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Amazon 451

Mais uma vez, literatura e poder. Talvez a mais antiga história de amor e ódio. Poetas e imperadores, ditadores e romancistas, jornalistas e magnatas, desde sempre, e reciprocamente, se acusaram, bajularam, subornaram, degolaram, degredaram. Stalin e Luiz Napoleão preferiam ter os gens de lettres do seu lado, isto é, alguns degraus abaixo. Se não fosse possível, Guiana ou Sibéria neles. Savonarola, que não tinha tempo a perder, queimou livros e com eles seus autores, se estivessem por perto. Adolf , síntese das maldades concebíveis, também recorria às fogueiras para o papel, mas quem empunhava a pena ia para Dachau. O monge malvado de Umberto Eco envenenava os leitores incautos, mas isso num ambiente um tanto restrito e, cabe lembrar, ficcional. Médici e Geisel asfixiavam as editoras e exilavam os autores, o que dava resultados medíocres, porque os pentelhos insistiam em continuar escrevendo, mesmo na Europa. Os exemplos, bem se vê, são intermináveis.

Mas eles têm uma coisa em comum: dava um trabalhão suprimir os livros indesejados… Todo cinéfilo que se preze sabe a temperatura em que o papel entra em combustão espontânea: Fahrenheit 451. Na distopia futurista imaginada por Ray Bradbury e filmada por Truffaut, o governo autoritário e hedonista que tomaria de assalto os EUA fazia um esforço sobre-humano para encontrar volumes escondidos e reduzi-los a cinzas. Brigadas de bombeiros, em carros que deviam parecer futuristas à beça, mas hoje têm um ar terrivelmente arcaico, cruzavam as cidades atrás de infratores. Tudo em nome da saúde mental da população, é claro.

Mas era uma tarefa ingrata. Como encontrar e suprimir todos os livros do país? Não é tão difícil esconder um volume. Tampouco é trabalhoso fazer um punhados de cópias e distribuí-las por aí. Mesmo assim,  perseguiam-se os insurretos. Porém, eis a mensagem de esperança tanto do livro quanto do filme: amantes da literatura sempre existirão, nem que precisem aprender obras inteiras de cor para resgatá-las no retorno à democracia. É uma ideia e tanto, que enche de coragem quem se opõe a tiranias (a princípio, todo mundo que não se beneficia de alguma). Acima de tudo, a moral da história reproduz uma crença não de todo falsa, em que pese uma infinidade de escritos da Antiguidade terem sido perdidos: nunca se poderá apagar toda a literatura, a poesia, a história, a filosofia, a ciência. É um patrimônio rico e volumoso demais.

Agora pulemos para 2009. Como todo mundo, não pude deixar de sorrir amarelo. A Amazon, fabulosa livraria virtual, que por sinal frequento bastante, e proprietária do Kindle, a bugiganga sensação do momento, não se entendeu com os herdeiros de George Orwell (ou com seus editores, sei lá eu). Livreiros e representantes não chegaram a um acordo quanto aos valores que cada um embolsaria. Em outras palavras, nada de Winston Smith na bugiganga da Amazon. Mas os textos já estavam sendo vendidos e, claro, comprados no mundo inteiro por fãs da boa literatura e das boas distopias. Aliás, como acontece todo ano, e isso é talvez o mais irônico da situação, professores já tinham exigido dos alunos a leitura de 1984, para despertar neles o amor à liberdade de expressão.

Pois o erro foi, de fato, da Amazon. Vendeu o que não era pra vender e isso não podia continuar assim, que os advogados já salivavam à porta. Que fez ela então? Ora, nada mais simples: à distância, apagou os livros de todos os Kindles que os tinham baixado. E lá se foram os romances sobre manipulação do passado, controle de consciência e tudo mais. Não avisaram, não pediram licença, mas pelo menos devolveram o dinheiro. Menos mal. E a piada natural, que todo mundo já fez, é: Big Brother não quer, Big Brother não deixa. Nada de ler 1984 no meu produto: ele vai sumir como se nunca tivesse existido. Quem diria, Stalin vendendo livros pela internet…

Só ficou faltando a gargalhada triunfal dos detratores da rede. Noves fora, a previsão de Orwell foi mais acertada do que a de Bradbury. Livrar-se de livros inconvenientes não exige corporações de bombeiros, nem fogo, nem polícia secreta, nada. Basta um acordo de bastidores e pimba, desapareceu o problema. Sabe aqueles livros ou discos que são o orgulho de uma meia dúzia de colecionadores apaixonados? Viraram coisa do passado. O poder não precisa mais correr de banca em banca recolhendo jornais. Basta apagá-los e é como se não existissem. Ou melhor, não existirão mesmo. Não existirão mais.

Pode parecer estranha a comparação entre histórias de governos totalitários e o caso de uma empresa que, por maior e mais importante que seja, está longe de ter o alcance de um aparelho estatal. Bom, pode até ser. Mas enfim, concorrência monopolística à parte, deveria causar um certo desconforto saber que uma corporação pode, para aplicar uma decisão judicial, rasgar e deitar fora, de uma hora para outra, centenas de páginas eletrônicas em milhões de telas, de bilhões (desculpe o exagero) de leitores, ao redor do globo. Ou será que estou sendo muito dramático?

