Brasil, comunicação, fotografia, furreca, imagens, imprensa, ironia, jornalismo, junho, opinião, Politica, português, prosa, reflexão, reportagem, Rio de Janeiro, sarkozy, São Paulo, Veja

Veja, a indignação e o jornalismo mané

Um amigo me chama a atenção para a capa da penúltima edição da Veja. Um recado aos “senhores feudais de Brasília”, lembrando que todos somos iguais perante a lei. O recado é dado por “nós, pessoas comuns”. E, de fato, nós, as pessoas comuns, estamos representados pelos rostos “anônimos” (por falta de termo melhor) que circundam o círculo onde figura o texto, bem ao centro da tela. Ao alto, o mantra inaudito, certamente criado na redação, em pleno calor do fechamento: “Basta de impunidade!”

Esse meu amigo comenta, aos suspiros, como se um grande peso tivessa saído de seu peito: “Eles lembraram bem. Isso é uma grande verdade!” É fato. Não há como discordar do 5º artigo da Constituição, a não ser que sejamos abertamente fascistas. Tampouco dá para deixar de se comover com os retratos de tantos compatriotas, lado a lado, indignados com essa corrupção sufocante que, do dia para a noite, se abateu sobre os feudos de Brasília. Sorte que os Estados e municípios seguem incólumes; caso contrário, seria o horror, o horror. E quem o diz não sou eu, é Joseph Conrad.

Traduzindo, o primeiro impulso que tive ao ver a imagem dessa capa foi certamente o mesmo da maioria das pessoas que a avistaram na banca: “bela lembrança”, pensei. “Capa muito bem pensada”. Não tenho a menor dúvida de que foi o mesmo que pensou o desenhista da capa e, naturalmente, o editor da revista, enquanto discutiam: “Que tal uma coisa bem impactante”, sugere um; “Sim, uma coisa simples, mas um recado claro e direto”, empolga-se o outro.

Depois, porém, vem o segundo impulso, que costuma, justamente, ser mais confiável e mais sábio do que o primeiro. Passado o impacto inicial da, vamos dizer assim, ousadia estética, vem o interesse de leitor, que não tem tempo a perder, nem dinheiro sobrando, e não pode comprar qualquer frivolidade que se publique. Pois qual é o interesse jornalístico dessa capa da Veja? Não li a matéria; a imagem da capa poderia ser um ótimo incentivo para isso… mas não foi.

Os brasileiros estão indignados com a corrupção? Só faltava não estarem. Minha primeira lembrança do Brasil foi a descoberta de que as cédulas de dinheiro tinham números de quatro e até cinco dígitos. Minha segunda lembrança foi a indignação com a corrupção. Desde então, estivemos indignados, seja com Maluf e Pitta, seja com compra de votos para a reeleição, seja com Garotinhos e Garotinhas, seja com mensalão, com as brigas de ACM e Jáder Barbalho, com Severino Cavalcante… Agora, em junho de 2009, vem a Veja, mui gentilmente, me informar que o brasileiro está indignado com a corrupção e a impunidade.

Do breve tempo em que estudei e trabalhei com jornalismo, guardo algumas poucas lições, mas nem por isso menos valiosas. Uma delas é que a notícia está no que aconteceu, não no que deixou de acontecer: “A polícia ainda não sabe quem matou”, “O país pode vir a ser invadido”, “O filme está em cartaz há algumas semanas”, nada disso é notícia. “O brasileiro está indignado com a corrupção”, então, é menos notícia do que todos os exemplos acima. No entanto, é a capa da revista de maior circulação no Brasil…

A princípio, faz parecer que não aconteceu nada durante a semana. Por exemplo, se um jornal, e isso só deveria acontecer com quotidianos, publica como manchete que o prefeito inaugurou uma escola, pode ter certeza de que o dia anterior foi uma pasmaceira só, provavelmente feriado no mundo inteiro, com todos os ditadores tomando Piña Colada no sol de Riad. Agora passar uma semana inteira sem acontecer nada digno de notícia no Brasil inteiro? Desculpe, mas…

Ano passado, escrevi aqui sobre Sarkozy, presidente da França, atribuindo à figura uma posição destacada numa corrente política bastante contemporânea, que é a da “política mané”. O princípio é muito simples: trata-se de uma forma de fazer política que leva em consideração o desinteresse (ou a incapacidade) do mané contemporâneo por debater as grandes questões de seu mundo; mais ainda, a política mané leva em consideração que o mané contemporâneo também não crê que seus representantes sejam capazes de debater e tomar decisões em relação aos problemas complexos do nosso tempo (como aliás de qualquer tempo). Para bajular e seduzir o mané, o político precisa se rebaixar a seu nível, pelo menos em aparência. Mas como em política a aparência conta muito (basta pensar na aparência de todo grande líder), ele acaba se reduzindo mesmo.

