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O mochileiro e a biblioteca

Sorte que nem todos os meus amigos lêem isto aqui. Com isso, posso fazer fofocas sobre alguns conhecidos sem risco de ofendê-los. Naturalmente, eu sou alguém de muito boas intenções e não vou me meter a espalhar os podres de quem quer que seja. Se abro uma exceção hoje, é por uma boa causa. Há episódios na vida da gente que nos põem a matutar e, se achamos as considerações pertinentes, postá-las é obrigação. Não é o blog uma ferramenta de reflexões? Pois.

Lá vai o causo: recebo a visita de um amigo que, já um pouco passado da idade, cumpre o ritual do mochilão pela Europa. Aqui é verão e dá pra ver que ele esteve pelo Mediterrâneo. Está queimado, expansivo e com alguns quilos de sobra. Instala-se como um saco de batatas no meu frágil sofá. Com a desenvoltura de quem acabou de passar pela Itália, agarra a cerveja que lhe estendo. E se põe a falar de suas aventuras, as turísticas e as amorosas, como é de seu feitio.

De repente, sem motivo para mudar o assunto, o rapaz envereda pela história de alguém que conheceu em Turim. Um livreiro desses que, sentados sob as arcadas da capital piemontesa (ah, que belas e saudosas arcadas!), passam a tarde jogando papo fora, a não ser que venha lhes incomodar algum cliente em potencial. O tal velhinho, que foi como meu amigo se referiu a ele daí por diante, se gabava de estar próximo de completar seu nono milésimo volume lido. Surpresa do viajante: com que então aquele pacato ancião tinha lido 9000 livros em sua vida?

Pois o homem assegurou que sim e, na rispidez do macho latino, desafiou meu amigo a duvidar. Nada disso, nada de dúvida, foi a réplica. O que queria o brasileiro era aprender a fórmula, conhecer a mágica, ser iniciado nas artes da leitura ininterrupta. A julgar por seu ar iluminado, eu diria que o aprendizado tinha sido um sucesso. Curioso, pedi que ele me concedesse ao menos um vislumbre do que lhe transmitira o guru.

Sem problemas, foi a resposta. E ele apontou para minha estante de livros. Pediu que eu supusesse uma estante mais avantajada, com quatro largas prateleiras. E eis o segredo de ler tanto quanto o tal senhor italiano: no início de cada ano, as duas prateleiras superiores deveriam ser preenchidas com os volumes a serem lidos ao longo do ano. O número que ele sugeriu era mesmo impactante: 120, ou um livro para cada três dias, mais ou menos.

À medida em que se fossem “consumindo” essas unidades, elas deveriam ser transferidas para as duas prateleiras inferiores, de tal maneira que, no final de dezembro, todos os 120 livros tivessem sido deslocados. Ora, objetei, ninguém consegue manter um passo tão puxado! Pois bem, explicou-me o mochileiro, com o passar dos meses, o leitor percebe que o “progress bar” (o termo é dele e me fez cair brevemente na risada) não está avançando a contento. Com isso, ele acelera, intensifica seu ritmo de leitura, pula páginas, faz o que for. Mas cumpre a meta. Cumpre a meta. Cumpre a meta!

Em seguida a esse predicado repetido com perdigotos e olhos esbugalhados, o visitante se ergueu e arrematou: o mais belo de todo o segredo é que aqueles livros enfileirados na barraquinha de Turim eram os frutos da leitura do ano anterior. Porque, e eis o pulo do gato, ao final do ano, cumprida a meta, todos os 120 anos tinham de ser doados, vendidos, jogados fora, qualquer coisa. Nada de guardar livro velho! Nada de mofo, nada de traças, nada de exibicionismo bibliófilo!

Afastando-me com um empurrão de bêbado, o visionário amigo partiu para cima de minha humilde biblioteca. Postou-se diante das lombadas e se pôs a coçar o queixo. Apontou, o dedo mole de desprezo, para minhas prateleiras e perguntou o que, “disso aqui”, eu já tinha lido ou ainda não. Nessa hora, confesso que empaquei.

Gaguejando, suando frio, talvez tremendo um pouco, fui obrigado a admitir que não tinha certeza, não sabia muito bem, estava em dúvida, assim, vacilando. O rapaz ficou pasmo. Lançou-me um olhar de zombaria, incredulidade e superioridade que provavelmente nunca esquecerei. Que espécie de demente não sabe dizer quais dos livros de sua própria estante ele já leu ou deixou de ler?

Ligeiramente humilhado, fiz um esforço de concentração para lhe dar uma resposta. À distância, examinei eu mesmo os títulos todos e tentei me lembrar do que eles diziam. Pouco a pouco, comecei a me dar conta de algo bastante curioso. Pouquíssimos eram os volumes cujo conteúdo eu desconhecia por inteiro. Normalmente, esses vazios correspondiam a presentes recebidos com um sorriso amarelo e largados no meio dos outros volumes. Alguns, também poucos, eu nunca havia tocado. Mas não eram exatamente “não lidos” porque, embora suas páginas nem tivessem sido cortadas1, eu sabia do que se tratava e os guardava ali como referência em potencial. Na verdade, eu sabia que nunca leria de fato aqueles livros, mas essa não era mesmo sua função. Eles estavam ali para dialogar com minhas ideias e outras leituras, quando fosse o caso.