Anúncio oficial, leia com atenção: podemos ficar tranquilos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. É assim que devemos pensar. Sim, a Amazon apagou Orwell do Kindle. É verdade. Mas nada de comparar a ação da empresa com os livros distópicos do romancista. Não faz sentido. Não se pode pensar de outra forma. Eis o argumento. Acredite nele. Orwell falava de governos totalitários. A Amazon é uma corporação monopolista, nada mais. Diferença monumental. Eis a verdade. Podemos ficar tranquilos.

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O sol e o século

Primeiro dia do ano com sol e temperatura acima de zero, já na última semana de fevereiro. Então ela aproveitou para levar as cartas todas ao correio, depois comprar queijo, vinho, carne e pão. Apesar da luz ressuscitada e do clima agradável, o clima ainda era fresco: cinco ou seis graus. Caso para um bom casaco, mas não pesado demais. Ela escolheu um escarlate, de lã, um de seus preferidos desde o dia em que Henri Salvador, do palco, atirou uma flor e ela foi cair em suas mãos. Passou a ser o casaco da alegria.

Para quebrar a tonalidade alegre demais do vermelho, pôs uma boina cor de creme, cuja sobriedade, somada aos óculos de aro dourado, deveriam emprestar à sua figura um equilíbrio elegante. Desde pequena, sua mãe lhe transmitira a certeza de que não há valores para a mulher como a elegância e o equilíbrio. A mãe já passou há muito, mas ela ainda segue a lição à risca.

A rua era a mesma de todos os anos, desde que comprara o apartamento em que vivia, com muito esforço e trabalho, dela e do segundo marido. Os mesmos prédios de pedra, haussmanianos, opacos e solenes. A mesma fileira de árvores sem folhas, a mesma linha de trem depois da cerca. Mas os tantos meses sem luz, como acontecia a cada ano, quase a levaram a esquecer que cara tinha o bairro quando banhado de sol. Na esquina, a claridade conferia a cada braço das ruas um tom próprio, inteiramente diferente dos demais.

É o que faz o sol, sempre que lança pinceladas sobre uma esquina. Mas ela não reparava nisso há muitos anos, desde muito pequena, quando quase foi atropelada por um Citroën Traction Avant. Salva por um desconhecido de sapato envernizado e bigode esquisito (sua mãe dizia que era um famoso artista espanhol), a única lembrança que ela guardava do episódio era a luz do sol, que embelezava um lado da rua e deixava o outro, aquele de onde vinha o automóvel, esfumaçado e umbroso.

De lá para cá, tanta coisa! Uma adolescência dura, em que os pais evitavam o quanto podiam deixá-la sair. O medo dos boches, os invasores que falavam pela garganta. E o dia em que não conseguiu chegar em casa, voltando da escola, porque as ruas estavam apinhadas de gente, como nunca ela tinha presenciado. Era algo que ela nem imaginava, acostumada que estava aos bulevares desertos senão por veículos camuflados. E então, o desconhecido de boina negra e jaqueta surrada que apareceu de lugar nenhum, um rifle às costas, tomou-a pelas faces e lhe tascou um beijo. Foi seu primeiro beijo. E o rapaz exclamava: “Eles foram embora! Os americanos estão chegando!”

Depois da Liberação, a escassez de comida e os tempos de normalista. E ela rompeu relações com o pai, envergonhada de ele não ter aderido à Resistência. Aceitara passivamente os soldados invasores atravessando a rua debaixo da janela. Sem esboço de reação, senão pela expressão de desgosto e asco. Continuara trabalhando, gerando renda para o inimigo, enquanto o resto do mundo lutava e morria para libertá-los. Como ela o repreendeu naqueles anos de juventude inflamada! Ele jamais deu uma respondeu. Só a mesma seqüência de suspiros. Enfim, levou muitos anos até que ela pudesse compreender a escolha de um homem que precisava engolir todas as humilhações para alimentar a família, tanto quanto em tempos de paz. Ela só o perdoou numa tarde chuvosa de janeiro, de joelhos diante de sua tumba no Père Lachaise.

O primeiro emprego, para contribuir em casa, foi num liceu suburbano. Aulas de francês, matemática e geografia para uma garotada pouco interessada nos estudos. Com o tempo, ela acabou se acostumando a pegar o trem todas as manhãs na Gare Saint-Lazare e sacudir sobre os trilhos, como se montada num cavalo mal adestrado, por mais de uma hora, enquanto as construções escasseavam. A cada vez que um aluno baixava a cabeça e dormia durante a aula, ela se lembrava de como desejara estudar medicina e de como os pais a demoveram da idéia.

Casou-se pela primeira vez por impulso: um rapaz para quem seu pai torcia o nariz, garoto sem eira nem beira, sempre do contra. Ela não era nada do contra, a não ser, é claro, quanto às atitudes do pai durante a guerra. Pois o primeiro marido era filho de um mártir da resistência, cujo nome estava inscrito na fachada de um edifício do Quartier Latin, marcando o ponto em que ele foi abatido a tiros pelos alemães em agosto de 44.

A união por rebeldia não demorou a se revelar um erro. Em menos de dois anos, ela já nutria um desejo, obviamente secreto, de divórcio. Mas não queria dar o braço a torcer ao pai. Não queria se ver sozinha, mesmo que valesse mais a pena. E a essa altura já tinha a filha, linda e meiga, que não merecia a dor e a vergonha de uma separação. “Pela menina”, ela dizia para si mesma, à noite, enquanto tentava pegar no sono, “é preciso suportar”.

