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Os bastidores da Apollo 11

Um diálogo curto, para dar um pitaco na efeméride do momento: homem na lua.

É que Neil Armstrong sempre me pareceu meio reticente ao pronunciar sua famosa frase. Como se ele não estivesse muito contente com o que dizia. É evidente que o astronauta não pensou o texto na hora, nem foi ele que o preparou. Mas até que ponto ele concordava com o famoso “it’s one small step for a man, one giant leap for mankind”? Talvez lhe parecesse cafona.

Imagino Neil na cafeteria, de manhã bem cedinho, tomando seu chafé com bacon e ovos, discutindo detalhes da missão com Buzz Aldrin e the other guy. Eles estão se fazendo de relaxados, rindo nervosos, contando piadas ruins. Entra um homem jovem, engravatado e engomado, carregando uma pasta. Ele dá bom-dia a todos, todos respondem em tom arrastado: “Bom dia, Al”.

Ninguém gosta desse Al. É um almofadinha.

Al coloca a pasta sobre a mesa e tira uns papéis. Pergunta aos três: quem vai ser o primeiro? Buzz e the other guy apontam para Neil, que ergue o dedo, fingindo que seu orgulho é fingido. Al, timidamente, se dirige a ele e lhe passa uma folha.

– Seu discurso está pronto.

Neil faz cara de amuado, mas toma o papel e um gole de chafé, cada um com uma mão, e lê o que está escrito.

– Você não quer que eu diga isso, quer?

– Nossos melhores redatores passaram semanas preparando o texto.

Incrédulo, Neil retoma a leitura:

– “Um pequeno passo para um homem…” que ridículo! Vai estar na cara que é ensaiado.

– Não faz mal.

– Eu vou me sentir um idiota.

– Não faz mal.

Naturalmente, o futuro primeiro homem na lua se exalta. Está afogueado e os perdigotos que solta atingem Aldrin e the other guy.

– Como é que é?
– É pela América. Os vermelhos vão ver só. Você é nosso herói, man!

-Pela América, my ass!

O herói nacional levanta-se. Al dá um passo atrás. Os outros dois astronautas ficam preocupados.

-É uma frase para a história, Neil.

-É, Neil, fica frio! (é a tradução que daria a dublagem da Globo.)

– Pra história, é? Então é pra falar com voz empostada? Um pe-que-no pas-so pa-ra um ho-mem… é isso?

– Vai ficar horrível.

– Vai ficar horrível de qualquer maneira. Deveria ser meu dia de glória! Pisar na lua! Buzz, não quer ser o primeiro?

– Tô fora! Você acha que eu vou fazer o discurso cafona?

– Al, por favor…

– Houston já decidiu. Agora, se me dão licença…

Al faz uma curta reverência e se retira. De costas, os astronautas não vêem seu ar triunfal, como o de um garotinho que acaba de fazer uma travessura. Mal sabe Neil, aquele presunçoso, quem foi que inventou a tal frase. Atrás dele, ainda dá para ouvir os impropérios do primeiro homem na lua:

– Goddamn!

Buzz Aldrin intervém, preocupado:

– Olha as suas coronárias, Neil…

The other guy está alarmado. Corre para o telefone:

– Houston, we have a problem

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vida

Oito coisas e eu defunto

Cachoeira da Fumaça, Chapada Diamantina, Bahia
Enquanto estive fora, recebi um convite para um meme vindo lá do Ágora com Dazibao no Meio, do carioca Ricardo Cabral (que assina Ricardo C., talvez para esconder o parentesco com o governador. Será?). Ricardo pensa mal de mim. Acha que não vou aceitar o convite porque sou muito cabeça. Mas ele diz isso porque não me conhece. Se conhecesse, saberia que a parte do corpo que mais uso, aliás abuso mesmo, é o fígado.