Depois, consegui separar mentalmente mais um grupo, de longe o maior. Eram os livros “parcialmente” lidos. Os que comecei a ler, mas parei. Os que me valeram um ou dois capítulos, e só. Os que foram abertos duas ou três vezes, quando precisei de uma referência ou uma precisão. Os que, resumindo, preencheram uma lacuna ou outra, dessas que parecem tão trágicas no esforço de entender alguma coisa.

Por último, o grupo que quase lhe apontei: aqueles livros que li de cabo a rabo, da primeira página à última, introdução, prefácio, índice, notas e aquela última folha que nos informa que “este volume foi impresso na gráfica tal e tal para a editora tal e tal no dia tanto”… Mas me interrompi a tempo de salvar o patrimônio. Se meu amigo soubesse que aqueles livros eram já lidos, ele tentaria me convencer a doá-los, vendê-los, jogá-los fora. Talvez até os atirasse pela janela!

Mas tive um estalo. Eu estaria mentindo, se lhe dissesse que aqueles livros eram “já lidos”, como dizemos de um tubo de pasta de dente que ele já foi usado, esgotado, consumido, terminado. Mesmo se chegamos ao fim, será que matamos um livro, como matamos um pacote de biscoitos? Quantas vezes já não tive de voltar a um livro para me certificar da declaração de um personagem ou do argumento de um filósofo! Não seria cruel da minha parte dizer que esse livro que consultei, que reli, que folheei, é já lido, exausto, inútil a ponto de merecer a lixeira ou, vá lá, uma volta ao ciclo do mercado?

Tive de inventar uma outra estratégia. Meu amigo estava impaciente e desconfio de que já questionava minha sanidade mental. Expandi os braços, abri um largo sorriso, talvez tenha até dado um pequeno salto. E exclamei: “estou lendo todos!” Ele perdeu um pouco o equilíbrio, como eu esperava. O fator surpresa estava do meu lado e eu tinha de aproveitá-lo. Continuei com a explicação. Os livros jamais abertos são uma leitura em potencial, mas que nem por ser potencial é menos verdadeira. Em seguida, há os que estou lendo parcialmente – nesses, resta uma parte também potencial. Aqueles cujas páginas atravessei por inteiro são livros plenamente em leitura, e não plenamente lidos.

Meu oponente não estava muito convencido. Talvez se eu tivesse cabelos brancos e vivesse debaixo de arcadas centenárias… Não sei. Tentei convencê-lo da ideia de que um livro presente é um livro vivo e a leitura é só um detalhe da nossa relação com ele. Fiz uma analogia estranha com as commodities e os produtos fast-food que consumimos e esgotamos, depois mandamos para aterros sanitários e quetais. Ele amarrou a cara, prestes a manifestar sua discordância. Eu estava perdendo terreno para o ancião de Turim.

Até que toquei na corda certa. Com um cálculo meio absurdo, dei um tapa no ombro do amigo e passei os dedos pelas lombadas: “Acho que já passei dos nove mil… cada vez que penso num desses livros, é como se o lesse de novo. Assim, cada um vale por (digamos) dez. E acho que tem mais de noventa aqui…” Isso dito, os olhos do mochileiro brilharam. Ele sorriu, deu-me um abraço apertado, esqueceu do famigerado livreiro e sugeriu um brinde.
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1 Desculpe o anacronismo. Há décadas não se cortam mais páginas de livro, mas a imagem é tão poética…

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barbárie, capitalismo, crônica, escândalo, férias, frança, história, imprensa, jornalismo, línguas, obrigações, paris, passado, pena, Politica, prosa, reflexão, religião, saudade, tempo, trabalho, tristeza, vida

O Senhor do Universo

Nos primeiros dias, o Senhor do Universo me cumprimentava friamente. Foi se abrindo aos poucos, mas em poucas semanas já me recebia com o sorriso desinibido. Isso era mais do que um sinal de apreço: quando ele cumprimenta alguém, é cumprimento sério. O que estiver fazendo, o Senhor do Universo interrompe, mesmo que seja uma frase, enquanto dá seu aperto de mão firme, olhos sempre nos olhos.

Certa vez, nos longos períodos de espera, ele me relatou como o incomodava a indiferença ocidental para com a saudação. Cerra-se a mão e o assunto continua. O contato da pele foi mera formalidade, como bater ponto. Depois dessa confidência, passei a reparar na má vontade com que ele osculava as moças, dobrado ao costume local mas sempre recalcitrante. O beijo, tal como ele o entende, é intimidade, deveria ser reservado para a família e os amigos muito próximos, não para colegas de trabalho.

Sendo assim, eu me policiava ao lhe estender a mão. Não queria magoá-lo se, num deslize, comentasse em hora imprópria que o tempo estava feio. Durante o cumprimento, travestia um ar sério e mirava bem nos olhos do Senhor do Universo. Penso que ele me respeitava justamente por isso. E me estimava, na condição de único que tinha consideração por seus conceitos. Certa vez, a proprietária comentou comigo, mal disfarçando o despeito, que em três anos de convivência não tinha ouvido metade do que eu sabia sobre a vida dele. Certamente era verdade. Ela nem desconfiava, por exemplo, de que ele é o Senhor do Universo.

Não era difícil perceber a razão do segredo. O Senhor do Universo, que naturalmente não suporta a desonestidade, estava convencido de que ela burlava o fisco e errava de propósito o cálculo da hora extra dos subordinados. Verifiquei, depois, que ele tinha razão, mas pouco importa. Fato é que ela lhe perguntava da família e ele dizia friamente que iam bem, a filha recém-nascida e a esposa com dificuldades de adaptação ao novo país. O diálogo avançava muito pouco, mas como ele fazia o serviço corretamente, não corria risco de perder o emprego. Comigo, falava apenas em inglês, código incompreensível para a gaulesa monoglota que pagava nosso salário.

