abril, crônica, descoberta, deus, Filosofia, flores, folhas, frança, opinião, paris, parque, passado, passeio, praça, primavera, prosa, reflexão, religião, tempo, transcendência, vida

Um milagre basta

Abri mão de pensar num sentido para a vida graças à chuva de pétalas de cerejeira e folhas de chorão. É um fechamento tão tranquilo para o ciclo da beleza, que não pude evitar uma tranquilidade semelhante para o ciclo da existência. Simples assim. Antes que o mês de abril possa começar e terminar com seus míseros trinta dias, os galhos se enchem de flores, como se explodisse dentro deles uma matéria inquieta de cor e vida, depois as pétalas se desmancham com o vento e dão lugar às folhas. Mas estas últimas tampouco hão de durar mais do que seis meses, sete no máximo, antes de deixar novamente nus os galhos…

E assim por diante, como todos sabemos. E, como todos sabemos, é esse o mesmo círculo a que obedecem todos os viventes, desde o bilionésimo do bilionésimo ano do passado, desde que cadeias de matéria deram para se replicar. Coisas brotam, coisas secam, nas árvores, nos mares, nas savanas, como na minha cabeça brotam ideias, e são projetos, depois secam, e são desistência.

A florada de um cerejal nao nutre ambições de beleza e faz muito bem. Nada tem muito sentido para um galho coberto de flores, que só sente de fato a inclinação de atrair abelhas – e as abelhas vão, atraídas pelos formatos apetitosos. Estirado, algo preguiçosamente, sobre um branco de praça com vista privilegiada para a colheita dos insetos, vejo, quase distraído, a repetição do que aconteceu no ano passado, no ano em que nasci, antes mesmo que os anos fossem contados. E me ponho a citar: é o ciclo, o ciclo da vida, a vida é um ciclo… e adormeço.

Caem as pétalas e adubam a próxima florada, as folhas virão para tomar seu lugar e encher de energia um infinito de reações químicas, que jamais verei de perto. E nem preciso, para saber que elas só fazem manter e criar mais flores, mais folhas, mais galhos, mais reações. Eu, adormecido, embalado por uma vida em ciclo: acaba para recomeçar, morre para dar mais vida… Um dia, começou sem antes ter acabado; outro dia, vai acabar sem recomeçar em seguida, mil anos antes que o sol, como promete a grande ampulheta cósmica, exploda e engolfe nosso planetinha.

Não que as plantas se perturbem de saber, se souberem, que, depois de tanto tempo, esse brota e apodrece vai dar em nada. E eu, que em muito menos tempo também vou dar soma zero, ainda gasto meu tempo desperto pensando nessas coisas. Jeito besta de ocupar as décadas (um nada!) que me restam! Bom, no fim das contas, esse pensamento e todos os outros se valem, como se valem as abelhas se o assunto é disseminar o pólen. Algo em mim me diz que eu não deveria apostar tanto na minha própria duração para além de mim mesmo, mas…

Vendo tanto renascer, tanto rebrotar, acabo caindo na tentação, doce e idiota, de acreditar que um fim nunca é fim de verdade. Alguma coisa dura, quero; alguma coisa renasce, desejo. Meu lado ingênuo aponta para a beleza do universo, diz que é milagre, e garante que, entre as coisas que não vão terminar quando chegar o meu fim, estou eu mesmo.

É claro que isso não pode ser verdade. Mentira grossa, decerto. Que tem a ver com a beleza que admiro com a transcendência dos meus olhos? Minha carne fenece tão facilmente quanto as folhas do outono, e então, para ser direto: adeus beleza, adeus olhos. Continua o ciclo, mas eu pulei fora dele como essas pétalas que flutuam no vazio. E se meus braços e pernas são feitos do mesmo material que esses galhos, então não valem mais do que eles ou o ciclo de que fazemos todos parte.

Porém, já sei… que mudem as estações, não vai mudar a admiração que tenho pela sua regularidade, o milagre da sua reprodução, e a suspeita pouco justificada de que toda essa vida tem algum sentido e obedece a algum desígnio. Parece não bastar a evidência de que toda a beleza do universio é a beleza que eu aprecio, e todo o sentido da vida é a vida como eu a sinto. Deve ser isso. O verdadeiro milagre da vida é ter engendrado um ser que a sente como bela e tem amor ao ciclo, a ponto de desejar ser maior do que ele. Para mim, já é milagre suficiente.