Mas o blogueiro Cabral tem lá sua razão. Já fingi não ter visto uma série de memes (falando nisso, ô palavrinha detestável! Na sua aplicação bloguística, trucida o sentido que Dawkins quis lhe dar ao cunhá-la…). Mas se o fiz, foi porque aqueles eram memes “ruins”: “cinco discos que você adora”, “dez pessoas que deveriam ser empaladas” e outras listinhas que não interessam a ninguém. O meme do Cabral é um meme “bom”: apesar de girar em torno de um número, coisa inevitável em nossa época de planilhas, esse é um convite que dá o que pensar. Em outras palavras, é um convite ao diálogo entre blogueiros, entre leitores, entre blogueiro e leitor.

Chega de nariz-de-cera, vamos ao meme: seu tema são as oito coisas que tenho de fazer antes de morrer. Mas, por favor, blogueiro que quiser dar seguimento ao meme: não é uma lista banal com oito itens: “conhecer o Nepal”, “provar LSD, “ouvir Jimmy Page ao vivo”. A idéia é falar sobre o assunto. Não é trocar dados, é trocar humanidade.

Acontece que esse papo de morte é um pouco perturbador. Penso na questão e me vêm à mente várias coisas que são feitas depois dela: velório, enterro, cremação, obituário, missa de sétimo dia. Mas isso, são outras pessoas que têm de fazer pelo defunto. Mesmo que ele deixe instruções por escrito, não terá forças de obrigar os seus a segui-las. Ou seja, no meu caso, se quiserem me velar, vão velar, com a desculpa de se despedir de mim. Honestamente, tendo a crer que se quisessem se despedir, viriam abraçar meu cadáver. Me deixar deitado entre flores e moscas não é despedida, é tortura. Uma tortura tradicional, contra uma vítima indefesa e que jamais vai abrir o bico, mas ainda assim, tortura. Não estou dizendo que todas as tradições sejam más, mas essa aí me incomoda.

Sei que estou fugindo do assunto, mas não faz mal: fugir do assunto é uma delícia, gosto muito, Syd Field não manda neste blog. Agora, retorno ao mundo do meme. Oito coisas a fazer antes de morrer. Mas, puxa, é tanta coisa que quero fazer, e são todas enquanto estiver vivo! Mas só posso escolher oito, isto aqui não é uma autobiografia por antecipação. Então resolvi colocar um pouco de pimenta no assunto: vou partir de um cenário bastante assustador, mas útil. Imagino um oncologista insensível que me anuncie, na lata, meus últimos seis meses de vida. Mas é uma doença rara: meio ano vivendo normalmente e, de uma hora para outra, cair duro. Não sei como eu receberia essa notícia na vida real. Mas, nesta minha suposição, eu seria frio como Friedman: seis meses para fazer oito coisas, é isso e fim de papo. E finalmente me sinto à vontade para atacar o tema do meme.

Por mais cético que eu seja, principalmente em assuntos de vida após a morte, não consigo jogar uma banana definitiva para a posteridade. Engraçado, tenho pouca esperança no hoje, mas, bem, aos do futuro, temos de antecipar algum crédito. E creio que, para evitar a terrível desgraça de formar uma próxima geração tão medíocre quanto a atual, é preciso bagunçar as cabeças desde já; as dos bebezinhos e até as nossas. Sendo assim, sabedor da minha morte próxima, eu redigiria umas poucas páginas de uma obra cujo propósito seria resultar inacabada. E começaria assim: “Sei que as n (digamos… 10) teses que vou apresentar são horrendamente polêmicas e parecem atentar contra o bom senso e qualquer tipo de lógica. Mas estou certo de que a argumentação que as sustenta nos capítulos seguintes será suficientemente rigorosa e bem construída, e há de demonstrar com clareza a verdade do que estará exposto.” Em seguida, mais alguns parágrafos recheados de auto-elogio, mas muito bem disfarçado, para seduzir os leitores mais refratários sem passar recibo de afetação. Finalmente, as n teses (quantas eram? Dez?), enumeradas uma embaixo da outra, no melhor estilo analítico anglo-saxão. Por último, um “vamos então aos argumentos”. E acaba aí, porque o autor morreu sem poder concluir sua obra-prima, o coitado. Com isso, na minha fantasia, por gerações a fio as pessoas se ocupariam concordando e discordando, construindo provas e refutações, e teriam de sair da letargia intelectual. É presunçoso, claro, mas o cenário é meu, faço com ele o que quiser.