Eis sua rotina. Chega mais cedo, corta as batatas e põe as rodelas no forno. Separa as carnes, as verduras, os temperos, veste seu avental sempre impecável, termina tudo sempre muito antes de chegarem os clientes. Eu entrava com o pão, saía com as toalhas e talheres; enquanto punha as mesas, via-o puxar a agenda e escrevinhar, muito concentrado. O Senhor do Universo, se pudesse ter escolhido, viveria da poesia, que eu ia esguelhar, mais tarde, quando tinha de anotar alguma reserva. Os versos, eu não compreendia. Meu deleite era contemplar as curvas do estranho alfabeto, que me faziam lembrar os arabescos do Taj Mahal, na caligrafia caprichada e miúda de meu colega.

Certa vez, ele me traduziu um dos poemas. Era um epigrama que dizia algo assim: “As pessoas vêem as flores do caminho e dizem: ‘que belas’! Mas logo esquecem”. No original, soava bem. Em seguida, pediu que eu traduzisse algo do português. Escolhi Fernando Pessoa, mas pareceu não tocá-lo, a não ser pelo trecho em que “Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu.” Foi uma noite poética. A centenas de quilômetros do oceano, esses versos foram repetidos diversas vezes, em inglês improvisado, para fixar.

O Senhor do Universo, na verdade, era jornalista. Com seu senso aguçado de justiça, escolheu a editoria mais arriscada para trabalhar. Num país instável como o Bangladesh, onde nasceu e por quem é fervoroso patriota, produzia matérias de política. Soube disso no meio de uma noite tediosa, em que nosso restaurante deu prejuízo, porque não apareceu um cliente sequer. Restou ao garçom brasileiro e ao cozinheiro bengali beber e falar da vida, cada um de seu lado do balcão. Ouvi todo o relato, contado com uma frieza que me pareceu insólita. Uma série de matérias sobre um partido radical islâmico, que cooptava jovens camponeses, acabou lhe rendendo um sequestro. Uma servente, arriscando a própria vida pelo jovem inocente, o libertou e lhe aconselhou a fuga. O repórter não pôde passar em casa, nem telefonar para a família aflita. Sem dinheiro ou documentos, conseguiu, nem sabe como, chegar à Índia, onde amigos o acolheram e enviaram para a Itália. De lá, passou para a França, exilado, empobrecido e desempregado.

Isso aconteceu há sete anos. Desde então, o Senhor do Universo aprendeu o francês, empregou-se primeiro como pizzaiolo, depois como cozinheiro de um restaurante típico de uma região chamada Ariège, de que eu nunca tinha ouvido falar antes de me empregar ali. Ele tampouco, evidentemente. Muçulmano, mas vagamente praticante, não se alimenta das carnes que passa a noite preparando, mas afirma que o motivo seja menos a religião e mais o paladar. Qualquer comida é intragável para ele se não leva curry, então o que o salvou da inanição foi a chegada da esposa, há dois anos, para acompanhá-lo e cozinhar seu jantar de todo dia. Assim, enquanto eu me refestelava com o pato ou o ensopado que ele preparou, o Senhor do Universo se recolhia com os potes de plástico trazidos de casa. Calado, mastigava o frango ao curry, o arroz ao curry, os legumes ao curry, o curry ao curry.

Quando não discorria sobre poesia ou a política de seu país, ele reclamava da sujeira de Paris e da preguiça dos fornecedores, com quem não raro discutia ao telefone, em seu francês agudo e quase incompreensível. Sonhava, aliás ainda sonha, em se transferir para a Inglaterra, onde espera conseguir retomar a carreira jornalística no idioma ocidental que melhor conhece. Acaba de obter a cidadania francesa, pode circular pela Europa o quanto quiser, mas não é tão fácil mudar de país, com a família dependente de seu salário.

Enquanto trabalhei com ele, eu não sabia que se tratava do Senhor do Universo. Para mim, era um sujeito de valor, castigado pela injustiça do mundo, mas orgulhoso demais para se queixar. Eu ficava inconformado, vendo-o arear as panelas antes de partir, de madrugada, um poeta que atravessou o mundo para escapar da perseguição política, um profissional honesto e idealista reduzido a imigrante, um espírito mal aproveitado por um espécie humana incapaz. Tentei convencê-lo a publicar suas memórias, já escritas. Ofereci ajuda na tradução e na procura por uma editora ou um agente.

A idéia fez brilharem seus olhos, mas ele estava cansado demais para perseguir a glória literária. Uma vez, findo o expediente, reparei nos esgares que ele produzia na tentativa de se calçar, sentado ao lado da porta. Conseguiu, mas suspirou. À luz amarelada que entrava pela janela, pude notar o desânimo em seu rosto. Por algum motivo, guardei silêncio. Ao contrário, foi ele que comentou, quase suspirando, que trabalho em restaurante é para gente jovem e forte. Antes que eu respondesse, ele soltou uma risada breve e amarga, emendada numa pergunta: se meu nome tinha algum significado. Respondi dando de ombros, incerto. Oliveira é uma árvore; Viana, não sei, mas é uma cidade portuguesa; Diego é uma das infinitas variações de um nome bíblico pouco lisonjeiro, o gêmeo invejoso.

