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A opinião: bunda ou apêndice?

Parte 1: um perfeito nariz-de-cera (internautas sem tempo podem pular para a parte 2).

Quem visita meu blog há mais tempo talvez se choque com a falta de compostura no título desta postagem. Há quem pense que eu prefiro evitar o risco de ofender a sensibilidade das senhoras respeitáveis (um grupo que, neste era mesquinha em que vivemos, inclui cada vez mais senhores, rapazotes e moçoilas, gente que de respeitável só tem a fleugma; máscara, se preferirem). Isso até poderia ser verdade, porque tento dar sempre preferência à confrontação de argumentos, em detrimento da estratégia mais comum do choque puro e simples. Até admiro os chocantes, mas seu modus operandi, no mais das vezes, leva o leitor-alvo (em todos os sentidos) a ir navegar por outras plagas, sem se incomodar com essa chatice que são os argumentos cortantes, estruturados ou não.

Mas acontece que as (e os) tais senhoras respeitáveis não têm o menor pudor de me chocar. A mim, que tanto me preocupo com elas! Nem ligam de ofender minha inteligência, nem de faltar com o respeito para com todos que, sem se travestirem de “senhoras”, também são dignos de respeito. Fico chocado, e profundamente, de ver a desfaçatez com que essa gente urbana, estudada e, vamos lá, respeitável ergue a voz para emitir juízos obscurantistas como se fossem a conclusão de um raciocínio rigoroso, para logo em seguida dispensar, com um sopapo – desrespeitoso – qualquer idéia contrária, por mais fundamentada que seja. Fico ainda mais chocado com o fato de que toda essa gente respeitável move mundos e fundos para obrigar o resto do universo a viver de acordo com seus princípios, a ponto de colocar em risco qualquer outro princípio, mesmo alguns mais universais e mais indispensáveis. Resumindo, o que mais me choca é a passividade com que vamos caindo no mesmo mundo cruel e cego em que passamos tantos séculos, de que foi tão penoso começar a sair, de que ainda nem tínhamos conseguido escapar por completo.

Por isso, o título e mote deste texto: a opinião é como a bunda ou como o apêndice?

Parte 2: o choque das analogias anatômicas

O dito tradicional estabelece, com um sarcasmo delicioso, a primeira assertiva: “opinião é que nem bunda, cada um tem a sua”. Correta ou não, a frase não é neutra, como nenhuma é; ela tem conseqüências perniciosas. Legitima o fato de que, após uma discussão acalorada, cada um segue seu caminho com a opinião intocada, muitas vezes disposto a cometer as maiores atrocidades em nome das platitudes que pensa e não vai deixar de pensar, porque, afinal de contas, é sua opinião, assim como sua bunda é sua bunda e assunto encerrado.

A opinião, se concebida como bunda, por parecer inofensiva tem carta branca para justificar atitudes nada indiferentes, nada inocentes. Mas, ora, a própria bunda é de fato inofensiva! Uma, ou antes, duas camadas de gordura recobrindo um par de músculos, para protegê-los quando o indivíduo se senta. Não há nada de perigoso numa bunda, ao contrário das opiniões (a não ser, naturalmente, para as pulsões que muita gente “respeitável” abafa no fundo mais obscuro do inconsciente). Colocando de lado essa parcela sinistra da população, está claro que a analogia deve ser rejeitada. Por isso, venho propor, em seu lugar, uma outra analogia, que tampouco é perfeita, reconheço, mas já melhora bastante a compreensão do fenômeno. Ficaria assim: “opinião é que nem o apêndice. Cada um tem o seu, até que seja extirpado”. Apesar da imperfeição no paralelismo dos gêneros, dou garantia de que as vantagens são óbvias. Vamos ao exame.

Extirpar uma bunda é uma intervenção traumática, violentíssima. Salvo no caso de um tumor de que nunca ouvi falar, a gluteotomia (perdoe o neologismo, não resisto a um trocadilho) é injustificável. Imagino que a vida sem bunda seja insuportável, quase impossível; a bunda é mais importante do que parece. E o apêndice? Ora, basta uma dor mais forte para que nos desfaçamos dele em dois minutos. Se o médico diz: “é apendicite”, a resposta é imediata: “opere!”. O apêndice não faz a menor falta, não serve para nada. Cirurgia nele.

O problema é que a opinião, ao contrário do apêndice, tem serventia outra, além de inflamar. Eu deveria ter usado a “amígdala”: ela também parecia ser só um enfeite incômodo, mas depois que milhões de adolescentes se deixaram desgoelar e se tornaram mais suscetíveis a laringites e faringites, ela se revelou um pouco menos inútil. Agora é tarde, sigo com o apêndice, até porque ainda é possível que se descubra uma função para ele; nesse caso, quem o arrancou antes de confirmar que a dor era uma apendicite “daquelas”… vai ficar amargurado.

Ver-se sem opinião é muito parecido. Tem uma infinidade de situações em que, em conseqüência de um episódio em que opiniões estejam envolvidas, a cabeça do cidadão se põe a doer como a virilha de alguém com apendicite. Nessas horas, o que não falta é gente se apresentando como cirurgião, pronta para operar a cabeça do coitado. Mas não são neurocirurgiões, por favor, olha a capacidade de abstração! São médicos da mente e médicos da alma… porém, não havendo CRM para isso, resulta que esse é um campo onde os charlatães abundam. (N.B.: malgrado a semelhança fonética, a última palavra não implica um retorno à primeira analogia da opinião.)