A segunda idéia parece coisa de gente boazinha, mas não é. Sem mais rodeios: eu devolveria meu apartamento e distribuiria minhas posses. Não é questão de ser franciscano, nada disso. “Liquidez é liberdade”. Eis aí uma divisa interessante… Quem tem posses está preso a elas. Você não é você: você é uma soma de você com sua casa, seus móveis, seus livros e discos, seu carro e suas contas a pagar. Mas quem precisa disso quando sabe que vai morrer? Com a ampulheta escorrendo, não quero passar o tempo na fila do banco.

Muito bem, liberdade conquistada, restaria fazer o óbvio: viajar bastante e torrar a tal da liquidez passeando por aí. Vamos dizer, pela América Latina, já que o mundo inteiro é demais para seis meses. Pode parecer um princípio um pouco guevaresco, talvez mesmo bolivariano, mas aí está uma leitura errada do meu projeto: quem vai morrer não tem mais tempo de revolucionar nada. Na verdade, é uma espécie de Libertadores pessoal; falando nisso, um certo número de estádios não está fora da lista de afazeres. Dar um olá para os vizinhos, pense comigo, não seria má idéia. Nada mal, terminar a vida entre os menonitas do Paraguai, os incas do Peru, folha de Coca e tudo, um daiquiri e um puro legítimo ao som de Compay numa praia do Caribe. Enfim, um pouco de prazer e cultura não fazem mal a ninguém.

Mas nem só de hedonismo vivem os moribundos, é claro. E os deslocamentos cansam, mais cedo ou mais tarde. Já mencionei a questão da posteridade, não? Pois bem: enquanto estamos vivos, deixamos sempre, talvez por preguiça, ou então por crueldade, ou ainda orgulho, uma infinidade de arestas por aparar. Muitas delas fáceis, rusgas desnecessárias, que não precisariam ter durado mais do que alguns instantes. Mas nós, em nossa estupidez perfeitamente natural, deixamos que cresçam até nos sufocar. Sou tão orgulhoso quanto qualquer um e não estou particularmente interessado em deixar um rastro de paz e alegria como legado, mas suponho que a proximidade da morte seja algo que amolece o coração. Para amainar os ódios e rancores, inventarei versões para todos os fatos dolorosos do passado, de forma a deixar em boa situação o antagonista. Mesmo que eu esteja seguro de ter razão, morto, ela não me fará nenhum bem. O que custa aliviar a consciência alheia? Puxando pela memória, só consigo pensar em duas exceções para este terceiro ponto. Gente que, por mim, pode carregar a culpa para a tumba (a deles, não a minha).

Quebrei a cabeça feito um louco e só agora cheguei à metade dos itens que quer o meme do Cabral. Oito é um número alto… puxa. Mas é preciso louvar o criador da série por não ter escolhido um daqueles números de sempre: três… cinco… sete… dez… A gente se acostuma a enquadrar o pensamento nas categorias mais banais e desnecessárias. Uma atitude simples, como essa de escapar aos algarismos cabalísticos, já é heróica. Um verdadeiro exemplo para o resto da nossa existência. O lado um pouco desconfortável é ter de inventar mais quatro coisas para fazer nos últimos meses da vida.