Antes de me explicar seu próprio nome, ele alçou a cabeça como se fosse olhar em volta. Mas não seria preciso examinar aquele restaurante de vinte e poucos lugares, que tão pouca importância dava às exigências da higiene. O clima já se bastava em melancolia, com a penumbra, a chuva manhosa, o vento frio. Então ele traduziu seu próprio nome, rindo da minha reação de surpresa. Apesar de sorrir e me fazer de incrédulo, eu me enchi de tristeza. Que mundo sarcástico, que mundo cruel, pensei, este em que pode estar oculto num recanto ignóbil o Senhor do Universo.

* * *

PS: A propósito, ele tem um blog (um pouco desatualizado, porém). Para quem conseguir decifrar o alfabeto e a língua, eis o endereço: http://sarwarealam.blogspot.com

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cidade, comunicação, conto, crônica, desespero, escândalo, frança, francês, literatura, paris, prosa, reflexão, trem, tristeza, viagem, vida

Um episódio em parte real

Como quase tudo que me sucede por aqui, foi no metrô. Madrugada de sábado, uma das últimas composições, já quando o intervalo entre uma e outra passa dos dez minutos. A namorada e eu cansados pelo horário, um tanto altos, mas nem por isso bêbados, esperávamos no silêncio dos que não têm forças para falar. Enfim veio o trem. Havia lugares vagos, para alívio de ambos, e por milagre eram contíguos. Sentamo-nos, eu muito distraído, o olhar para fora da existência, recusando-se a fixar qualquer objeto. Teria continuado assim por toda a viagem, se não ouvisse o suspiro.
– Tadinho!

Virei o rosto para ver o que se passava. Era um homem muito velho, que tentava alcançar a porta. A lâmpada vermelha já piscava, o alarme soava anasalado e arrogante, mas o pobre ancião não tinha nem condição de se apressar, tal era seu estado de decadência física. Cortava o coração vê-lo ali, radicalmente encurvado, esticando os braços a um passo da porta, no esforço heróico de colocar um pé diante do outro. Elogios ao condutor, que, do outro lado da estação, avistou a cena pelo espelho e atrasou nossa partida. Imagine aquele senhor, tão castigado, tendo de esperar um quarto de hora, em pé na plataforma.

O atraso nos deu a oportunidade de agarrar seus braços e alçá-lo para dentro, eu e um outro sujeito igualmente distraído, absorto na música de seu aparelhinho. Foi só o tempo de ele entrar, a porta fechou-se e fomos postos em movimento. Mas como o trem sacudia, já que sacudir é da natureza dos trens, foi necessário ainda segurar o pobre velho desequilibrado, que não tinha forças de se agarrar ao poste de alumínio, nem contrariar o ímpeto da composição para chegar ao assento.
Ele nos agradecia, meneando a cabeça, enquanto o conduzíamos a sentar-se. Instalado, dobrou-se sobre si mesmo e se pôs a revirar o interior do paletó. Não foi surpresa alguma constatar que sua mão tremia com violência. Uma mão de ossos, pele seca e grandes manchas circulares.

Em nome da discrição que as boas maneiras prescrevem, retomei meu assento e meu ar distraído. Do que parecia um episódio terminado, guardava apenas o sentimento de ter realizado a boa ação do dia. Tão grande era minha distração que não acompanhei a seqüência dos movimentos do ancião e, quando ele me estendeu um pequeno objeto, tomei-o sem atentar para o que era.

Vejo agora que foi um erro. Se já não o tivesse entre os dedos, poderia apenas espalmar a mão para recusar o maço de dinheiro que me fora presenteado. Àquele ponto, a quantia era impossível de estimar. Um canudo grosso feito de notas de cinqüenta. Talvez houvesse mais de mil euros atados com um elástico.

Pasmado, ergui os olhos e percebi que muitos me encaravam com ar severo. Ao meu lado, a namorada apertava minha perna, as unhas enfiadas na carne. À frente, o outro rapaz transparecia o mesmo pensamento que o meu, também segurando um maço de notas, sem jeito, o dinheiro lhe queimando os dedos. Como eu, ele claramente não sabia o que fazer. Mas foi o primeiro a falar.

– Monsieur…

Do colega, meus olhos retornaram ao pobre ancião dobrado sobre o assento à minha frente. Observei-o como antes não quisera fazer. Se me referi a ele como “pobre”, não poderia ter escolhido adjetivo mais infeliz. Cada peça de sua roupa indicava o contrário. Os óculos espessos, de aro dourado, acusavam marca das mais cobiçadas. A gravata vermelha era de seda e estampava um padrão característico dos altos funcionários da burocracia francesa. Nos sapatos, no paletó, na carteira de couro, em tudo estava explícita a condição privilegiada daquele velho que nos causava tanta pena.

Imediatamente, assomou ao meu espírito a questão mais óbvia. Que será que o levara a andar de metrô na madrugada de sábado? Um homem em suas condições, rico e doente, quase inválido, poderia muito bem ter tomado um táxi, se não possuísse um carro próprio, conduzido por chofer de luvas brancas. Como fora parar ali? Formulei internamente uma resposta: a idade afetava sua capacidade de raciocínio. Era, sem dúvida, um senil. Isso explicaria não só sua presença, mas o dinheiro que ele metera em nossas mãos.

Já que o outro beneficiado não ia além do vocativo, eu mesmo tive de superar a surpresa e formular um protesto.

– Desculpe, o senhor se enganou. Não precisa dar recompensa, ajudamos por ajudar.

O outro concordou com a cabeça. Fiquei com a impressão de que ele estava aliviado. Mas o velho se recusou a recuperar o dinheiro.

– Não é recompensa. É presente.