O sol não mudava seu jeito delicado de banhar as esquinas, mas o mundo, entre um raio de luz e o seguinte, se transformava como esquizofrênico. E ela nunca teve certeza, ao longo dos anos, se tanta mudança era algo a aplaudir ou lamentar. Foi com esses sentimentos misturados e palavras molengas, evasivas, dúbias, que ela lançou sua condenação à irmã caçula quando, batendo as portas e lançando maldições a toda a geração anterior, abandonou a casa dos pais e desapareceu. Rebeldia muito mais grave do que um casamento intempestivo. E muito mais segura, autônoma, poderosa. A primogênita, em sua altivez de mãe e trabalhadora, invejou, muito sem querer, a atitude. E a definia como “capricho de agitação juvenil” quando conversava com os pais.

E a irmã foi reaparecer dois anos mais tarde, numa fotografia de jornal. Atirava pedras de trás de uma barricada no boulevard Saint Michel contra a parede humana da polícia de choque. A menina estava mudada. Usava os cabelos longos e desgrenhados, berrava frases políticas, impedia o funcionamento da universidade, distribuía beijos indiscriminadamente entre os companheiros de rebelião. Um assombro. A família ficou chocada. Como tinha se transformado aquela garota, que até ontem brincava de boneca! Mas a primogênita, em silêncio, não conseguia evitar de achá-la linda.

Sua filhinha já freqüentava a universidade quando o casamento se dissolveu. E não foi ela que partiu, mas ele, deixando atrás de si um sentimento amargo de abandono, em vez do alívio que ela esperava. Martelava sua cabeça a convicção de que aquilo provava que nem mesmo um homem sem classe e sem educação poderia querê-la para companheira por toda a vida. E ela se viu triste, tendo de cuidar da casa para ninguém, já que a filha estudava numa universidade do sul.

Com a separação, um bom número de homens se apresentaram como pretendentes. Para sua grande surpresa, ela que se sentia velha e sem graça. Mas, em respeito aos sentimentos da filha, declinou com gentileza todas as proposições. Como ela conhecia mal o fruto de seu próprio ventre! Foi a menina que, observando a melancolia da mãe, arranjou uma maneira de colocá-la diante do pai viúvo de um colega. O homem grisalho, de terno xadrez e fala tranqüila, mas segura, era editor em Saint Germain, e se tornaria, em menos de um ano, seu segundo esposo.

Era como se a vida recomeçasse. Tanta novidade, que passou a primavera e o verão, mas ela não se deu um segundo para observar o traçado dos raios de sol. Um ano depois do novo matrimônio, a maior e melhor das surpresas: ela ainda era fértil. Mais uma criança se juntaria à família. Alegria misturada a apreensão, claro, para alguém que já passava dos quarenta e sentia a velhice mais próxima do que a mocidade.

Mas o tempo para pensar no assunto não existia. Era necessário encontrar um apartamento maior, para caberem a nova criança e a biblioteca do novo marido. Economizaram, venderam bens, contraíram empréstimos, conseguiram pagar o três quartos no primeiro andar da rua Cardinet, acima dos correios, que ocupariam pelas décadas seguintes. Foi onde cresceu o menino, cuja maior diversão, em pequeno, era acompanhar a passagem dos trens pela janela. Era onde se faziam os almoços de domingo para a filha, o genro e os netos, garotos barulhentos e pouco mais novos do que o próprio tio. E onde ela sentiu, enfim, que, de um jeito ou de outro, tudo se encaixava e fazia sentido.

Foram os melhores vinte anos de sua vida, muito bem vividos. Sobretudo depois da aposentadoria. Tempo empregado em fruir da família, não em acompanhar os movimentos do sol ou reclamar do radicalismo da agitação política, tão mudada desde os tempos de sua irmã nas barricadas. Ela lamentava as bombas e os seqüestros, mas não pensava neles quando desligava a televisão. Só temeu pela vida do filho – um frio na espinha indescritível, um enjôo injustificado – quando explodiram a estação de Saint Michel. Mas o alívio foi imediato quando ele telefonou, algumas horas mais tarde, para dizer que estava bem, a salvo na casa de um amigo.

Enviuvou na virada do século, mas a morte do marido foi tão tranqüila e paulatina que a tristeza logo se transformou em cálculo de quanto tempo levaria para se reencontrarem. Ela mesma já não era nenhuma garotinha. Nas primeiras semanas, foi difícil encontrar modos de ocupar o tempo solitário, mas, aos poucos, ela foi se inscrevendo em cursos de cerâmica, pintura, história, filosofia. Aprendeu tanta coisa, que parecia ter voltado à escola. Sua cabeça nunca esteve tão boa. Os cálculos para se unir ao esposo no jazigo de Montparnasse desapareceram por completo: era, afinal, uma certeza. E não há necessidade de pensar em certezas. Ela, então, deixou tombar a pressa.

A um passo da primavera, descer à rua para comprar artigos de primeira necessidade se tornou um prazer. Desses pequenos deleites da pequena vida, que tantos anos leva para aprender a apreciar. E esse prazer em particular, o sol se espraiando de maneira desigual pelos braços das ruas, ela ficou contente de reaprender. A vida, tanto tempo passado, tantos eventos, tantos desgostos e alívios, ainda podia lhe trazer novidades. Talvez tenha sido por isso que ela respondeu com um sorriso aberto e um entusiasmo tamanho, talvez até inapropriado, quando o rapaz de sotaque estrangeiro e bons modos (coisa rara nesses jovens de hoje) veio lhe perguntar para que lado ficava a rua de Saussure.