E, como acho que já soltei demais as rédeas da bondade (fui franciscano, fui agregador…), me sinto no direito de abrir espaço para a minha maldade. Quer dizer, maldade bem entre aspas. Trata-se muito mais de subverter algumas aberrações que se cristalizaram no inconsciente coletivo de todo mundo e, na seqüência, foram atacar a consciência individual de cada um, a ponto de muita gente desenvolver justificativas de muita complexidade para crenças que, cá entre nós, são umas enormes tolices. A essa altura, com só mais dois meses de vida a viver, sem precisar fazer planos para meu próprio futuro, sei que vou estar livre para me dedicar à atividade cruel e deliciosa de derrubar, ou pelo menos tentar derrubar, um certo número de ícones que me sobem à cabeça. Isso que venho de dizer pode parecer enigmático, e a idéia é essa mesmo. Estamos tratando de um futuro hipotético, em que não me desviaria de nada mais importante o trabalho de apontar charlatães, escarnecer de conceitos, sabotar monumentos e assim por diante. Não pense, por favor, que sem a perspectiva da morte eu seja um conformista, preguiçoso conservador. Simplesmente sou obrigado a expor meus argumentos com parcimônia e prudência, tentando trazer as opiniões e espíritos para o meu lado sem assustá-los e pô-los em fuga, conforme ensinou o velho Sun Tzu. Se hoje preciso ser sedicioso o quanto der, à beira da morte poderei escancarar meus propósitos mais disfarçados.

Muito bem, eis cinco coisas. A sexta será um escorregão na fraqueza. Nosso mundo nos oferece todo tipo de opções imediatas que, se somos preocupados com o longo prazo, evitamos, recusamos, tentamos ao máximo escapar. Longo prazo? Não para alguém que já prepara as malas para o encontro com a morte. Conclusão: limites para quê? Nas poucas semanas em que meu sangue ainda circularia, teria de aceitar ser transformado em laboratório. E se acaso, certa vez, eu passasse dos limites, problema nenhum: o pior que poderia me acontecer seria a morte. Mas, convenhamos, isso não representaria nada em termos de trade-off. Ainda algum cretino poderia me acusar de eutanásia, mas que então me denunciasse e mandasse atirar no xadrez meu cadáver. Irônico, não? Pergunte a algum cronista sóbrio como quer terminar a vida e ele responderá: doidão!

Muito bem, das oito coisas que me pediu o sobrinho do governador, faltam só duas. Para me livrar da tarefa de maneira cretina, mas eficaz, eu poderia dizer, não inteiramente desprovido de razão, que a última seria morrer, e a penúltima, preparar a morte. Se eu fizesse isso, quem chegou tão longe na leitura me lincharia com certeza. Mas o que vou fazer, afinal, não chega a ser muito diferente. Minha sétima atitude pré-“bater as botas”, a ser tomada poucos dias antes da hora fatídica, seria voltar ao médico, fazer novos exames e me certificar de que é isso mesmo, ele tinha razão, mais alguns dias e acabou para mim. Imagine o pandemônio que seria descobrir uma cura milagrosa à beira do fim, depois de me desfazer dos meus bens, prometer argumentos que não posso expor, dissipar os últimos fundos numa viagem interminável, oferecer em presente a meus desafetos uma consciência tranqüila imerecida, fazer novos inimigos lá onde só havia quietude e estragar o que restava do meu organismo condenado?

Nessa hora, talvez eu preferisse ouvir do doutor a confirmação da morte próxima. Ainda assim, muito me atrai a idéia de recomeçar a vida em bases inteiramente diferentes. Para além das implicações filosóficas que representaria uma experiência radical desse jeito, seria, na prática, um sopro de vida tão forte que só mesmo a morte sabe dar. Mas não posso aventurar essa hipótese neste texto: na falta de seu elemento unificador, ou seja, a própria morte, tudo que venho escrevendo perderia inteiramente o sentido. Conclusão: vou ao médico, apreensivo, mas ele balança a cabeça e diz, se fazendo de desolado: “É… isso mesmo. Seu quadro não deixa dúvidas. Dois dias e já era”. Deixo o consultório num misto de apreensão e determinação. Sei que, num dia como esse, eu suaria frio e o mundo de minha visão estaria borrado, como se eu fosse desfalecer a qualquer instante. Eu tentaria me agarrar à consciência e ao sangue frio, embora, nas veias, o sangue de verdade estivesse a um grau da ebulição. Eu tentaria me concentrar nos dois dias, não como o que me separa do aniquilamento, o nada definitivo, mas como o prazo que me concedeu a enfermidade para cumprir minha última tarefa, a já famigerada “oitava coisa”…