Dessa vez, foi o outro que falou, argumentando com a típica linguagem empolada dos franceses.

– O senhor compreende que não é habitual receber somas de desconhecidos, sobretudo com um valor tão elevado…

Em voz baixa e sumida, firme ainda assim, o ancião interrompeu a declaração de recusa e se pôs a explicar, lentamente e em tom autoritário, por que nos deslizara os canudos de dinheiro. Anunciou que estava muito doente e, como podíamos perceber, muito velho. Sabia que seu futuro não contava mais do que um par de meses. Possuía dinheiro demais, pretendia distribuí-lo e se achava no direito de fazê-lo da maneira que escolhesse.

– Minha fortuna, podem acreditar, me serviu bastante, por décadas e décadas. Lutei muito por esse dinheiro, mas também aproveitei como ninguém. Agora chega. Passei no banco, tirei tudo que tinha no caixa. Vou fazer a mesma coisa amanhã e até o corpo não aguentar. Vocês dois me ajudaram, parecem bons garotos, façam o que quiserem com o dinheiro. Comprem alguma coisa, jantem no Alain Ducasse, a escolha é de vocês. Se quiserem uma dica, sugiro viajar. As viagens são a melhor coisa que o dinheiro pode oferecer.

Os olhares que até então me cobravam, agora só exalavam curiosidade, temperada de uma ligeira inveja. Eu cumprira meu dever, recusara o dinheiro. O que fizesse daí por diante não sofreria de carga moral. O mesmo valia para meu companheiro de berlinda, também observado e incomodado. Percebi que, de uma hora para outra, minhas decisões seriam tomadas diante de uma plateia. Como se vivêssemos um estranho programa de auditório gravado no último vagão do metrô, uma composição que seguia seu caminho a chacoalhar e guinchar, fingindo que em suas entranhas só acontecia o perfeitamente corriqueiro.

Sem recursos, fiz o que deveria ter feito em primeiro lugar. Busquei os olhos de minha companheira. Ali, ao meu lado, ainda apertando com força a minha perna, ela me encarava com uma espécie de piedade, ciente de que não há dor pior, para mim, do que ser observado. Em sua expressão, pude ler o desejo de que nada daquilo tivesse acontecido, que pudéssemos simplesmente chegar em casa, como todas as noites, conversando sobre os eventos do dia, depois ver um filme e dormir em paz. Pequenos, humildes, felizes, sem incômodo.

Fui dominado por um leque de sentimentos inconciliáveis. Quis saltar na primeira parada e correr para a rua, longe dos olhares, só eu e minha consciência abalada. Quis ofender o velho, atirar-lhe o dinheiro ao colo, vociferando que a origem só poderia ser suja, indigna, corrupta. Quis arrancar o elástico que prendia o cilindro e lançar o dinheiro para o alto, de modo a que os demais viajantes saíssem da confortável posição de audiência para o ridículo de disputar dinheiro.

E quis chorar, mas não chorei. Não sei por que quis chorar, não sei por que não o fiz. Nem sei dizer quanto tempo se passou antes que eu olhasse para meu duplo, a poucos passos de mim, e o surpreendesse também congelado, esperando minha reação como eu esperava a sua. Acho que ele se dava conta, ao mesmo tempo que eu, de um detalhe muito estranho.

Aquele dinheiro não tinha graça. Se, como sugerira o doador, eu comprasse um computador, um jantar caríssimo ou uma viagem deliciosa, seria uma aquisição morta, frustrante. E fugaz, porque alimentada por um capital de ilusão, alheio, casual. No dia seguinte, deixaria como legado um rastro de pobreza. Aquele papel valioso, de que ambos certamente temos necessidade, nenhum de nós o queria de verdade. Entretanto, ainda que não o quiséssemos, tampouco tínhamos coragem de devolvê-lo. Honra é honra, orgulho é orgulho, mas dinheiro, acima de tudo, é dinheiro.

No impasse, o elemento preponderante era, sem dúvida, a presença do público. Cheguei a desejar que fosse coisa da minha imaginação a idéia de que o vagão inteiro estava submerso no suspense, impaciente para acompanhar o final da história, pronto para apertar os celulares e votar na ação que os protagonistas deveriam seguir. Pois bem, os protagonistas éramos eu e o desconhecido que se tornara, de súbito, meu irmão.

Mas veio a prova de que estávamos, de fato, no centro das atenções. Chegamos a uma estação em que se cruzam quatro linhas de metrô e duas de trem. Onde centenas de milhares de pessoas trocam de direção a cada dia. Mas ninguém desceu, ainda que muitos já estivessem colocados diante das portas. Subiram boas duas dúzias de pessoas, que se espremeram no espaço que deveriam deixar os que saíssem. Não entenderam por que havia tanta gente e uma atmosfera tão pesada. Mas para mim foi uma ponta de alívio.

Só uma pessoa se mantinha alheia ao suspense. O velho, entregue à caquexia, olhava para os próprios joelhos. Balançava a cabeça, com seu cabelo esparso e espetado. Senti raiva, pensei divisar um sorriso de escárnio, tive ganas de agredi-lo como a um cão indefeso. Se o fizesse, como reagiria a plateia? Que me aplaudissem e louvassem, que me linchassem e vaiassem, não sei o que seria mais abjeto. Alguém, ali, talvez já tivesse uma câmera de vídeo empunhada, pronta para tornar a mim e ao outro rapaz estrelas da internet.