Padrão
costumes, crônica, descoberta, doença, passado, prosa, reflexão, saudade, tempo, transcendência, tristeza, vida

Dos sustos

De súbito, salta a meus olhos a razão dos sustos. Refiro-me àqueles que parecem se abater sobre cada vivente de tempos em tempos, regulares como as crises sistêmicas do mercado financeiro, mas bem mais freqüentes. Esses traumas, maiores ou menores, são o mecanismo que a natureza criou para nos trazer de volta à vida, quando estamos, sem saber, há muito levando os dias como autênticos defuntos.

Explico. É um engano conceber nossa existência como um arco no tempo, embora seja nossa interpretação mais corrente: uma parábola que salta do nascimento, na maturidade atinge seu cume suave e daí vai descaindo pela velhice, até reencontrar o eixo das abscissas quando a morte nos alcança. Uma curva assim tão suave não pode representar a vida, essa que é tudo, menos suave, e tão menos viva quanto mais tranqüila e regular.

Para quem a observa com atenção, diria mesmo com carinho, a vida desvenda seu doce segredo. Ela se revela inteira, como um fractal surpreendente. Dentro do tempo que nos é reservado nesta existência, que por sinal é muito pouco, temos o dom de nascer muitas vezes, em várias direções, com intervalos que podem ser incrivelmente curtos. No fundo, em vez de uma só, levamos levamos várias vidas, um fragmento dela a cada vez. E isso faz de nós caleidoscópios pulsantes, com todas as cores e movimentos que um caleidoscópio deve ter.

Que isso implique um sem-número de pequenas mortes para cada um de nós não deveria ser causa de aflição. Quem chegou até aqui já provou sua resistência. Não sucumbiu aos muitos finais que já sofreu, nem ao medo de cada reviravolta, mesmo se chegou a pensar que não mais poderia. A última morte, aquela que atinge também a carne, arrisca perder-se no esquecimento, depois de tantos traumas e tantas primaveras.

É assim que passam os anos, é assim que se forma aquele arco que, por desatenção, tomamos pela vida de verdade. Vivemos por um tempo, depois morremos sem saber. E podemos ficar anos, muitos anos assim. Pobres zumbis, cadáveres ambulantes mas asseados, confortáveis no esquife acolchoado de certezas em que nos enterra o quotidiano.

Quanto mais rápido vier o susto, melhor e menos traumático. Quanto mais nos acomodamos na segurança, tão artificial, que se apresentava, ardilosa, como objetivo maior de qualquer vida, mais teremos de sofrer para aceitar que há muito já não vivemos e precisamos nascer de novo, com o impulso de um bom susto. Mudanças desse gênero são quase sempre muito difíceis e deixam sequelas na versão renascida do defunto.

Como ele pode vir, esse tal susto, todos sabem. Quem se flagrar em dúvida deve desconfiar. Se jamais tiver passado por um, é provavelmente porque ainda está precisando. Ainda vive como um morto e não descobriu. Quando soar o alarme, soará em alguma forma inusitada, imprevisível, sorrateira. Eventos físicos e óbvios, talvez, como a experiência de quase ser atropelado, ou se cortar profundamente com uma faca de cozinha ao fatiar tomates. Mas podem sobrevir ainda os superlativos do padecer moral: separações, traições, desilusões.

Venha como vier, o susto é um novo parto. Acordamos para um mundo que tínhamos esquecido, isto é, acordamos para a vida. Descobrimos o quanto éramos mortos, quão idênticos eram nossos dias, como o são os dias da matéria inerte que fatalmente nos tornaremos. Somos atingidos, reagimos. Sentimos o sangue que corria em nossos vasos sem que déssemos por ele. É para isso que tomamos sustos, é por isso que desabam nossos universos.

Porque sofremos, podemos fruir. Eis um decassílabo que resume a existência.

Padrão
arte, Brasil, cinema, crônica, descoberta, história, opinião, português, reflexão

Estratégia Xavante e o líder nato

null
Ainda um tema inspirado no cinema. Ainda um documentário. Espero que tenha sobrado alguma paciência para minha falta de imaginação, mas, vamos convir, existem questões que realmente não podem ser deixados de lado. Principalmente quando é alguma a que damos menos atenção do que ela merece.

Fico me perguntando se um filme como Estratégia Xavante tem chance de entrar em cartaz. Acho que não, e vai ser uma pena. Embora trate de índios e, claro, toque na questão indígena, esse filme é agradável e não é panfletário, não é denúncia. Por outro lado, também não é sentimental, nem ingênuo, como a maioria dos filmes sobre povos que o núcleo branco e urbano do mundo se compraz em considerar exóticos.