Dois dias é tempo suficiente para chegar à Cachoeira da Fumaça, Bahia (salve, meu pai!). Mas antes de terminar esta saga dos meus últimos dias, que já nem agüento mais escrever, e imagino que você também não suporte mais ler, preciso alertar que, como todo mundo, sou contra o suicídio. Conforme a nosso código moral, considero-o crime mais hediondo do que a covardia e a tirania. Tirar a própria vida não é justificado nem quando as convicções de nosso inconsciente, ou a mera lógica, parecem justificá-lo. Antes definhar, passar as últimas horas na dependência da morfina e ser reduzido à aparência de uma múmia anoréxica a cometer o supremo absurdo de abandonar este mundo num ato de livre arbítrio.

Por outro lado, também me parece que a morte é o momento mais importante de uma vida. É uma espécie de fecit, poioumenós, de parla, sei lá eu. Sem a morte, toda vida é uma história incompleta. Não soa injusto que passemos toda a vida buscando a dignidade, o estilo, e na hora da morte aceitemos qualquer coisa, mesmo uma bobagem como ter um piripaque no meio da rua? Acho irônico. Os bravos guerreiros do passado, afinal, não eram assim tão irracionais, ao preferir perecer no campo de batalha, jovens, mil vezes a fenecer enfraquecidos num leito de morte mal-cheiroso. É uma estranha dicotomia. De um lado, o pecaminoso; de outro, o indigno.

Eis onde entra a cachoeira da fumaça: na tentativa de conciliar o que duas partes tão diferentes de mim consideram mais apropriado. É mais do que simplesmente encontrar a morte no meio de uma beleza fantástica como a da Chapada Diamantina. É incorporar a beleza à morte de uma maneira que mesmo em vida não seria possível. Quando estive no alto desse despenhadeiro, anos atrás, veio sem ser chamado um pensamento geométrico. Tanto espaço, tanto ar, entre as escarpas em que se agarram arbustos cegos! Uma multidão de pontos de vista ocupados só com partículas de água invisíveis, tão insidiosamente densas que desencorajam até o vôo turístico dos pássaros. Um volume de ar sem olhos. Um crime.

Não digo que seja sem sentido. É que não consigo me livrar de uma certa tendência hegeliana a achar que o espírito precisa superar as mistificações da pura natureza, virgem, violenta, perigosa. Hegel poderia até estar certo, não fosse o fato de que o espírito pode muito pouco quando o corpo é tomado de vertigem. Seguindo as instruções dos guias, o espírito só pode se aproximar do abismo para espiar a maravilha se for se arrastando, o ventre contra a pedra fria e áspera. Uma humilhação para o espírito, talvez? Creio que não chegue a tanto. Ainda é o espírito que se dispõe a pôr-se na horizontal para um momento de concentração que aos irracionais não é possível. De pé, nem o mais inabalável dos brutos conseguiria evitar a tonteira e a queda. Então o espírito saudável, o que faz? Não tem pudores de meter-se de joelhos em busca da beleza que cobiça.

Entre as oito coisas a fazer antes de morrer, faço questão de incluir a própria morte. Conhecendo o destino inevitável, adquirimos um controle tão magnífico sobre a própria vida! Quantas vezes não sabotamos nossas volições mais brilhantes por medo da cortina que nos esconde o futuro e, no futuro, a idéia vaga que nutrimos da morte, única face assegurada da existência! Será que o melhor exercício do bem viver não seria convencer-se de que a morte está próxima, muito próxima? Deixo a questão aos autores de auto-ajuda. Quanto a mim, imagino algumas despedidas, dois ou três goles de cachaça para dar coragem, uma longa inspiração profunda de ar puro, impregnado de pólen e, quando o guia não estivesse olhando e não pudesse me impedir, o salto, tão distante quanto desse, naquele vazio cheio de atmosfera e paisagem. Seria uma queda louca, alucinante, infelizmente curta. Eu veria coisas que ninguém viu, de uma maneira que ninguém imaginou.