A não ser pelos recém-chegados, para quem tudo devia andar na mais perfeita normalidade, não havia conversas. Ouvíamos o tempo que me apertava o pescoço, sentíamos a fricção dos trilhos. O metrô já chegava à estação seguinte, a penúltima de nosso percurso programado, e eu ainda só conseguia pensar em desaparecer.

A claridade da plataforma invadiu as janelas, despertou-me do torpor. Freávamos. Novamente, busquei a opinião de meu colega de impasse. Percebi que ele tremia um pouco. Tive esperança de que seria ele a romper a teia e resolver a situação. Aguardei, olhos cravados nos seus. E ele não me decepcionou. Quando paramos, projetou-se para cima de mim, tão rápido que não tive tempo para o sobressalto, agarrou o dinheiro das minhas mãos, aproximou o rosto do meu, encarou-me com olhos fixos, olhos negros e decididos, e disse, mais ar do que voz:

– Je ne supporte plus!

Vendo que eu meneava, inteiramente de acordo, ele se ergueu e foi até a porta. O alarme se pôs a soar, mas o prazo curto só aumentou sua determinação. Ele ergueu a alavanca. Ouvimos o estrondo do metal, sentimos a brisa fresca e malcheirosa invadir o vagão, acompanhamos o gesto com que ele atirava ao longe os dois cilindros valiosos, grunhindo de raiva.

Enquanto meu novo amigo recuperava o fôlego, acompanhando o dinheiro que rolava para o canto da plataforma, as portas se fecharam novamente diante de seu nariz, velozes como lâminas de guilhotina. Quanto à fortuna, ela seria de quem a encontrasse, provavelmente um mendigo ou um gari. Nossa, não seria.

Cheguei a fantasiar que o catalisador de toda a história desapareceria de repente ou revelaria ser um demônio, um duende, qualquer ser sobrenatural. Mas qual, o velho continuou encalacrado, olhos nos joelhos, como se nada se passasse à sua volta. Uma frieza tamanha me causou calafrios e reforçou minha convicção de que algo ali não podia ser humano.

Recebi um abraço da namorada e pude perceber que ela passara os últimos instantes com a respiração presa. Eu também. De volta à calma, também veio o outro, o corajoso, para me cumprimentar. Pus-me de pé e apertamos as mãos. Mas aquele não poderia ser um cumprimento formal, desses que se dão no início das reuniões de negócios. Apesar de nem sabermos o nome um do outro, trocamos um abraço forte, com tapa nas costas, como se fosse no Brasil.

Logo, porém, fomos lembrados de que não estávamos sós e o episódio escapava à nossa esfera. Antes que nos afastássemos, alguém começou a bater palmas. Em um segundo, todo o vagão aplaudia, até mesmo algumas das pessoas que vinham de entrar e praticamente não acompanharam o ocorrido. O ancião continuava atento a seus joelhos.

O desconforto voltou de um golpe. Tudo começara por causa de uma figura surgida do nada, e de repente queriam me fazer de celebridade. Esperavam sorrisos, um aceno, mais abraços e cumprimentos, fotografias, talvez até autógrafos. Mas eu não tinha escolhido, não queria nada assim. Só pensava em deixar aquele ambiente claustrofóbico e ser esquecido por todos eles. Uma hora da manhã de um sábado qualquer, mas era como se apresentássemos um programa de televisão. Desconhecidos sorriam para nós, faziam perguntas, espoucavam flashes indiscretos. E não teríamos mais nem ao menos o consolo de uma viagem luxuosa ou um jantar elegante.

Pareceu uma eternidade até que a estação chegasse. Enfim, era a nossa. Descemos. Junto conosco, vieram meu bravo companheiro e uma multidão insuportável, incluindo sem dúvida muita gente que já deveria ter saltado. O doador senil continuou na mesma posição, olhos nos joelhos.

O trem partiu, a turba se dissolveu, o pesadelo acabou.

Perguntei ao novo amigo:

– Você também mora no bairro?
– Não – ele respondeu, com seriedade quase solene. – Moro no final da linha, mas acho que prefiro pegar o próximo trem.

Jamais compreendi tão bem uma decisão quanto aquela, apesar dos doze minutos de espera que ele teria pela frente. Pensei que poderíamos lhe fazer companhia, mas os olhos da namorada já mal se mantinham abertos e minhas próprias pernas bambeavam.

Cumprimentei-o mais uma vez e, sem outras palavras, nos separamos. Apesar do episódio intenso que nos uniu, espero que jamais tornemos a nos encontrar.

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Como aprendi sobre a morte

Bobby O Boneco De Neve
Vou ter de deixar para a próxima o tal comentário sobre os plátanos, que venho prometendo desde o início do mês. Como sói acontecer no poço inesgotável de surpresas que é este mundo, veio se interpor a meus projetos botânicos um fenômeno insólito. Já a alma dirigia seus cuidados à sagração da primavera, ao final de mais um inverno tão ameno quanto desagradável; espaços já se abriam nos armários, para receber as carapaças que nos protegem desde outubro; passeios e refeições ao ar livre já estavam no programa. Mas São Pedro tinha outros planos. Mandou baixar bruscamente a temperatura, dos dezesseis para o zero mais quadrado. A tal ponto que, na madrugada de ontem, perigosamente equilibrado entre a saúde e a pneumonia, levantei-me da cama, espiei por uma fresta da cortina e constatei o absurdo: do alto vinha neve.

