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Ainda mais ao norte

Carl Xiii
Nenhum dia na Suécia é igual ao anterior. Tão violenta é a variação das horas de luz e trevas, que os suecos não conseguem conter o comichão de comentar o assunto, quando a curva da primavera vai se tornando mais e mais aguda: “nesta época”, eles informam, cúmplices de contentamento, “são cinco minutos de sol a mais por dia”. E o dado confere com o que aprendemos na véspera.

Não sei quem foi que convencionou as datas que marcam a virada das estações, seguindo os solstícios e equinócios. É provável que tenha sido a academia de ciências da França, como sempre, no mesmo golpe em que foram inventados o metro, o quilo e todo o resto das medidas rigidamente decimais, às quais só os anglo-saxões ainda tentam resistir. Em todo caso, certamente não foram os suecos. O dia se equipara em duração à noite na penúltima semana de março; na última, tem início o horário de verão. Mas é final de abril e não há sinal de verão em Estocolmo. Difícil topar com uma árvore já pontilhada de brotinhos de folhas. Enquanto em Paris as sakura já murcham e passam do rosa ao verde, na Escandinávia ainda abrem os primeiros botões de cerejeira.

Os cariocas dizem que o Rio de Janeiro conta com só duas estações: verão e inferno. Piada antiga. Na Suécia, pode-se dizer algo parecido: há o inverno, inferno oposto ao fluminense, e o “não-inverno”. Em julho, o termômetro eventualmente bate nos trinta e os nórdicos derretem. Hoje, domingo, primeiro dia no ano com céu em puro azul, temperatura positiva já ao amanhecer e mais de dez graus no princípio da tarde. A cidade inteira se lança à rua, redescobrindo os territórios que deixou vazios desde setembro. Coisa linda de se ver. Para nós, é muito frio, mas eles aproveitam para deixar braços e pernas finalmente nus. Não os pescoços, cabe alertar: só um louco sairia sem cachecol antes de maio, arriscando uma pneumonia que o deixe prostrado na cama por todo o verão. Nem pensar.

Pergunte a um sueco como ele consegue viver num lugar coberto de neve de setembro até abril. Faça isso a título de experimento antropológico. Há aqueles, com alma de esquimó, que consideram insuportável de tão quente o inverno de outros países europeus, como a Alemanha. Mas é minoria. Há boas chances de que a resposta seja um suspiro, seguido da confissão: “não sei”. Muitos têm o sonho de se mudar para um país mais ameno, para não dizer quente. Alguns citam a Jamaica, porque é tropical e fala-se inglês. E todo sueco é fluente em inglês, com uma pronúncia muito mais agradável do que a dos nativos, sejam britânicos, americanos, australianos, indianos… Ao final de outra pausa, longa e melancólica, o entrevistado responderá em tom de profecia, mais do que de descoberta: “Suporto o inverno para esperar o verão”.

Concluo que o frio extremo é, antes de mais nada, um grande aprendizado. Com a sucessão dos anos, a espera pia por um verão curto e apenas fresco ensina os jovens a se tornarem pacientes. Talvez isso explique o nível de civilização do país e do povo. A Suécia é tudo que dela se diz. ônibus não atrasam, lixo nas ruas é lenda das terras bárbaras ao sul (e praticamente o mundo inteiro está ao sul), mendigo é coisa do passado. Covardia comparar a Suécia à França. A falta de educação parisiense, o mau humor, a frieza, a empáfia, tudo isso passa longe de Estocolmo. Ou seja, aqueles que atribuem ao frio a nuvem negra sobre as cabeças francesas estão apenas muito enganados. Os fatos indicam coisa bem diversa. Aqui, transeuntes sorriem quando abordados, comerciantes são solícitos e dão informações, ninguém se compraz em destratar os outros. Para quem vive no meio de gauleses, conviver com os temíveis vikings é um alívio.

Uma palavra sobre a capital: Estocolmo é a cidade mais linda da Europa, pelo menos entre as que conheço. Uma pena que só se possa vê-la em todo seu esplendor a partir de maio, até setembro no máximo. Fora dessa janela, não bastassem a escuridão e o frio, muita coisa nem abre. Mas quando há luz, não existe delícia maior do que bordejar a linha d’água, entre pessoas tranqüilas sobre suas bicicletas, sem multidões, sem turistas berrando, sem excursões de japoneses, americanos e brasileiros.