E aí, terminaria tudo. O ideal seria ter a crise que de qualquer jeito me mataria, o mais próximo possível do fim do percurso. Que frustrante, não, tombar logo depois do impulso? Minha queda pela Chapada seria como a de um saco de beterrabas. Mas o mais provável seria nem sofrer o ataque: morrer quando o corpo desse com o chão, pesado e moído. Aí sim, podemos dizer que houve um suicídio, uma eutanásia, um ato ilícito, um horror. Mas se forem buscar meus restos, teriam dificuldade em determinar o momento do sinistro, então seriam obrigados a me sepultar direitinho, de preferência por ali mesmo. A morte pela queda, dizem, é instantânea. A vítima não sente nada. Os ossos são feitos em pedaços de repente e acabou. É um pensamento terrível, mas nem tanto para o morto ele mesmo. Afinal, quando minha carne estiver espalhada, molenga, sobre as rochas cobertas de limo aos pés da cachoeira, que me importarão meus ossos? Não haverá mais ninguém ali para se importar, eis uma subjetividade a ser riscada da agenda.

Fim deste texto desordenado, cheio de digressões, quase sem unidade, às vezes enfadonho, às vezes simplesmente tolo. A rigor, eu deveria ter vergonha de submeter o distinto internauta a uma provação dessas. Mas estou tranqüilo, primeiro porque sei que o internauta não se submete a nada e eu não tenho o poder de ofendê-lo; depois, porque me diverti pensando todas essas tolices sobre minha própria morte. Pois é, isso me basta. Agora, para obedecer às prescrições do Cabral, sobrinho do governador, deixo aqui minhas indicações:

Anny
Diego
Marcão
Naty
Nelson
Olívia
Rafael
Sandro

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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arte, Brasil, direita, esquerda, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Informação e ânimos exaltados

Todos+os+homens+do+presidente+capa
Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outros, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas crônicas da Folha, enviadas sempre com atraso, terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox News é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja autobiografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem “mentiras”. Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade.

E, pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: “Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!” Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de “denúncia”. Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso “fontes ligadas ao palácio afirmam que…”, os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama “jornalismo”. Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

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Panela de pressão apitando em desespero

Guerre
A Europa carrega nas costas o peso dos crimes da História; senão todos, pelo menos quase. Isto pode ser verificado em todas as catedrais e castelos, bulevares e cafés. A beleza das árvores no outono pode emocionar, mas sussurra constantemente no ouvido a memória do colonialismo, do fascismo e da Inquisição. O Louvre, além da Vênus e da Gioconda, ainda tem nas paredes, mesmo fenecidas, as manchas de sangue da noite de São Bartolomeu. O Duomo de Florença é no fundo um compêndio da ganância dos Medici, assim como a Praça de São Pedro reflete a história para lá de profana do papado. E o museu do Prado, para não esquecer a Península Ibérica, acima de todas as suas telas de Velásquez e El Greco tem penduradas as vítimas hereges e judaicas, como os espectros que rondam o Tiergarten de Berlim.

Mesmo os crimes cometidos na África, na América e na Ásia são reflexo da crueldade dos europeus, esses seres pálidos de terras frias e escuras, que venderam, geração após geração, suas almas em troca de ouro e glória. Os crimes dos americanos no México, no Caribe, na Coréia, no Vietnã, no Iraque, também ecoam, ainda hoje, a sede de sangue dos conquistadores europeus. É a ação do chamado Ocidente (um conceito obscuro capaz de incluir todos os habitantes de países ricos que não têm pele escura ou olho puxado).

