida. um pouco mais cansados, um pouco mais desiludidos. Crescemos, estagnamos, voltamos a crescer e a estagnar. Durante a expansão, temos consciência de que, mais cedo ou mais tarde, o freio virá; nossa reação é essa mistura de euforia e complexo de vira-latas que conhecemos tão bem.
Temos consciência de que o caso francês é o extremo oposto. Acho interessantíssimo observar os amigos que me visitam, quando falam do pendor local para o conservador e o antigo. Em todos, invariavelmente, o desprezo e a admiração se misturam como farinha e clara de ovo. Isso me lembra dois bordões eternos; o francês: “Como este país vai devagar!”, e o brasileiro: “Este país não vai pra frente!” Como dizem, os extremos se encontram no infinito.
O mal que vem dos Trópicos
Quase uma confusão terrível. Por pouco, não sou tomado por um risco à saúde pública. Do jeito que a turma anda neurótica por estas bandas, uma quarentena seguida de deportação não estaria inteiramente fora de questão. Durante alguns momentos, estive na berlinda, confundido com uma aberração doentia; lepra, micose, varíola, sei lá o que pensaram que eu tinha. Mas é profundamente desconfortável a sensação que dá quando as pessoas, no máximo de discrição de que são capazes, afastam suas cadeiras de você. O isolamento é doloroso, eu digo. E não passava, claro, de um pequeno mal-entendido.
Melhor começar pelo princípio, manda a prudência. Pois bem. Uma sala de aula ocupada por inteiro, três dezenas de pessoas espremidas em algo como 15 metros quadrados. Lá fora, a temperatura oscila entre frações de grau negativo e uns quebrados positivos. Dentro, a calefação automática exala seu ar pesado e mal-cheiroso, relegado à redundância pelas quase trinta respirações simultâneas. Alguém sugere abrir as janelas, mas os outros recusam. Medo do vento gelado e da chuva fina que às vezes cai.
O professor discorre sobre fenômenos, númens e coisas em si. É bom prestar atenção, para não perder o raciocínio. Difícil, com as alfinetadas do calor debaixo das três ou quatro camadas de roupa; entre a primeira e a pele, o suor se dissemina, desconfortável. Nada pior do que suar no inverno. Tentando não incomodar os demais, liberto-me do paletó opressor. Poucos minutos mais tarde, também parte o colete. É pena, mas tirar a camisa seria passar do limite. O máximo permitido é arregaçar – ou melhor, enrolar – as mangas. Eis o erro.
Área perigosa. Segunda fileira, posição central, bem diante dos olhos do professor. Enquanto transcrevo suas explicações intrincadas, ele lança um olhar involuntário para meu braço. Faz uma pausa, engole em seco, titubeia para voltar ao discurso. Mas é experiente e recupera o fio. À direita, um arrastar de cadeira. À esquerda, outro, um pouco mais violento. Buchichos; o mestre se irrita um pouco. Demoro a entender que a culpa é minha, mesmo quando dá a hora e todos se levantam.
Enquanto visto de volta as peças que arrancara em desespero, aproxima-se meu velho amigo Germain. Com a delicadeza que lhe é particular, tenta sorrir. Ofereço-lhe a mão para um cumprimento, mas ele, embaraçado, faz de conta que tem as suas ocupadas. Um ato desajeitado, que só fez sentido mais tarde. Tento não demonstrar que entendi. Germain, esforçando-se por não se aproximar demais, acompanha meus gestos com os olhos esbugalhados. Confesso-lhe minhas dificuldades com a aula. Ele não ouve; ao contrário, emenda uma questão envergonhada, em seu estilo pouco natural de falar, cheio de volteios literários e eufemismos estilísticos.
– Caro amigo, desculpe perguntar; quando você visitou seu país [ele sempre chama o Brasil de “meu país”], parece que cometeu uma pequena imprudência…
Nem preciso dizer que fiquei surpreso.
– Que imprudência, Germain?
– Estou certo de que existem avisos nas praias, para informar quando estiverem impróprias para o banho… Sua saudade era tão grande assim, a ponto de mergulhar em águas poluídas?
Só pude sorrir. Contei-lhe que não mergulhei em praia nenhuma. Nem própria, nem imprópria. Passei ao largo do fato de que os avisos aos banhistas só vêm pelos jornais e, mesmo assim, sem grande clareza. Expliquei que choveu o tempo inteiro nessas duas semanas, não deu praia, para meu desespero. Aliás, não me lembro que expressão usei para “dar praia”. Deve ter sido algo como “as condições não eram propícias”.
Germain alçou as sobrancelhas. Duvidava de mim. Sua incredulidade foi mais surpreendente do que ofensiva. Jamais ele havia colocado restrições a alguma declaração minha. Parecia absurdo que, de repente, ele resolvesse descrer assim. Percebi um movimento em seus lábios. De bem conhecê-lo, soube, desde o primeiro momento, que ele ruminava uma maneira de abordar o assunto incômodo sem causar ferimentos em minha sensibilidade.
– Desculpe, erro meu; pensei isso por causa da doença que te aflige…
Não há doença alguma que me aflija neste momento. Germain percebeu a interrogação desenhada entre meus olhos e se embaraçou. Gaguejou acintosamente e enrubesceu. Jamais eu o vira nesse estado. Quando, condoído, resolvi partir em seu socorro, ele se adiantou, inspirou profundamente e retomou o prumo. Delicadamente, admitiu a origem de sua idéia.
– Quando você enrolou a manga, pude ver o estado da pele… É terrível, quero que você saiba o quanto sou solidário!
Não foi de imediato que liguei os fatos. Quando o fiz, caí na risada. O professor, ainda na sala, me encarou, assustado, e escorregou para fora num instante. A expressão de Germain era toda enigma. Nas duas semanas em que estive no Brasil, de fato não deu praia; houve um único dia de sol. Nesse dia, eu estava nas montanhas. Sol de montanha, bem se sabe, é terrível. Fiquei vermelho, meus ombros ardiam, o peito do pé doía enormemente.
E como explicar para Germain que eu estava apenas descascando? Nem conheço a palavra francesa para “descascar”, nem, pelo visto, o sol da Côte d’Azur, do país basco e da Bretanha são capazes de fazer um banhista trocar de pele no dia seguinte. Tentei lhe explicar o princípio do descascamento: o sol bate, a gente esqueceu a loção 30, a pele vai escurecendo, às vezes fica vermelha, não passamos hidratante (bom, alguns passam…). Dá uns dias, a pele forma umas bolhas, pronto: descasca. Perfeitamente natural.
As sobrancelhas de meu amigo seguiam arqueadas; em sinal de dúvida, sim, mas sobretudo de asco. Esse papo de pele que descasca é coisa de bárbaros tropicais. As epidermes européias podem ficar encardidas, ásperas ou transparentes, mas, pelos céus!, jamais descascam. Nada disso ele formulou explicitamente, claro, mas pude ler por trás de seus olhos cinzentos. Era algo que ele preferia jamais ter aprendido. A esse ponto, eu já me divertia como uma criança; como uma criança, decidi torturá-lo.
Arregacei a manga novamente e anunciei: “vou te mostrar…” Germain é ágil, não me deu nem sequer o tempo de puxar a primeira pontinha de pele morta. Agradeceu, lembrou-se de algum compromisso e projetou-se porta afora, deixando-me de pé, sozinho na sala, brincando de descascar e rindo até cair no chão. Só consegui me controlar muito tempo depois, quando lembrei do professor: a essa hora, o sinistro filósofo poderia estar ao telefone, denunciando um aluno contaminado para o Ministério da Saúde.