Posso ofender muitas sensibilidades ao dizer que Estocolmo é mais bela do que Paris, Roma, Florença, Praga. Não é culpa minha. Na comparação, as cidades italianas não dão nem para o começo. Fora os museus e monumentos, são mais sujas do que o aterro de Gramacho. Praga poderia rivalizar, mas perde pelo tamanho e porque o adversário é mesmo muito difícil. Quanto a Paris, a incensada, é mesmo muito bela, mas cansa rápido. De sua arquitetura toda haussmannienne, cinzenta e retilínea, resulta uma cidade monótona, monocromática, monocórdia. Estocolmo é colorida, espalhada, ampla. Sua arquitetura é imaginativa, sabe misturar diferentes épocas e escolas, quase sempre sem ruído. Belíssima cidade, repito.

Mas este é apenas um texto introdutório. Lanço aqui uma seqüência quase desconexa de primeiras impressões. Coisas assim são o que vi na capital gostosa de um país nórdico desde que cheguei, dois dias atrás. Mas há muito a dizer nas próximas crônicas, se a internet parar de me pregar peças.

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Como aprendi sobre a morte

Bobby O Boneco De Neve
Vou ter de deixar para a próxima o tal comentário sobre os plátanos, que venho prometendo desde o início do mês. Como sói acontecer no poço inesgotável de surpresas que é este mundo, veio se interpor a meus projetos botânicos um fenômeno insólito. Já a alma dirigia seus cuidados à sagração da primavera, ao final de mais um inverno tão ameno quanto desagradável; espaços já se abriam nos armários, para receber as carapaças que nos protegem desde outubro; passeios e refeições ao ar livre já estavam no programa. Mas São Pedro tinha outros planos. Mandou baixar bruscamente a temperatura, dos dezesseis para o zero mais quadrado. A tal ponto que, na madrugada de ontem, perigosamente equilibrado entre a saúde e a pneumonia, levantei-me da cama, espiei por uma fresta da cortina e constatei o absurdo: do alto vinha neve.

Em vez de me meter em divagações seriamente preocupadas com as piores questões climáticas de nosso tempo (e talvez essa fosse mesmo a reação mais adequada), corri de volta ao quarto e despertei Nicole. Sabedor de sua frustração por não ter visto um floco sequer de neve desde que chegamos à Europa, não podia deixar passar essa singular chance primaveril. Tadinha, ela acordou com olhos deste tamanho, grogue e incapaz de compreender meu entusiasmo. Isso, até o momento em que se acercou da janela e avistou os automóveis todos brancos. Como no pátio de um hospital. Ela saltitava de contentamento.

Puxei o casaco que tinha mais à mão, um cachecol, um gorro, um par de luvas. Meti-me na carapaça e saí. Como um turista tropical, o que no fundo não deixo de ser, tirei fotos e fiz desenhos na camada de gelo sobre os veículos. Corri até a janela de casa, bati no vidro, Nicole abriu. Finalmente, recolhi neve e mais neve, que resultou num boneco de um palmo e meio de altura, ereto sobre o parapeito. Bobby (não fui eu que o batizei) ganhou olhos de botões, um cachecol cor-de-rosa e terra espargida sobre a cabeça à guisa de cabeleira. Tudo na mais refinada técnica que aprendi quando garoto e não pudera mais aplicar.

Assim termina a parte alegre da narrativa. Bobby teve vida curta. A neve parisiense, à qual fui praticamente apresentado ontem, é tão fraca, que nem cobre de branco as calçadas. Nessas condições, um boneco de neve, como o sol de Gregório de Matos, não dura mais que um dia.

Pior do que aprender da existência efêmera é acompanhar o processo. Chegando em casa, parei diante da janela e me deparei com um corpo branco, ainda em pé, tendo ao lado a cabeça tombada, toda suja, sobre a terra negra de um vaso que em breve deverá receber flores. Do pescoço cortado não escorria sangue, mas filetes de água, como se a essência da vida se esvaísse lentamente do pobre Bobby. Tentei encaixar novamente a cabeça, ela voltou a tombar. Recolhi os olhos, reduzidos novamente a botões sem luz.

Ao anoitecer, restava do corpo de Bobby somente um cotoco amolecido. Pensei em guardá-lo na geladeira, mas venceu a sensação de que seria como meter os restos de um filho no IML. Aquele montículo de neve fazia pensar nos corpos dos imolados pelo fogo, embora tão oposto em cor e temperatura. Uma imagem dolorosa e, de certa forma, repulsiva. Estragou meu humor pelas horas seguintes.