Toda essa sanha destrutiva custou caro ao continente. Eles chegaram à beira do abismo mais de uma vez, a última delas há pouco mais de meio século. Perderam grande parte de sua riqueza, suas colônias, sua predominância internacional. Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Áustria, Portugal. Todos eles, países que chegaram a se considerar donos de um belo naco do mundo – ou de todo ele. Centros de cultura, comércio e poder. Todos submetidos ao jugo de sua ex-colônia norte-americana e, por algum tempo, a seu antigo patinho feio, a Rússia.

* * *

O que restou do banho de sangue foi um continente fascinante, pelo que tem de cruel e pelo que tem de admirável. Ao contrário do que disse o Otto Lara Resende (ou será que foi o Nelson Rodrigues, se fazendo passar pelo Otto? Isso acontecia…), não é uma burrice aparelhada de museus, mas o museu vivo das burrices e dos brilhantismos que nem sempre se distinguem claramente. É o continente que inventou o humanismo com as ferramentas do Terror e da retórica esnobe. Foi a primeira parte do planeta a romper aristocraticamente com a aristocracia, a disseminar tiranicamente os valores democráticos, a abrir a sociedade às mulheres, sem abrir mão do patriarcalismo. Neste rabicho da Eurásia surgiu a idéia de que todo indivíduo tem direito à educação: os ricos e os pobres, os brancos e os imigrantes; educados, os trabalhadores puderam render melhor nos momentos da espoliação. A Europa investiu mais do que ninguém em transporte de massa, que leva seus subjugados para subúrbios desumanos como os nossos – bom, talvez não como os nossos.

A amplitude das contradições chega a ser fantástica. Se for para comparar com o Brasil, eu diria que nossas contradições são mais comportadas, reproduzindo na ponta dominada uma imagem de tamanha incompatibilidade. Note-se a civilidade, e quão brutal essa civilidade pode ser: quando há um problema, e Deus sabe que há muitos, eles sentam, discutem e resolvem como der. Nem que isso envolva ameaças de aniquilação e fantasmas de guerras passadas. A cultura européia, com toda sua arrogância e xenofobia, e talvez até mesmo por causa dela, é mais aberta do que a nossa. Como pode? Apesar de uma infinidade de atitudes de segregação e desrespeito que se vêem quotidianamente nas ruas de Paris, ainda assim os franceses se dedicam a iniciativas de aproximação com outras culturas, religiões, civilizações, bem mais que os brasileiros.

No Brasil, quando se discute qualquer assunto, a comparação é inevitável: “no Brasil é X, na Europa (ou nos EUA), é Y”. Já o europeu discute assim: “Aqui X, no Egito é Y, em Madagascar, Z, no Japão W, no México…”. O mais notável é que na verdade eles estudam geografia mais ou menos como nós, mas não acham que seja perda de tempo. É um exercício pelo qual reafirmam para si próprios, e para os periféricos deste mundo, sua superioridade moral (já que a econômica e a bélica, não dá mais). Assim, absorvem aquilo que é útil para eles e elevam à categoria de descrição fiel do universo. É autoritário e, ao mesmo tempo, aberto.

Mesmo assim, parece que o momento atual está fazendo transbordar isso tudo. Devo dizer que estou assustado, sem querer soar sensacionalista. Há um ódio latente que é difícil não notar, e que tem justificado um desejo de retornar a narrativas bem mais fechadas (e tão autoritárias quanto). Aqui há olhares de desprezo, acolá de agressividade. De um lado há sobrenomes tradicionais da Provença ou de Champagne, do outro filhos do Maghreb e da Costa do Marfim. Houve por algum tempo uma ilusão de integração e assimilação que exala uma certa beleza. Por sinal, chegou a ser verdade alguns casos. Por exemplo, durante um curso da faculdade, estudantes de origem islâmica debatem com o professor no tom mais aberto e intelectualmente honesto possível.