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A última curva do círculo

Um súbito azedume, raiva contra as folhas amassadas e secas. É injustificado o travo na glote ao pisar sobre elas, mortas e embebidas na água suja da estação. Daqueles caminhos cobertos de amarelo e vermelho, em que o vento dos belos dias erguia redemoinhos, restaram essas pequenas sombras encarniçadas, molduras marcadas pelas solas dos sapatos. E ao erguer os olhos para as poucas que ainda se agarram aos galhos, amedrontadas com a perspectiva da queda e da morte inevitável, não é a melancolia usual de um jovem dezembro que me ataca, mas essa absurda aversão, esse horror despropositado.

Meus ombros não têm marcas de pegada. Têm, sim, o peso de um tempo indiscreto, imperador narcisista que faz questão de se exibir. Deixa em meu corpo um sinal, o afundamento das espaldas, o desejo do tronco de esconder-se do olhar severo que o déspota lhe lança, como a todos. Confundo-o com a chuva, que amolece o tecido da casaca e a aba do chapéu, tal qual o deteriorar-se dos meses me abala o espírito. Tento espanar, com a água, a pressão do tempo. Tento abrir os ombros e preencher os pulmões. Mas o ar que atende ao convite me ofende. Gelado, queima os caminhos; empapado, enrijece minhas faces.

Desisto. Recolho-me novamente, inerte, como inertes estão os cadáveres em que piso, ainda que tente evitá-los, desgostoso.

Reconheço que basta contar quatro meses para brotarem as próximas folhas, minúsculas, redondas, de um verde transparente. Reconheço que é o ciclo, infinitamente mais ancestral do que qualquer ancestralidade a meu alcance. Erradas estão as folhas que insistem em não tombar, que imploram a uma natureza que não responde, que choram quando fustigadas pelo vento, que secam no pé e não entendem a condenação definitiva. Está inscrito, em sua natureza de folha, o destino do outono. Morrer. Nascer em abril. Perecer em novembro.

Eu é que não vou perecer com a aproximação do inverno. Mas sinto, intimamente, que já experimentei diversos ocasos, uma suíte deles, desde que as cores começaram a mudar e os ventos assumiram sua inclemência. Morro com uma folha, morro com mil. Morria alegre com a hemorragia de outubro, quando elas caíam como lágrimas de sangue e jorravam ao longo das aléias. Morro novamente, agora amargo, enquanto os ciprestes se preparam para a estabilidade do olvido.

Sei por isso que sigo o mesmo ciclo das folhas. Estamos na mesma curva, na mesma etapa, a um passo do mesmo mergulho. Se, enquanto a terra permanece congelada, não estarei morto, como elas, estarei ao certo paralisado. Estarei diminuído, abafado pelos panos que me mantêm vivo, pressionado pelas precipitações enervantes, quase sem folga. Como os vegetais, subsistirei na esperança de um novo abril, a nova reversão da curva, do ciclo, do círculo, o renascimento que se vive a cada ano, a volta, o alívio.

Creio que seja essa expectativa que me atemoriza. A evidência de que existo agrilhoado aos ciclos e de que esses ciclos são um só. Minha vida. Entrego-me ao ódio por essas folhas, não por elas, que nada podem, mas pela hélice a que estão amarrados meus pulsos e tornozelos, como elas aos galhos, antes da queda.

Como se falasse, dirijo a palavra às folhas mortas e lhes pergunto por que não ficam assim, por que não se contentam em apodrecer e seguir eternamente como húmus. Brotar novamente na primavera, que terror! É o supremo ato de submissão, um esforço para se entregar mais uma vez, entre tantas, à parábola que resultará em outra morte, em mais lama, em mais pegadas.

Eu me encheria de admiração por elas, se as folhas se recusassem a recomeçar. Elas teriam a força que a razão quis atribuir apenas a si própria, e que tanta desgraça causou aos entes concretos, ao se misturar aos corpos, templos do necessário, sede da condenação ao tempo. Diante da recusa heróica dos vegetais, eu me questionaria.

Eu me perguntaria, vexado, perturbado, por que eu mesmo, por que nós todos, que temos mais vontade do que as folhas, não podemos dar um passo para fora do destino. Da fatalidade, de uma forma de vida que se nutre infinitamente da própria morte. De um estágio que sabemos superar, mas a que nos curvamos como escravos.

Por que nos aferramos a ser trágicos? Eu desejaria saber. Seria a manifestação que eu gostaria de dar à minha inveja dos vegetais forros. Meu rancor mudaria nessa inveja se, e somente se, eu visse, nas folhas, a prostração transmutada em liberdade. Até lá, como parece inevitável, vou morrendo para viver.

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Ainda mais ao norte

Carl Xiii
Nenhum dia na Suécia é igual ao anterior. Tão violenta é a variação das horas de luz e trevas, que os suecos não conseguem conter o comichão de comentar o assunto, quando a curva da primavera vai se tornando mais e mais aguda: “nesta época”, eles informam, cúmplices de contentamento, “são cinco minutos de sol a mais por dia”. E o dado confere com o que aprendemos na véspera.

Não sei quem foi que convencionou as datas que marcam a virada das estações, seguindo os solstícios e equinócios. É provável que tenha sido a academia de ciências da França, como sempre, no mesmo golpe em que foram inventados o metro, o quilo e todo o resto das medidas rigidamente decimais, às quais só os anglo-saxões ainda tentam resistir. Em todo caso, certamente não foram os suecos. O dia se equipara em duração à noite na penúltima semana de março; na última, tem início o horário de verão. Mas é final de abril e não há sinal de verão em Estocolmo. Difícil topar com uma árvore já pontilhada de brotinhos de folhas. Enquanto em Paris as sakura já murcham e passam do rosa ao verde, na Escandinávia ainda abrem os primeiros botões de cerejeira.