Já deitado, pensei no infeliz destino de Bobby, que tão pouco pôde ver deste mundo antes que um sol fraco o consumisse lentamente. Vieram à memória passagens da infância, vivida numa cidade fria, muito mais do que Paris, coberta de neve por quatro ou cinco meses todo ano, a ponto de ao menos um dia de aula ser cancelado a cada mês do inverno. Lembrei-me principalmente de um homem de neve digno do nome, de cachecol, chapéu de cangaceiro e charuto, olhos, nariz e boca, que passou a vida toda de sentinela no quintal, vendo e cumprimentando as pessoas que passavam. Uma existência mais digna e bem mais longa que a do último boneco: quase dois meses. Mas acabou. Sua agonia foi semelhante à de Bobby, só muito mais demorada. Dia após dia, a massa do corpo ficava menor e perdia a forma, a poça se adensando na base. Cachimbo e nariz tombaram, os olhos furaram os flocos da carne, o chapéu e o cachecol foram logo confiscados.

Lembro-me de uma fotografia, já na primavera, desse homem de neve reduzido a quase nada. Em verdade, a fotografia não era dele: era um intruso, ao fundo, mas foi o que vi. A imagem é chocante. E a experiência de acompanhar a decomposição de um amigo que ajudei a conceber e montar, nem preciso dizer, ficou gravada com um selo de dor.

Foi a primeira vez em que aprendi algo sobre a morte. Com quantos anos? Cinco, no máximo seis. O falecimento de Bobby produziu um déjà-vu tenebroso. Foi como uma sessão de psicanálise. Entendo agora, também, por que os povos do Norte, enfim, do frio em geral, têm a expressão sempre tão triste e fechada. Não é a escuridão do inverno. É a experiência tão precoce da morte, repetida a cada ano no corpo frágil e roliço de um boneco simpático como Bobby.

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barbárie, Brasil, calor, crônica, descoberta, desespero, doença, férias, frança, ironia, passeio, prosa, tempo, verão, viagem

O mal que vem dos Trópicos

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Quase uma confusão terrível. Por pouco, não sou tomado por um risco à saúde pública. Do jeito que a turma anda neurótica por estas bandas, uma quarentena seguida de deportação não estaria inteiramente fora de questão. Durante alguns momentos, estive na berlinda, confundido com uma aberração doentia; lepra, micose, varíola, sei lá o que pensaram que eu tinha. Mas é profundamente desconfortável a sensação que dá quando as pessoas, no máximo de discrição de que são capazes, afastam suas cadeiras de você. O isolamento é doloroso, eu digo. E não passava, claro, de um pequeno mal-entendido.

Melhor começar pelo princípio, manda a prudência. Pois bem. Uma sala de aula ocupada por inteiro, três dezenas de pessoas espremidas em algo como 15 metros quadrados. Lá fora, a temperatura oscila entre frações de grau negativo e uns quebrados positivos. Dentro, a calefação automática exala seu ar pesado e mal-cheiroso, relegado à redundância pelas quase trinta respirações simultâneas. Alguém sugere abrir as janelas, mas os outros recusam. Medo do vento gelado e da chuva fina que às vezes cai.

O professor discorre sobre fenômenos, númens e coisas em si. É bom prestar atenção, para não perder o raciocínio. Difícil, com as alfinetadas do calor debaixo das três ou quatro camadas de roupa; entre a primeira e a pele, o suor se dissemina, desconfortável. Nada pior do que suar no inverno. Tentando não incomodar os demais, liberto-me do paletó opressor. Poucos minutos mais tarde, também parte o colete. É pena, mas tirar a camisa seria passar do limite. O máximo permitido é arregaçar – ou melhor, enrolar – as mangas. Eis o erro.

Área perigosa. Segunda fileira, posição central, bem diante dos olhos do professor. Enquanto transcrevo suas explicações intrincadas, ele lança um olhar involuntário para meu braço. Faz uma pausa, engole em seco, titubeia para voltar ao discurso. Mas é experiente e recupera o fio. À direita, um arrastar de cadeira. À esquerda, outro, um pouco mais violento. Buchichos; o mestre se irrita um pouco. Demoro a entender que a culpa é minha, mesmo quando dá a hora e todos se levantam.