Tudo isso para argumentar que não é só no campo das disputas de poder que a cultura do mané se impôs nas últimas décadas. A capa da Veja, nesse sentido, é um exemplo ótimo do que poderíamos chamar de “jornalismo mané”. A imagem e a frase impactante falam imediatamente ao instinto de indignação e de simpatia de cada um. Na superfície, é a matéria comunicacional perfeita: transmite sua mensagem imediatamente.

Acontece que a função de uma revista não é transmitir mensagens. Quem transmite mensagens é a publicidade, não o jornalismo. O jornalismo, pelo menos em tese, transmite informação (uma definição dessa palavra não cabe aqui, mas ainda hei de escrever sobre isso). E qual é a informação transmitida pela capa da Veja? Que o brasileiro está indignado com a corrupção. Só resta esperar uma matéria informando que Pelé foi o rei do futebol.

Digo que isso é um tipo de jornalismo mané porque não se comunica com a necessidade humana de saber o que está acontecendo, ou de obter recursos para tomar suas decisões. A única comunicação que a capa da revista faz é com nosso instinto primário, brutal e um tanto quanto tolo de ver confirmados nossos sentimentos abstratos, difusos, indefinidos. É a descoberta de um filão: ganhar dinheiro quando as pessoas dizem: “é isso mesmo!” ao ver uma imagem numa revista. Com isso, elas nem precisam recorrer à outra necessidade, aquela de se informar e ser capaz de tomar decisões abalizadas. Afinal, “se a imprensa, com seus sábios (tão sábios), concorda com o que eu já vinha sentido, quer dizer, pensando, então eu tinha razão desde o princípio”. Eis o raciocínio inconsciente do mané, de que o jornalismo de mesmo nome se aproveita, como a política mané e, por que não, a publicidade mané.

Vejamos (sem trocadilho) o caso de jornais populare(sco)s, como esses que se vendem a 50 centavos por aí, filhotes dos célebres e lamentáveis tablóides britânicos. O que vemos nas capas: às vezes, serviços fundamentais, como aumentos de impostos ou formas de resgatar o FGTS, no que eles fazem muito bem. Mas o mais comum é que eles tematizem: o futebol, depois de um jogo importante; a violência, quando dá pra estampar alguma foto com sangue; celebridades, quando elas aparecem mortas ou nuas; e se não sobrar nenhuma das alternativas acima, mulheres gostosonas. Manchete: “Fogão arrasador” (referindo-se ao Botafogo, único time-eletrodoméstico do Brasil); “Michael já era”; “Ela gosta de rebolar gostoso”; ou outra frase cretina qualquer. Seria isso jornalismo mané?

Não. Isso é sensacionalismo apenas. Nem chega a ser jornalismo, a não ser nos casos dos serviços já mencionados. O jornalismo mané acontece quando alguém resolve tomar esse mesmo sensasionalismo, essas mesmas imagens impressionantes, esse mesmo texto banal, sucinto e sem informações, e chamá-lo de jornalismo. A Veja, afinal de contas, ainda se considera um semanário importante, e não apenas por causa da circulação (caso contrário, o veículo mais importante do Brasil seria o Extra, do Rio de Janeiro). Ao bajular a estupidez do leitor, em vez de exercitar sua inteligência, ela compromete seu próprio futuro, ouso prever.