Os cariocas dizem que o Rio de Janeiro conta com só duas estações: verão e inferno. Piada antiga. Na Suécia, pode-se dizer algo parecido: há o inverno, inferno oposto ao fluminense, e o “não-inverno”. Em julho, o termômetro eventualmente bate nos trinta e os nórdicos derretem. Hoje, domingo, primeiro dia no ano com céu em puro azul, temperatura positiva já ao amanhecer e mais de dez graus no princípio da tarde. A cidade inteira se lança à rua, redescobrindo os territórios que deixou vazios desde setembro. Coisa linda de se ver. Para nós, é muito frio, mas eles aproveitam para deixar braços e pernas finalmente nus. Não os pescoços, cabe alertar: só um louco sairia sem cachecol antes de maio, arriscando uma pneumonia que o deixe prostrado na cama por todo o verão. Nem pensar.

Pergunte a um sueco como ele consegue viver num lugar coberto de neve de setembro até abril. Faça isso a título de experimento antropológico. Há aqueles, com alma de esquimó, que consideram insuportável de tão quente o inverno de outros países europeus, como a Alemanha. Mas é minoria. Há boas chances de que a resposta seja um suspiro, seguido da confissão: “não sei”. Muitos têm o sonho de se mudar para um país mais ameno, para não dizer quente. Alguns citam a Jamaica, porque é tropical e fala-se inglês. E todo sueco é fluente em inglês, com uma pronúncia muito mais agradável do que a dos nativos, sejam britânicos, americanos, australianos, indianos… Ao final de outra pausa, longa e melancólica, o entrevistado responderá em tom de profecia, mais do que de descoberta: “Suporto o inverno para esperar o verão”.

Concluo que o frio extremo é, antes de mais nada, um grande aprendizado. Com a sucessão dos anos, a espera pia por um verão curto e apenas fresco ensina os jovens a se tornarem pacientes. Talvez isso explique o nível de civilização do país e do povo. A Suécia é tudo que dela se diz. ônibus não atrasam, lixo nas ruas é lenda das terras bárbaras ao sul (e praticamente o mundo inteiro está ao sul), mendigo é coisa do passado. Covardia comparar a Suécia à França. A falta de educação parisiense, o mau humor, a frieza, a empáfia, tudo isso passa longe de Estocolmo. Ou seja, aqueles que atribuem ao frio a nuvem negra sobre as cabeças francesas estão apenas muito enganados. Os fatos indicam coisa bem diversa. Aqui, transeuntes sorriem quando abordados, comerciantes são solícitos e dão informações, ninguém se compraz em destratar os outros. Para quem vive no meio de gauleses, conviver com os temíveis vikings é um alívio.

Uma palavra sobre a capital: Estocolmo é a cidade mais linda da Europa, pelo menos entre as que conheço. Uma pena que só se possa vê-la em todo seu esplendor a partir de maio, até setembro no máximo. Fora dessa janela, não bastassem a escuridão e o frio, muita coisa nem abre. Mas quando há luz, não existe delícia maior do que bordejar a linha d’água, entre pessoas tranqüilas sobre suas bicicletas, sem multidões, sem turistas berrando, sem excursões de japoneses, americanos e brasileiros.

Posso ofender muitas sensibilidades ao dizer que Estocolmo é mais bela do que Paris, Roma, Florença, Praga. Não é culpa minha. Na comparação, as cidades italianas não dão nem para o começo. Fora os museus e monumentos, são mais sujas do que o aterro de Gramacho. Praga poderia rivalizar, mas perde pelo tamanho e porque o adversário é mesmo muito difícil. Quanto a Paris, a incensada, é mesmo muito bela, mas cansa rápido. De sua arquitetura toda haussmannienne, cinzenta e retilínea, resulta uma cidade monótona, monocromática, monocórdia. Estocolmo é colorida, espalhada, ampla. Sua arquitetura é imaginativa, sabe misturar diferentes épocas e escolas, quase sempre sem ruído. Belíssima cidade, repito.

Mas este é apenas um texto introdutório. Lanço aqui uma seqüência quase desconexa de primeiras impressões. Coisas assim são o que vi na capital gostosa de um país nórdico desde que cheguei, dois dias atrás. Mas há muito a dizer nas próximas crônicas, se a internet parar de me pregar peças.

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abril, arte

Como aprendi sobre a morte

Bobby O Boneco De Neve
Vou ter de deixar para a próxima o tal comentário sobre os plátanos, que venho prometendo desde o início do mês. Como sói acontecer no poço inesgotável de surpresas que é este mundo, veio se interpor a meus projetos botânicos um fenômeno insólito. Já a alma dirigia seus cuidados à sagração da primavera, ao final de mais um inverno tão ameno quanto desagradável; espaços já se abriam nos armários, para receber as carapaças que nos protegem desde outubro; passeios e refeições ao ar livre já estavam no programa. Mas São Pedro tinha outros planos. Mandou baixar bruscamente a temperatura, dos dezesseis para o zero mais quadrado. A tal ponto que, na madrugada de ontem, perigosamente equilibrado entre a saúde e a pneumonia, levantei-me da cama, espiei por uma fresta da cortina e constatei o absurdo: do alto vinha neve.