Em vez de me meter em divagações seriamente preocupadas com as piores questões climáticas de nosso tempo (e talvez essa fosse mesmo a reação mais adequada), corri de volta ao quarto e despertei Nicole. Sabedor de sua frustração por não ter visto um floco sequer de neve desde que chegamos à Europa, não podia deixar passar essa singular chance primaveril. Tadinha, ela acordou com olhos deste tamanho, grogue e incapaz de compreender meu entusiasmo. Isso, até o momento em que se acercou da janela e avistou os automóveis todos brancos. Como no pátio de um hospital. Ela saltitava de contentamento.

Puxei o casaco que tinha mais à mão, um cachecol, um gorro, um par de luvas. Meti-me na carapaça e saí. Como um turista tropical, o que no fundo não deixo de ser, tirei fotos e fiz desenhos na camada de gelo sobre os veículos. Corri até a janela de casa, bati no vidro, Nicole abriu. Finalmente, recolhi neve e mais neve, que resultou num boneco de um palmo e meio de altura, ereto sobre o parapeito. Bobby (não fui eu que o batizei) ganhou olhos de botões, um cachecol cor-de-rosa e terra espargida sobre a cabeça à guisa de cabeleira. Tudo na mais refinada técnica que aprendi quando garoto e não pudera mais aplicar.

Assim termina a parte alegre da narrativa. Bobby teve vida curta. A neve parisiense, à qual fui praticamente apresentado ontem, é tão fraca, que nem cobre de branco as calçadas. Nessas condições, um boneco de neve, como o sol de Gregório de Matos, não dura mais que um dia.

Pior do que aprender da existência efêmera é acompanhar o processo. Chegando em casa, parei diante da janela e me deparei com um corpo branco, ainda em pé, tendo ao lado a cabeça tombada, toda suja, sobre a terra negra de um vaso que em breve deverá receber flores. Do pescoço cortado não escorria sangue, mas filetes de água, como se a essência da vida se esvaísse lentamente do pobre Bobby. Tentei encaixar novamente a cabeça, ela voltou a tombar. Recolhi os olhos, reduzidos novamente a botões sem luz.

Ao anoitecer, restava do corpo de Bobby somente um cotoco amolecido. Pensei em guardá-lo na geladeira, mas venceu a sensação de que seria como meter os restos de um filho no IML. Aquele montículo de neve fazia pensar nos corpos dos imolados pelo fogo, embora tão oposto em cor e temperatura. Uma imagem dolorosa e, de certa forma, repulsiva. Estragou meu humor pelas horas seguintes.

Já deitado, pensei no infeliz destino de Bobby, que tão pouco pôde ver deste mundo antes que um sol fraco o consumisse lentamente. Vieram à memória passagens da infância, vivida numa cidade fria, muito mais do que Paris, coberta de neve por quatro ou cinco meses todo ano, a ponto de ao menos um dia de aula ser cancelado a cada mês do inverno. Lembrei-me principalmente de um homem de neve digno do nome, de cachecol, chapéu de cangaceiro e charuto, olhos, nariz e boca, que passou a vida toda de sentinela no quintal, vendo e cumprimentando as pessoas que passavam. Uma existência mais digna e bem mais longa que a do último boneco: quase dois meses. Mas acabou. Sua agonia foi semelhante à de Bobby, só muito mais demorada. Dia após dia, a massa do corpo ficava menor e perdia a forma, a poça se adensando na base. Cachimbo e nariz tombaram, os olhos furaram os flocos da carne, o chapéu e o cachecol foram logo confiscados.

Lembro-me de uma fotografia, já na primavera, desse homem de neve reduzido a quase nada. Em verdade, a fotografia não era dele: era um intruso, ao fundo, mas foi o que vi. A imagem é chocante. E a experiência de acompanhar a decomposição de um amigo que ajudei a conceber e montar, nem preciso dizer, ficou gravada com um selo de dor.

Foi a primeira vez em que aprendi algo sobre a morte. Com quantos anos? Cinco, no máximo seis. O falecimento de Bobby produziu um déjà-vu tenebroso. Foi como uma sessão de psicanálise. Entendo agora, também, por que os povos do Norte, enfim, do frio em geral, têm a expressão sempre tão triste e fechada. Não é a escuridão do inverno. É a experiência tão precoce da morte, repetida a cada ano no corpo frágil e roliço de um boneco simpático como Bobby.

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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O mal que vem dos Trópicos

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Quase uma confusão terrível. Por pouco, não sou tomado por um risco à saúde pública. Do jeito que a turma anda neurótica por estas bandas, uma quarentena seguida de deportação não estaria inteiramente fora de questão. Durante alguns momentos, estive na berlinda, confundido com uma aberração doentia; lepra, micose, varíola, sei lá o que pensaram que eu tinha. Mas é profundamente desconfortável a sensação que dá quando as pessoas, no máximo de discrição de que são capazes, afastam suas cadeiras de você. O isolamento é doloroso, eu digo. E não passava, claro, de um pequeno mal-entendido.

Melhor começar pelo princípio, manda a prudência. Pois bem. Uma sala de aula ocupada por inteiro, três dezenas de pessoas espremidas em algo como 15 metros quadrados. Lá fora, a temperatura oscila entre frações de grau negativo e uns quebrados positivos. Dentro, a calefação automática exala seu ar pesado e mal-cheiroso, relegado à redundância pelas quase trinta respirações simultâneas. Alguém sugere abrir as janelas, mas os outros recusam. Medo do vento gelado e da chuva fina que às vezes cai.