Muito se culpa a internet pela crise da imprensa escrita. Verdade, mas só metade da verdade. Tão importantes quanto os fatos são as reações aos fatos, a não ser aqueles aos quais é inteiramente impossível reagir, como um tiro na testa. Vendo o público esclarecido fugir para o mundo online, levando consigo a circulação e as receitas publicitárias, o que decidiram os meios impressos, pressionados por todos os lados? Ora, decidiram aumentar o máximo possível a base de leitores, incorporando tanto quanto desse os manés com preguiça para ouvir argumentos, sobretudo aqueles que porventura se oponham a seus instintos. O problema é que esse tipo de mané fica contente de ver a capa da revista na banca, não precisa comprá-la… Ademais, todo tipo de imagem e texto que bajula sua estupidez é tão encontrável na internet como qualquer outra coisa. Então para quê gastar dinheiro com revista?

Minha ingenuidade não vai tão longe, a ponto de achar que os editores da Veja não saibam disso tudo que acabei de dizer. Mas se alguém me perguntar se acho que eles têm outros motivos (leia-se interesses) para fazer uma capa tão superficial e pouco jornalista, terei de responder que não faço ideia, o que é a mais pura verdade; afinal, não disponho de dados sobre isso. Seja como for, prefiro deixar a cada um que julgue por si próprio, mas que julgue com raciocínio, não com frases de efeito, porque disso, meu amigo, já estou cheio até aqui.

Padrão
crônica, flores, folhas, fotografia, frança, imagens, ironia, março, paris, parque, passeio, praça, primavera, tempo

Nos jardins, as cerejeiras

Três cerejeiras
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…

Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.

Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.

Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.

Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.

Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.

Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.

Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.

Padrão
barbárie, Brasil, calor, crônica, descoberta, desespero, doença, férias, frança, ironia, passeio, prosa, tempo, verão, viagem

O mal que vem dos Trópicos

%C3%AA+que+sol%C3%A3o+insuport%C3%A1vel
Quase uma confusão terrível. Por pouco, não sou tomado por um risco à saúde pública. Do jeito que a turma anda neurótica por estas bandas, uma quarentena seguida de deportação não estaria inteiramente fora de questão. Durante alguns momentos, estive na berlinda, confundido com uma aberração doentia; lepra, micose, varíola, sei lá o que pensaram que eu tinha. Mas é profundamente desconfortável a sensação que dá quando as pessoas, no máximo de discrição de que são capazes, afastam suas cadeiras de você. O isolamento é doloroso, eu digo. E não passava, claro, de um pequeno mal-entendido.

Melhor começar pelo princípio, manda a prudência. Pois bem. Uma sala de aula ocupada por inteiro, três dezenas de pessoas espremidas em algo como 15 metros quadrados. Lá fora, a temperatura oscila entre frações de grau negativo e uns quebrados positivos. Dentro, a calefação automática exala seu ar pesado e mal-cheiroso, relegado à redundância pelas quase trinta respirações simultâneas. Alguém sugere abrir as janelas, mas os outros recusam. Medo do vento gelado e da chuva fina que às vezes cai.

O professor discorre sobre fenômenos, númens e coisas em si. É bom prestar atenção, para não perder o raciocínio. Difícil, com as alfinetadas do calor debaixo das três ou quatro camadas de roupa; entre a primeira e a pele, o suor se dissemina, desconfortável. Nada pior do que suar no inverno. Tentando não incomodar os demais, liberto-me do paletó opressor. Poucos minutos mais tarde, também parte o colete. É pena, mas tirar a camisa seria passar do limite. O máximo permitido é arregaçar – ou melhor, enrolar – as mangas. Eis o erro.

Área perigosa. Segunda fileira, posição central, bem diante dos olhos do professor. Enquanto transcrevo suas explicações intrincadas, ele lança um olhar involuntário para meu braço. Faz uma pausa, engole em seco, titubeia para voltar ao discurso. Mas é experiente e recupera o fio. À direita, um arrastar de cadeira. À esquerda, outro, um pouco mais violento. Buchichos; o mestre se irrita um pouco. Demoro a entender que a culpa é minha, mesmo quando dá a hora e todos se levantam.

Enquanto visto de volta as peças que arrancara em desespero, aproxima-se meu velho amigo Germain. Com a delicadeza que lhe é particular, tenta sorrir. Ofereço-lhe a mão para um cumprimento, mas ele, embaraçado, faz de conta que tem as suas ocupadas. Um ato desajeitado, que só fez sentido mais tarde. Tento não demonstrar que entendi. Germain, esforçando-se por não se aproximar demais, acompanha meus gestos com os olhos esbugalhados. Confesso-lhe minhas dificuldades com a aula. Ele não ouve; ao contrário, emenda uma questão envergonhada, em seu estilo pouco natural de falar, cheio de volteios literários e eufemismos estilísticos.