Em vez de me meter em divagações seriamente preocupadas com as piores questões climáticas de nosso tempo (e talvez essa fosse mesmo a reação mais adequada), corri de volta ao quarto e despertei Nicole. Sabedor de sua frustração por não ter visto um floco sequer de neve desde que chegamos à Europa, não podia deixar passar essa singular chance primaveril. Tadinha, ela acordou com olhos deste tamanho, grogue e incapaz de compreender meu entusiasmo. Isso, até o momento em que se acercou da janela e avistou os automóveis todos brancos. Como no pátio de um hospital. Ela saltitava de contentamento.

Puxei o casaco que tinha mais à mão, um cachecol, um gorro, um par de luvas. Meti-me na carapaça e saí. Como um turista tropical, o que no fundo não deixo de ser, tirei fotos e fiz desenhos na camada de gelo sobre os veículos. Corri até a janela de casa, bati no vidro, Nicole abriu. Finalmente, recolhi neve e mais neve, que resultou num boneco de um palmo e meio de altura, ereto sobre o parapeito. Bobby (não fui eu que o batizei) ganhou olhos de botões, um cachecol cor-de-rosa e terra espargida sobre a cabeça à guisa de cabeleira. Tudo na mais refinada técnica que aprendi quando garoto e não pudera mais aplicar.

Assim termina a parte alegre da narrativa. Bobby teve vida curta. A neve parisiense, à qual fui praticamente apresentado ontem, é tão fraca, que nem cobre de branco as calçadas. Nessas condições, um boneco de neve, como o sol de Gregório de Matos, não dura mais que um dia.

Pior do que aprender da existência efêmera é acompanhar o processo. Chegando em casa, parei diante da janela e me deparei com um corpo branco, ainda em pé, tendo ao lado a cabeça tombada, toda suja, sobre a terra negra de um vaso que em breve deverá receber flores. Do pescoço cortado não escorria sangue, mas filetes de água, como se a essência da vida se esvaísse lentamente do pobre Bobby. Tentei encaixar novamente a cabeça, ela voltou a tombar. Recolhi os olhos, reduzidos novamente a botões sem luz.

Ao anoitecer, restava do corpo de Bobby somente um cotoco amolecido. Pensei em guardá-lo na geladeira, mas venceu a sensação de que seria como meter os restos de um filho no IML. Aquele montículo de neve fazia pensar nos corpos dos imolados pelo fogo, embora tão oposto em cor e temperatura. Uma imagem dolorosa e, de certa forma, repulsiva. Estragou meu humor pelas horas seguintes.

Já deitado, pensei no infeliz destino de Bobby, que tão pouco pôde ver deste mundo antes que um sol fraco o consumisse lentamente. Vieram à memória passagens da infância, vivida numa cidade fria, muito mais do que Paris, coberta de neve por quatro ou cinco meses todo ano, a ponto de ao menos um dia de aula ser cancelado a cada mês do inverno. Lembrei-me principalmente de um homem de neve digno do nome, de cachecol, chapéu de cangaceiro e charuto, olhos, nariz e boca, que passou a vida toda de sentinela no quintal, vendo e cumprimentando as pessoas que passavam. Uma existência mais digna e bem mais longa que a do último boneco: quase dois meses. Mas acabou. Sua agonia foi semelhante à de Bobby, só muito mais demorada. Dia após dia, a massa do corpo ficava menor e perdia a forma, a poça se adensando na base. Cachimbo e nariz tombaram, os olhos furaram os flocos da carne, o chapéu e o cachecol foram logo confiscados.

Lembro-me de uma fotografia, já na primavera, desse homem de neve reduzido a quase nada. Em verdade, a fotografia não era dele: era um intruso, ao fundo, mas foi o que vi. A imagem é chocante. E a experiência de acompanhar a decomposição de um amigo que ajudei a conceber e montar, nem preciso dizer, ficou gravada com um selo de dor.

Foi a primeira vez em que aprendi algo sobre a morte. Com quantos anos? Cinco, no máximo seis. O falecimento de Bobby produziu um déjà-vu tenebroso. Foi como uma sessão de psicanálise. Entendo agora, também, por que os povos do Norte, enfim, do frio em geral, têm a expressão sempre tão triste e fechada. Não é a escuridão do inverno. É a experiência tão precoce da morte, repetida a cada ano no corpo frágil e roliço de um boneco simpático como Bobby.

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arte, Clara Nunes, crônica, música, prosa

A vida emoldurada

Torres Azuis Bizarras Noite San Giminiano
Ia andando pela rua dos fundos, atrás de um qualquer coisa que pudesse passar por jantar. Descia uma chuva de alfinete, vagarosa e desagradável. Ainda não era bem noite, mas já fazia escuro e parecia que a cidade se escondia. Todo mundo foge da temperatura que cai bruscamente; em vez de visitar os amigos ou a família, vale mais terminar o domingo com um filme da televisão. No meu caso, foi a necessidade que deu a última palavra. Comer é preciso. Saí. Para me proteger da água e das lâminas do ar, a manta grossa e, principalmente, a música que os fones de ouvido sussurravam.

