De súbito, salta a meus olhos a razão dos sustos. Refiro-me àqueles que parecem se abater sobre cada vivente de tempos em tempos, regulares como as crises sistêmicas do mercado financeiro, mas bem mais freqüentes. Esses traumas, maiores ou menores, são o mecanismo que a natureza criou para nos trazer de volta à vida, quando estamos, sem saber, há muito levando os dias como autênticos defuntos.
Explico. É um engano conceber nossa existência como um arco no tempo, embora seja nossa interpretação mais corrente: uma parábola que salta do nascimento, na maturidade atinge seu cume suave e daí vai descaindo pela velhice, até reencontrar o eixo das abscissas quando a morte nos alcança. Uma curva assim tão suave não pode representar a vida, essa que é tudo, menos suave, e tão menos viva quanto mais tranqüila e regular.
Para quem a observa com atenção, diria mesmo com carinho, a vida desvenda seu doce segredo. Ela se revela inteira, como um fractal surpreendente. Dentro do tempo que nos é reservado nesta existência, que por sinal é muito pouco, temos o dom de nascer muitas vezes, em várias direções, com intervalos que podem ser incrivelmente curtos. No fundo, em vez de uma só, levamos levamos várias vidas, um fragmento dela a cada vez. E isso faz de nós caleidoscópios pulsantes, com todas as cores e movimentos que um caleidoscópio deve ter.
Que isso implique um sem-número de pequenas mortes para cada um de nós não deveria ser causa de aflição. Quem chegou até aqui já provou sua resistência. Não sucumbiu aos muitos finais que já sofreu, nem ao medo de cada reviravolta, mesmo se chegou a pensar que não mais poderia. A última morte, aquela que atinge também a carne, arrisca perder-se no esquecimento, depois de tantos traumas e tantas primaveras.
É assim que passam os anos, é assim que se forma aquele arco que, por desatenção, tomamos pela vida de verdade. Vivemos por um tempo, depois morremos sem saber. E podemos ficar anos, muitos anos assim. Pobres zumbis, cadáveres ambulantes mas asseados, confortáveis no esquife acolchoado de certezas em que nos enterra o quotidiano.
Quanto mais rápido vier o susto, melhor e menos traumático. Quanto mais nos acomodamos na segurança, tão artificial, que se apresentava, ardilosa, como objetivo maior de qualquer vida, mais teremos de sofrer para aceitar que há muito já não vivemos e precisamos nascer de novo, com o impulso de um bom susto. Mudanças desse gênero são quase sempre muito difíceis e deixam sequelas na versão renascida do defunto.
Como ele pode vir, esse tal susto, todos sabem. Quem se flagrar em dúvida deve desconfiar. Se jamais tiver passado por um, é provavelmente porque ainda está precisando. Ainda vive como um morto e não descobriu. Quando soar o alarme, soará em alguma forma inusitada, imprevisível, sorrateira. Eventos físicos e óbvios, talvez, como a experiência de quase ser atropelado, ou se cortar profundamente com uma faca de cozinha ao fatiar tomates. Mas podem sobrevir ainda os superlativos do padecer moral: separações, traições, desilusões.
Venha como vier, o susto é um novo parto. Acordamos para um mundo que tínhamos esquecido, isto é, acordamos para a vida. Descobrimos o quanto éramos mortos, quão idênticos eram nossos dias, como o são os dias da matéria inerte que fatalmente nos tornaremos. Somos atingidos, reagimos. Sentimos o sangue que corria em nossos vasos sem que déssemos por ele. É para isso que tomamos sustos, é por isso que desabam nossos universos.
Porque sofremos, podemos fruir. Eis um decassílabo que resume a existência.
você é muito astuto, mais que devia ser pro seu próprio bem,sim, a vida é mil vidas, vivi tantas, belas e infames,nasci abençoado com a coragem de leão, a força de um elefante, como touro derrubei muitos torreadores e não quero descanso, que venga la muerte
abraço
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Depois do susto e do desespero é bom demais passar pelos rituais que levam ao renascimento.
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Há muito eu não passava por um susto. Do tipo que realmente nos faz reacordar de uma morte disfarçada em vida.
Este texto, além de profundamente reflexivo, veio de encontro a um momento vivido por mim. Com sua permissão, gostaria de reproduzí-lo em meu blog. É preciso divulgar esta indução ao susto. 🙂
Parabéns, cara.
Beijão.
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@Iosif, acho difícil acreditar que alguém que, com a sua idade, começa a editar um blog esteja realmente pensando na proximidade da morte. Eu diria que sua cabeça está é muito mais próxima da vida.
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@Dai, é muito bom saber que alguém se identificou com nosso texto. Aliás, você deve conhecer essa sensação melhor do que eu. É claro que pode reproduzi-lo!
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E fez-se o silêncio. Aquele que precede um pensamento maior e mais cuidadoso. Aquele que acontece depois de uma verdade, de um susto! Teu texto é ótimo, Diego. Mesmo. E a imagem escolhida também.
Quando fala em “pequenas mortes”… Já leu o texto “A Pequena Morte”, do Galeano?
“Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por encontrar-nos e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.”
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@Ben oui, la petite mort, voilà! Conheço o conceito, não o texto. Não sabia que o Galeano escrevia sobre coisas que não estão diretamente relacionadas à América Latina… Vou procurar!
(Pessoalmente, prefiro o conceito “beautiful agony” ao “petite mort”… não é mais poético?)
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