O professor discorre sobre fenômenos, númens e coisas em si. É bom prestar atenção, para não perder o raciocínio. Difícil, com as alfinetadas do calor debaixo das três ou quatro camadas de roupa; entre a primeira e a pele, o suor se dissemina, desconfortável. Nada pior do que suar no inverno. Tentando não incomodar os demais, liberto-me do paletó opressor. Poucos minutos mais tarde, também parte o colete. É pena, mas tirar a camisa seria passar do limite. O máximo permitido é arregaçar – ou melhor, enrolar – as mangas. Eis o erro.

Área perigosa. Segunda fileira, posição central, bem diante dos olhos do professor. Enquanto transcrevo suas explicações intrincadas, ele lança um olhar involuntário para meu braço. Faz uma pausa, engole em seco, titubeia para voltar ao discurso. Mas é experiente e recupera o fio. À direita, um arrastar de cadeira. À esquerda, outro, um pouco mais violento. Buchichos; o mestre se irrita um pouco. Demoro a entender que a culpa é minha, mesmo quando dá a hora e todos se levantam.

Enquanto visto de volta as peças que arrancara em desespero, aproxima-se meu velho amigo Germain. Com a delicadeza que lhe é particular, tenta sorrir. Ofereço-lhe a mão para um cumprimento, mas ele, embaraçado, faz de conta que tem as suas ocupadas. Um ato desajeitado, que só fez sentido mais tarde. Tento não demonstrar que entendi. Germain, esforçando-se por não se aproximar demais, acompanha meus gestos com os olhos esbugalhados. Confesso-lhe minhas dificuldades com a aula. Ele não ouve; ao contrário, emenda uma questão envergonhada, em seu estilo pouco natural de falar, cheio de volteios literários e eufemismos estilísticos.

– Caro amigo, desculpe perguntar; quando você visitou seu país [ele sempre chama o Brasil de “meu país”], parece que cometeu uma pequena imprudência…

Nem preciso dizer que fiquei surpreso.

– Que imprudência, Germain?

– Estou certo de que existem avisos nas praias, para informar quando estiverem impróprias para o banho… Sua saudade era tão grande assim, a ponto de mergulhar em águas poluídas?

Só pude sorrir. Contei-lhe que não mergulhei em praia nenhuma. Nem própria, nem imprópria. Passei ao largo do fato de que os avisos aos banhistas só vêm pelos jornais e, mesmo assim, sem grande clareza. Expliquei que choveu o tempo inteiro nessas duas semanas, não deu praia, para meu desespero. Aliás, não me lembro que expressão usei para “dar praia”. Deve ter sido algo como “as condições não eram propícias”.

Germain alçou as sobrancelhas. Duvidava de mim. Sua incredulidade foi mais surpreendente do que ofensiva. Jamais ele havia colocado restrições a alguma declaração minha. Parecia absurdo que, de repente, ele resolvesse descrer assim. Percebi um movimento em seus lábios. De bem conhecê-lo, soube, desde o primeiro momento, que ele ruminava uma maneira de abordar o assunto incômodo sem causar ferimentos em minha sensibilidade.

– Desculpe, erro meu; pensei isso por causa da doença que te aflige…

Não há doença alguma que me aflija neste momento. Germain percebeu a interrogação desenhada entre meus olhos e se embaraçou. Gaguejou acintosamente e enrubesceu. Jamais eu o vira nesse estado. Quando, condoído, resolvi partir em seu socorro, ele se adiantou, inspirou profundamente e retomou o prumo. Delicadamente, admitiu a origem de sua idéia.

– Quando você enrolou a manga, pude ver o estado da pele… É terrível, quero que você saiba o quanto sou solidário!

Não foi de imediato que liguei os fatos. Quando o fiz, caí na risada. O professor, ainda na sala, me encarou, assustado, e escorregou para fora num instante. A expressão de Germain era toda enigma. Nas duas semanas em que estive no Brasil, de fato não deu praia; houve um único dia de sol. Nesse dia, eu estava nas montanhas. Sol de montanha, bem se sabe, é terrível. Fiquei vermelho, meus ombros ardiam, o peito do pé doía enormemente.

E como explicar para Germain que eu estava apenas descascando? Nem conheço a palavra francesa para “descascar”, nem, pelo visto, o sol da Côte d’Azur, do país basco e da Bretanha são capazes de fazer um banhista trocar de pele no dia seguinte. Tentei lhe explicar o princípio do descascamento: o sol bate, a gente esqueceu a loção 30, a pele vai escurecendo, às vezes fica vermelha, não passamos hidratante (bom, alguns passam…). Dá uns dias, a pele forma umas bolhas, pronto: descasca. Perfeitamente natural.

As sobrancelhas de meu amigo seguiam arqueadas; em sinal de dúvida, sim, mas sobretudo de asco. Esse papo de pele que descasca é coisa de bárbaros tropicais. As epidermes européias podem ficar encardidas, ásperas ou transparentes, mas, pelos céus!, jamais descascam. Nada disso ele formulou explicitamente, claro, mas pude ler por trás de seus olhos cinzentos. Era algo que ele preferia jamais ter aprendido. A esse ponto, eu já me divertia como uma criança; como uma criança, decidi torturá-lo.

Arregacei a manga novamente e anunciei: “vou te mostrar…” Germain é ágil, não me deu nem sequer o tempo de puxar a primeira pontinha de pele morta. Agradeceu, lembrou-se de algum compromisso e projetou-se porta afora, deixando-me de pé, sozinho na sala, brincando de descascar e rindo até cair no chão. Só consegui me controlar muito tempo depois, quando lembrei do professor: a essa hora, o sinistro filósofo poderia estar ao telefone, denunciando um aluno contaminado para o Ministério da Saúde.

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