Quando fiz a curva e embiquei pela rua maior, a faixa mudou. Os acordes em staccato de um cavaco e a voz de Clara Nunes fazendo um aperto de saudade no seu tamborim: Tristeza e Pé no Chão. No mesmo instante, deu-se alguma coisa. Fui invadido por um desconforto que não podia explicar, como se minha cabeça entrasse em conflito consigo mesma. Ou melhor, como se meu corpo visse o mundo à sua frente, mas se reconhecesse em outro canto, outro plano, outro universo. Estranha sensação, caminhar tremendo de frio por uma rua deserta e brilhosa, com tantãs e ganzás como trilha sonora, gingando na celebração de uma voz divina.

Culpa do aparelhinho que me atirava a música direto nos tímpanos. Quem segue seus caminhos ao som da pura realidade, buzinas, berros e motores desregulados, talvez não me entenda. Mas, palavra, é assim. Quando inventaram o walkman, o diskman, o celular que capta FM, o toca-fitas de carro e o famigerado iPod, inventaram ao mesmo tempo a vida com trilha sonora. Para muita gente, o próprio fato de existir passou a ser pontuado pelas emoções que melodias transmitem e batidas impõem.

Tanta gente no metrô com cabos pendurados, caindo pelos lados do pescoço como madeixas de plástico! São garotos, não têm a habilidade de controlar o volume. Um vagão inteiro submetido ao bate-estaca. Seus olhares se perdem no desprezo pelo universo, nem consigo supor que imagem podem ter do mundo, da cidade, das pessoas, enquadrados pela batida agressiva das pistas de dança. Não pode ser a mesma face que eu vejo, por trás de minha música diferente.

Meu caso começou como fuga. Tinha pânico dos vendilhões da Paulista, precisava de um pretexto para não escutar suas vozes, não precisar grunhir um “não” a cada passo. Certo dia, captei a Rádio Cultura pelo celular; examinar os rostos suados e sérios ao som do Stabat Mater de Pergolesi me incutiu a certeza de que todos à minha volta eram infelizes. Compreendi a profunda desgraça de todo aquele ambiente e quis escapar. Claro, a culpa não cabe inteira à música, mas ela tem parte.

Onde foi que li? Um ensaio sobre como mudou nossa relação com a música no último século. Pode ter sido Adorno, o do contra, ou Nikolaus Harnoncourt, ou qualquer outro. Primeiro foi o fonógrafo, que deu à humanidade o controle sobre as harmonias. Qualquer caixinha poderia tocar como uma orquestra. Depois, o rádio espalhou pelo mundo as mensagens sonoras determinadas por alguém em algum lugar, seja lá quem for. Pois era um certo encanto que se quebrava. Tirar melodias de um objeto inanimado perdeu seu verniz de mágica. A música, daí por diante, seria outra.

O golpe de misericórdia foi dado, com certeza, pelo cinema falado. “O grande culpado da transformação”, já dizia Noel Rosa, filósofo malgré soi. Na tela, a música enquadrou a vida real. O herói enlaça a mocinha ao som dos violinos, o assassino dá suas estocadas com um fundo de trítonos secos. O público se deixa envolver. O público somos nós. Nós acreditamos. E transferimos a necessidade de trilha sonora para nossa própria existência. Sem querer.

Daí meu estranhamento, na noite de domingo, enfrentando o frio e a chuva embalado pelo surdo, a cuíca e a voz de Clara Nunes. A máquina que eu trazia no bolso não entende nada. Não sabe escolher o fundo que se adequa por natureza a cada ocasião. Era momento para o quase silêncio de Eric Satie, as lamentações de Robert Johnson ou a cantilena da quinta Bachiana Brasileira de Villa-Lobos. Lágrimas na avenida, um desfile marcado para a quarta-feira? Impossível.

Só fui capaz de retornar ao corpo quando abandonei toda pretensão a uma trilha sonora. O mundo se recompôs, terrível como é: um silêncio de cripta gótica, motores à distância, o eterno chiado urbano que nunca sei de onde vem. Crueza e crueldade do ar que não vibra segundo o acordo das vozes. O ar desobediente que existe além dos meus fones.

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Nos jardins, as cerejeiras

Três cerejeiras
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…

Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.

Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.

Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.

Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.

Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.

Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.

Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.

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O mal que vem dos Trópicos

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Quase uma confusão terrível. Por pouco, não sou tomado por um risco à saúde pública. Do jeito que a turma anda neurótica por estas bandas, uma quarentena seguida de deportação não estaria inteiramente fora de questão. Durante alguns momentos, estive na berlinda, confundido com uma aberração doentia; lepra, micose, varíola, sei lá o que pensaram que eu tinha. Mas é profundamente desconfortável a sensação que dá quando as pessoas, no máximo de discrição de que são capazes, afastam suas cadeiras de você. O isolamento é doloroso, eu digo. E não passava, claro, de um pequeno mal-entendido.

Melhor começar pelo princípio, manda a prudência. Pois bem. Uma sala de aula ocupada por inteiro, três dezenas de pessoas espremidas em algo como 15 metros quadrados. Lá fora, a temperatura oscila entre frações de grau negativo e uns quebrados positivos. Dentro, a calefação automática exala seu ar pesado e mal-cheiroso, relegado à redundância pelas quase trinta respirações simultâneas. Alguém sugere abrir as janelas, mas os outros recusam. Medo do vento gelado e da chuva fina que às vezes cai.

O professor discorre sobre fenômenos, númens e coisas em si. É bom prestar atenção, para não perder o raciocínio. Difícil, com as alfinetadas do calor debaixo das três ou quatro camadas de roupa; entre a primeira e a pele, o suor se dissemina, desconfortável. Nada pior do que suar no inverno. Tentando não incomodar os demais, liberto-me do paletó opressor. Poucos minutos mais tarde, também parte o colete. É pena, mas tirar a camisa seria passar do limite. O máximo permitido é arregaçar – ou melhor, enrolar – as mangas. Eis o erro.