– Caro amigo, desculpe perguntar; quando você visitou seu país [ele sempre chama o Brasil de “meu país”], parece que cometeu uma pequena imprudência…

Nem preciso dizer que fiquei surpreso.

– Que imprudência, Germain?

– Estou certo de que existem avisos nas praias, para informar quando estiverem impróprias para o banho… Sua saudade era tão grande assim, a ponto de mergulhar em águas poluídas?

Só pude sorrir. Contei-lhe que não mergulhei em praia nenhuma. Nem própria, nem imprópria. Passei ao largo do fato de que os avisos aos banhistas só vêm pelos jornais e, mesmo assim, sem grande clareza. Expliquei que choveu o tempo inteiro nessas duas semanas, não deu praia, para meu desespero. Aliás, não me lembro que expressão usei para “dar praia”. Deve ter sido algo como “as condições não eram propícias”.

Germain alçou as sobrancelhas. Duvidava de mim. Sua incredulidade foi mais surpreendente do que ofensiva. Jamais ele havia colocado restrições a alguma declaração minha. Parecia absurdo que, de repente, ele resolvesse descrer assim. Percebi um movimento em seus lábios. De bem conhecê-lo, soube, desde o primeiro momento, que ele ruminava uma maneira de abordar o assunto incômodo sem causar ferimentos em minha sensibilidade.

– Desculpe, erro meu; pensei isso por causa da doença que te aflige…

Não há doença alguma que me aflija neste momento. Germain percebeu a interrogação desenhada entre meus olhos e se embaraçou. Gaguejou acintosamente e enrubesceu. Jamais eu o vira nesse estado. Quando, condoído, resolvi partir em seu socorro, ele se adiantou, inspirou profundamente e retomou o prumo. Delicadamente, admitiu a origem de sua idéia.

– Quando você enrolou a manga, pude ver o estado da pele… É terrível, quero que você saiba o quanto sou solidário!

Não foi de imediato que liguei os fatos. Quando o fiz, caí na risada. O professor, ainda na sala, me encarou, assustado, e escorregou para fora num instante. A expressão de Germain era toda enigma. Nas duas semanas em que estive no Brasil, de fato não deu praia; houve um único dia de sol. Nesse dia, eu estava nas montanhas. Sol de montanha, bem se sabe, é terrível. Fiquei vermelho, meus ombros ardiam, o peito do pé doía enormemente.

E como explicar para Germain que eu estava apenas descascando? Nem conheço a palavra francesa para “descascar”, nem, pelo visto, o sol da Côte d’Azur, do país basco e da Bretanha são capazes de fazer um banhista trocar de pele no dia seguinte. Tentei lhe explicar o princípio do descascamento: o sol bate, a gente esqueceu a loção 30, a pele vai escurecendo, às vezes fica vermelha, não passamos hidratante (bom, alguns passam…). Dá uns dias, a pele forma umas bolhas, pronto: descasca. Perfeitamente natural.

As sobrancelhas de meu amigo seguiam arqueadas; em sinal de dúvida, sim, mas sobretudo de asco. Esse papo de pele que descasca é coisa de bárbaros tropicais. As epidermes européias podem ficar encardidas, ásperas ou transparentes, mas, pelos céus!, jamais descascam. Nada disso ele formulou explicitamente, claro, mas pude ler por trás de seus olhos cinzentos. Era algo que ele preferia jamais ter aprendido. A esse ponto, eu já me divertia como uma criança; como uma criança, decidi torturá-lo.

Arregacei a manga novamente e anunciei: “vou te mostrar…” Germain é ágil, não me deu nem sequer o tempo de puxar a primeira pontinha de pele morta. Agradeceu, lembrou-se de algum compromisso e projetou-se porta afora, deixando-me de pé, sozinho na sala, brincando de descascar e rindo até cair no chão. Só consegui me controlar muito tempo depois, quando lembrei do professor: a essa hora, o sinistro filósofo poderia estar ao telefone, denunciando um aluno contaminado para o Ministério da Saúde.

Padrão