Fora da sala de aula, isso não acontece dessa maneira. Os grupos islâmicos estão se tornando mais herméticos e muito se fala em ressentimento. Há famílias que recusam a entrada de médicos e bombeiros em seus enclaves, sentindo-os como se fossem imposição de um império colonial. Não admitem estudantes não-islâmicos em suas escolas, e chegam a expulsar famílias que colocam seus filhos em escolas públicas, e portanto laicas. Afastam-se de todo contato com o país em torno. A descrição é desagradável, mas o mais desagradável é perceber que por muito tempo não acontecia assim… e agora está acontecendo.

* * *

A explicação pode estar no lado inverso, e é por isso que ele me assusta mais. É mais ou menos normal que populações imigrantes procurem buscar segurança no próprio seio (claro, com um certo bom senso), principalmente quando são grupos excluídos socialmente e economicamente desfavorecidos. O que observo, porém, é um recrudescimento do ódio nos europeus, esses mesmos que há algumas gerações desenvolveram os conceitos de tolerância, humanismo, igualdade e assim por diante, pincelados acima. As comunidades muçulmanas se fecham sobre si próprias e os próprios europeus se fecham também, não só para os muçulmanos, mas para os próprios conceitos que formam o, digamos assim, lado mais admirável dessas contradições européias. Andam ressuscitando ideais de pureza e violência que se acreditavam sepultados e superados. A presença de um “outro”, na verdade um semi-outro, já que sua história é intimamente vinculada à história dos europeus nos últimos séculos, justifica a a firmação de uma identidade que também é mutilada e grosseira. Nada de bom pode sair daí.

Vê-se a tensão em cada canto, como uma panela de pressão que apita em desespero. Muçulmanas com véus tão apertados quanto possam, coloridos, de frente para moçoilas de mini-saia e maquiagem, que as encaram com ar de desdém. Rapazes de barba e pele escura olhando como quem quer briga para colegas pálidos que se barbeiam provavelmente duas vezes por dia, e não retornam o olhar de maneira menos agressiva. As posturas estão cada vez mais demarcadas, distantes, herméticas. Os cursos universitários de cultura islâmica têm pouquíssimos interessados, a grande maioria de estudantes muçulmanos, quase nenhum não-islâmicom querendo se aprofundar em outras formas de pensar e enxergar o mundo. Quando o provável próximo presidente chama uma parcela da população de escória, não é à toa. Não há diálogo, senão marginalmente, entre pessoas “de boa vontade” mas um pouco sonhadoras.

Não há como deixar de ver um certo risco de uma guerra civil, quiçá religiosa, na Europa. Nada, claro, como o que se passa no Brasil. Não é questão de ser assaltado na frente de um policial que finge nada ver. É algo um pouco mais, digamos, sério. Seria a concretização do “choque de civilizações” de Samuel Huntington? Talvez, mas o que se choca são, na verdade, vizinhos que têm o mesmo passaporte, votam nos mesmos candidatos, usam a mesma linha de metrô.

Os valores que salvaram o continente, infelizmente, não são tão fortes quanto chegaram a se afirmar (e não poderiam se firmar sem afirmar-se como tais, talvez até mesmo sabendo que era blefe). Não será de estranhar se esses antigos monumentos forem testemunhas de mais um banho de sangue. Talvez o que falte a esses valores seja nutrir-se da própria dialética e entender o quanto há de contraditório neles. Afinal, se havia o ideal de uma integração, que integração é essa que necessariamente apaga quem vem a se integrar? Se de fato a imigração enriquece a cultura que a recebe, qual é o nome que se dá a um enriquecimento que relega a subúrbios esquecidos a fonte dessa mesma riqueza?

Há uma falha trágica, pelo visto, na própria integração, e que vem completar as falhas dramáticas do integrismo dos brancos e do comunitarismo dos árabes. Muito de criação poderia passar no meio desses buracos, desses vórtices supersaturados de energia. Mas caminhando pela cidade e por alguns de seus subúrbios, conversando com jovens e velhos, franceses “de souche” e filhos de magrebinos, o termo que flutua por entre as frases, quando o interlocutor faz a pausa para retomar a respiração, é ressentimento, como o apito da panela de pressão.

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