Enquanto visto de volta as peças que arrancara em desespero, aproxima-se meu velho amigo Germain. Com a delicadeza que lhe é particular, tenta sorrir. Ofereço-lhe a mão para um cumprimento, mas ele, embaraçado, faz de conta que tem as suas ocupadas. Um ato desajeitado, que só fez sentido mais tarde. Tento não demonstrar que entendi. Germain, esforçando-se por não se aproximar demais, acompanha meus gestos com os olhos esbugalhados. Confesso-lhe minhas dificuldades com a aula. Ele não ouve; ao contrário, emenda uma questão envergonhada, em seu estilo pouco natural de falar, cheio de volteios literários e eufemismos estilísticos.

– Caro amigo, desculpe perguntar; quando você visitou seu país [ele sempre chama o Brasil de “meu país”], parece que cometeu uma pequena imprudência…

Nem preciso dizer que fiquei surpreso.

– Que imprudência, Germain?

– Estou certo de que existem avisos nas praias, para informar quando estiverem impróprias para o banho… Sua saudade era tão grande assim, a ponto de mergulhar em águas poluídas?

Só pude sorrir. Contei-lhe que não mergulhei em praia nenhuma. Nem própria, nem imprópria. Passei ao largo do fato de que os avisos aos banhistas só vêm pelos jornais e, mesmo assim, sem grande clareza. Expliquei que choveu o tempo inteiro nessas duas semanas, não deu praia, para meu desespero. Aliás, não me lembro que expressão usei para “dar praia”. Deve ter sido algo como “as condições não eram propícias”.

Germain alçou as sobrancelhas. Duvidava de mim. Sua incredulidade foi mais surpreendente do que ofensiva. Jamais ele havia colocado restrições a alguma declaração minha. Parecia absurdo que, de repente, ele resolvesse descrer assim. Percebi um movimento em seus lábios. De bem conhecê-lo, soube, desde o primeiro momento, que ele ruminava uma maneira de abordar o assunto incômodo sem causar ferimentos em minha sensibilidade.

– Desculpe, erro meu; pensei isso por causa da doença que te aflige…

Não há doença alguma que me aflija neste momento. Germain percebeu a interrogação desenhada entre meus olhos e se embaraçou. Gaguejou acintosamente e enrubesceu. Jamais eu o vira nesse estado. Quando, condoído, resolvi partir em seu socorro, ele se adiantou, inspirou profundamente e retomou o prumo. Delicadamente, admitiu a origem de sua idéia.

– Quando você enrolou a manga, pude ver o estado da pele… É terrível, quero que você saiba o quanto sou solidário!

Não foi de imediato que liguei os fatos. Quando o fiz, caí na risada. O professor, ainda na sala, me encarou, assustado, e escorregou para fora num instante. A expressão de Germain era toda enigma. Nas duas semanas em que estive no Brasil, de fato não deu praia; houve um único dia de sol. Nesse dia, eu estava nas montanhas. Sol de montanha, bem se sabe, é terrível. Fiquei vermelho, meus ombros ardiam, o peito do pé doía enormemente.

E como explicar para Germain que eu estava apenas descascando? Nem conheço a palavra francesa para “descascar”, nem, pelo visto, o sol da Côte d’Azur, do país basco e da Bretanha são capazes de fazer um banhista trocar de pele no dia seguinte. Tentei lhe explicar o princípio do descascamento: o sol bate, a gente esqueceu a loção 30, a pele vai escurecendo, às vezes fica vermelha, não passamos hidratante (bom, alguns passam…). Dá uns dias, a pele forma umas bolhas, pronto: descasca. Perfeitamente natural.

As sobrancelhas de meu amigo seguiam arqueadas; em sinal de dúvida, sim, mas sobretudo de asco. Esse papo de pele que descasca é coisa de bárbaros tropicais. As epidermes européias podem ficar encardidas, ásperas ou transparentes, mas, pelos céus!, jamais descascam. Nada disso ele formulou explicitamente, claro, mas pude ler por trás de seus olhos cinzentos. Era algo que ele preferia jamais ter aprendido. A esse ponto, eu já me divertia como uma criança; como uma criança, decidi torturá-lo.

Arregacei a manga novamente e anunciei: “vou te mostrar…” Germain é ágil, não me deu nem sequer o tempo de puxar a primeira pontinha de pele morta. Agradeceu, lembrou-se de algum compromisso e projetou-se porta afora, deixando-me de pé, sozinho na sala, brincando de descascar e rindo até cair no chão. Só consegui me controlar muito tempo depois, quando lembrei do professor: a essa hora, o sinistro filósofo poderia estar ao telefone, denunciando um aluno contaminado para o Ministério da Saúde.

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