Área perigosa. Segunda fileira, posição central, bem diante dos olhos do professor. Enquanto transcrevo suas explicações intrincadas, ele lança um olhar involuntário para meu braço. Faz uma pausa, engole em seco, titubeia para voltar ao discurso. Mas é experiente e recupera o fio. À direita, um arrastar de cadeira. À esquerda, outro, um pouco mais violento. Buchichos; o mestre se irrita um pouco. Demoro a entender que a culpa é minha, mesmo quando dá a hora e todos se levantam.

Enquanto visto de volta as peças que arrancara em desespero, aproxima-se meu velho amigo Germain. Com a delicadeza que lhe é particular, tenta sorrir. Ofereço-lhe a mão para um cumprimento, mas ele, embaraçado, faz de conta que tem as suas ocupadas. Um ato desajeitado, que só fez sentido mais tarde. Tento não demonstrar que entendi. Germain, esforçando-se por não se aproximar demais, acompanha meus gestos com os olhos esbugalhados. Confesso-lhe minhas dificuldades com a aula. Ele não ouve; ao contrário, emenda uma questão envergonhada, em seu estilo pouco natural de falar, cheio de volteios literários e eufemismos estilísticos.

– Caro amigo, desculpe perguntar; quando você visitou seu país [ele sempre chama o Brasil de “meu país”], parece que cometeu uma pequena imprudência…

Nem preciso dizer que fiquei surpreso.

– Que imprudência, Germain?

– Estou certo de que existem avisos nas praias, para informar quando estiverem impróprias para o banho… Sua saudade era tão grande assim, a ponto de mergulhar em águas poluídas?

Só pude sorrir. Contei-lhe que não mergulhei em praia nenhuma. Nem própria, nem imprópria. Passei ao largo do fato de que os avisos aos banhistas só vêm pelos jornais e, mesmo assim, sem grande clareza. Expliquei que choveu o tempo inteiro nessas duas semanas, não deu praia, para meu desespero. Aliás, não me lembro que expressão usei para “dar praia”. Deve ter sido algo como “as condições não eram propícias”.

Germain alçou as sobrancelhas. Duvidava de mim. Sua incredulidade foi mais surpreendente do que ofensiva. Jamais ele havia colocado restrições a alguma declaração minha. Parecia absurdo que, de repente, ele resolvesse descrer assim. Percebi um movimento em seus lábios. De bem conhecê-lo, soube, desde o primeiro momento, que ele ruminava uma maneira de abordar o assunto incômodo sem causar ferimentos em minha sensibilidade.

– Desculpe, erro meu; pensei isso por causa da doença que te aflige…

Não há doença alguma que me aflija neste momento. Germain percebeu a interrogação desenhada entre meus olhos e se embaraçou. Gaguejou acintosamente e enrubesceu. Jamais eu o vira nesse estado. Quando, condoído, resolvi partir em seu socorro, ele se adiantou, inspirou profundamente e retomou o prumo. Delicadamente, admitiu a origem de sua idéia.

– Quando você enrolou a manga, pude ver o estado da pele… É terrível, quero que você saiba o quanto sou solidário!

Não foi de imediato que liguei os fatos. Quando o fiz, caí na risada. O professor, ainda na sala, me encarou, assustado, e escorregou para fora num instante. A expressão de Germain era toda enigma. Nas duas semanas em que estive no Brasil, de fato não deu praia; houve um único dia de sol. Nesse dia, eu estava nas montanhas. Sol de montanha, bem se sabe, é terrível. Fiquei vermelho, meus ombros ardiam, o peito do pé doía enormemente.

E como explicar para Germain que eu estava apenas descascando? Nem conheço a palavra francesa para “descascar”, nem, pelo visto, o sol da Côte d’Azur, do país basco e da Bretanha são capazes de fazer um banhista trocar de pele no dia seguinte. Tentei lhe explicar o princípio do descascamento: o sol bate, a gente esqueceu a loção 30, a pele vai escurecendo, às vezes fica vermelha, não passamos hidratante (bom, alguns passam…). Dá uns dias, a pele forma umas bolhas, pronto: descasca. Perfeitamente natural.

As sobrancelhas de meu amigo seguiam arqueadas; em sinal de dúvida, sim, mas sobretudo de asco. Esse papo de pele que descasca é coisa de bárbaros tropicais. As epidermes européias podem ficar encardidas, ásperas ou transparentes, mas, pelos céus!, jamais descascam. Nada disso ele formulou explicitamente, claro, mas pude ler por trás de seus olhos cinzentos. Era algo que ele preferia jamais ter aprendido. A esse ponto, eu já me divertia como uma criança; como uma criança, decidi torturá-lo.

Arregacei a manga novamente e anunciei: “vou te mostrar…” Germain é ágil, não me deu nem sequer o tempo de puxar a primeira pontinha de pele morta. Agradeceu, lembrou-se de algum compromisso e projetou-se porta afora, deixando-me de pé, sozinho na sala, brincando de descascar e rindo até cair no chão. Só consegui me controlar muito tempo depois, quando lembrei do professor: a essa hora, o sinistro filósofo poderia estar ao telefone, denunciando um aluno contaminado para o Ministério da Saúde.

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