Como operam esses enganadores opiniáticos? Muito simples. Para demonstrar, voltemos à nossa breve suposição de dois parágrafos acima. E se descobrissem que o apêndice cumpre um papel fundamental, por exemplo, na digestão, e que, no longo prazo, sua falta é garantia de um câncer intestinal? O que fariam os médicos (os verdadeiros)? Provavelmente, algo parecido com o que se faz com quem extirpou as amígdalas, que precisa tomar antibióticos mais pesados ao menor sinal de incômodo na garganta. Assim, a cada refeição mais, digamos, caprichada, o sem-apêndice precisaria engolir algum remédio, uma pílula desenvolvida e fabricada com o fim específico de substituir a função do adendo perdido. Ou seja, uma pílula ERSATZ (sempre quis encaixar a palavra “ersatz” num texto deste blog. Finalmente consegui!).

No caso das opiniões, é a mesma coisa. Livros e líderes oferecem prateleiras e prateleiras abarrotadas de opiniões ERSATZ, ou seja, substitutas de opiniões verdadeiras. E, como é de praxe nas modernas sociedades industriais, o que não falta são critérios em potencial para a escolha. A apresentação, por exemplo: embalagem, rótulo, capa, cor, logotipo. Ou então, o estilo de vida que aquele produto (quero dizer, aquela opinião) simboliza: arrojado, dinâmico, respeitável (ah, não!, essa palavra de novo!)… Ou ainda o preço: idéias baratinhas são ótimas para conquistar mercados mais vastos. Finalmente, não nos esqueçamos do maior teste a que uma mercadoria pode resistir: a prova do tempo. “Nossa idéia está no mercado há mais de cem, há mais de mil anos. Bilhões de pessoas já aderiram! O que você está esperando?”

Como para as pílulas, como para toda mercadoria, os modelos são inúmeros. Vejamos, por exemplo, os que se encaixam como uma luva para os mais esquentadinhos. São opiniões radicais, intolerantes, sustentadas, no mais das vezes, por bravatas e afirmações peremptórias, tão autoritárias que intimidam o insensato que cogitar questioná-las. Vendem como água.

Também existem as opiniões projetadas com vistas às boas almas. Essas são igualmente intolerantes, mas se baseiam em princípios transcendentais, eternos, imutáveis, cuja justificativa está além, muito além da pobre finitude humana, de sua triste razão, tola e limitada. Para essas opiniões, é assim porque não poderia ser de outra forma, mesmo que possa; e se puder, que a possibilidade seja um escândalo, um desacato, um deus-nos-acuda. A lógica que rege essas opiniões ersatz é das mais banais: se seu pressuposto é a intrínseca bondade do opinador, logo (ergo, dirão os pedantes), necessariamente o pressuposto de toda opinião contrária, ou apenas diferente, é o mal.

Nada, porém, faz mais sucesso entre pacientes dos doutores opiniáticos do que “a opinião para quem quer justificar o que já vem fazendo”, apesar de ser a mais dispendiosa. Disparado. Alguém que teve extirpada sua capacidade de produzir opiniões por conta própria precisa, naturalmente, de antibióticos para evitar infecções hospitalares. Precisa de remédios que ajudem na cicatrização. Precisará, naturalmente, de uma fisioterapiazinha, que consistirá na leitura de periódicos e opúsculos escolhidos a dedo, quais sejam, os que carreguem nos elogios ao estilo de vida do convalescente. Por fim, precisará recuperar a área operada, maquiá-la, reproduzir a aparência normal. Pois bem, essa opinião ersatz é a mais completa de todas. Ao final da aplicação, o paciente terá uma postura impassível, um ar de superioridade, uma segurança inabalável, típicos de quem está acima das controvérsias porque já constatou, bem antes de todo mundo, qual é a grande verdade sobre a vida. Os argumentos em contrário são rejeitados com um alçar dos ombros. Os pobres mortais que ainda não entenderam como tudo é tão óbvio, ah, esses só merecerão um suspiro condescendente. Cá entre nós, é preciso meter a mão no bolso, mas essa opinião ersatz vale o investimento!

Depois de tanto palavrório, acredito ter provado que a opinião, como um todo, se parece muito mais com o apêndice do que com a bunda, embora a bunda, normalmente, seja muito mais bela do que o apêndice. Na verdade, entender que a opinião é como a bunda decorre de uma observação muito empírica da realidade, preguiçosa demais para lhe buscar os princípios. De fato, olhando em volta, parece mesmo que todas as opiniões são bundas num doce balanço a caminho do mar. Mas isso é só aparência: o que acontece é que todas essas opiniões são ersatz. As verdadeiras opiniões, aquelas que têm alicerces e podem ser substituídas por outras mais sólidas, são coisa rara.

Todos os seres humanos têm capacidade para desenvolvê-las, mas a quase totalidade de nosso gênero prefere chamar o cirurgião e arranjar logo uma ersatz, muito mais prática. A supressão da opinião é uma moda, uma febre, muito maior e muito mais duradoura do que a do implante de silicone nos seios, para dar um exemplo idiota. De tal maneira que as opiniões se tornam, de fato, como as bundas. E têm em comum com elas, de fato, a cadeira, poltrona ou sofá em que passam a maior parte de seu tempo. Daí, entendemos agora, a analogia consagrada.

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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