Fico muito envergonhado de admitir que não guardei o nome do cacique xavante, homem brilhante, um verdadeiro visionário, que concebeu a estratégia que dá o título ao documentário. Para todos os autores de uma literatura que anda tristemente na moda, esse ramo disfarçado da auto-ajuda que trata de liderança e líderes, o velho chefe indígena daria um estudo de caso excepcional. Sem MBA, sem competição interna, sem head-hunter, ele imaginou e pôs em marcha um projeto de enorme coragem e ambição, que pôs sua tribo, recém-descoberta pelos “civilizados”, em contato com o mundo, sem jamais arriscar sua integridade étnica. Ao contrário, foi a resposta rápida do cacique que resguardou a identidade dos Xavantes.

Foi assim: eram inícios dos anos 70. A tribo havia sido “descoberta” pouco mais de vinte anos antes, quando da famosa marcha para o Oeste que ia desbravando o território. Lembra da famosa reportagem de David Nasser e Jean Manzon para O Cruzeiro? Pois é, justamente, eis a tribo. O tal cacique entendeu na mesma hora que a vida não poderia continuar igual. Aquela gente clara e coberta de roupas tinha muito mais recursos que os vizinhos e inimigos Xerentes; o cerrado não seria mais uma vasta área aberta; o território, a língua, a cultura, tudo estava sob ameaça. Convocou-se uma reunião da tribo. O chefe levou a madrugada inteira para convencer seus pares da necessidade de agir, mas conseguiu.

Nos dias seguintes, alguns meninos foram destacados para cumprir a missão mais importante da história da etnia. Um dos exploradores dos anos 50, que havia se tornado amigo da tribo, levou-os para Ribeirão Preto e os fez adotar por famílias amigas. Os garotos aprenderam o português, foram à escola, incorporaram a cultura dos brasileiros. Mas também transmitiram um pouco da sua. Esclareceram, mesmo sem saber o que faziam, uma relação que poderia se pautar pela ignorância e o desprezo, como é o caso na maior parte do Brasil, a respeito da maior parte das tribos.

Os índios são um assunto em que o brasileiro, em geral, quase nunca pensa. É compreensível. O país cresceu, tem cidades enormes, taxas de juros flutuante, estradas e ferrovias clamando por reparos, televisão, geladeira e forno micro-ondas. Para o paulistano, o carioca e os demais modernos, “houve índios no Brasil”, mas enfim, depois chegou Cabral e foi aquele massacre, sem dúvida terrível, mas é coisa do passado, bola pra frente.

É claro que, de tempos em tempos, o assunto volta à baila. Modas, digamos. Em priscas eras, houve o romantismo, José de Alencar, enfim, cada brasileiro deveria se considerar um valoroso Peri. Décadas mais tarde, Darcy Ribeiro, em sua voz mil vezes carismática, tentou que amássemos esses povos, a quem tanto devemos. Mas aí veio o golpe, nada de índio, é “pra frente, Brasil” e ponto final. Agora, faz uns bons vinte anos que Sting passeou pelo mundo com Raoni e, por alguns meses, falou-se tanto em Ianomâmis quanto em futebol, inflação e Vale a pena ver de novo. Depois, o assunto morreu mais uma vez.

Quer dizer, morreu mais ou menos. Nós, nas cidades, é que preferíamos que tudo isso se resolvesse de uma vez, que demarcassem logo as terras, que exterminassem logo todo mundo, que dessem um CPF para cada índio desses e os pudessem para trabalhar na lavoura. A comida está cara e não dá para ter tanta gente e tanta terra alienada do mercado internacional.

Nos jornais, é esse mesmo o tom das matérias. Garimpeiros invadem áreas demarcadas e são flechados; voltam com carabinas e derrubam tudo que se move; os próprios índios compram armas de fogo e revidam sem misericórdia, com suas bermudas coloridas fabricadas na China. Lá de longe, achamos tudo isso muito estranho, como se o Brasil não estivesse entre as maiores economias do mundo, como se esses eventos se passassem em Marte. Acompanhando notícias desse gênero pela televisão de plasma, não é de estranhar a dificuldade em crer que metade do nosso território está entregue à disputa cruenta entre esses povos nus e os miseráveis que o país deixa como sobra: trabalhadores desesperados por um grãozinho de metal, pistoleiros a mando de senadores, jagunços, eles mesmos, que ironia perturbadora, com muito sangue índio nas veias.

Sábio foi o tal cacique xavante, ao perceber que sua tribo era, de longe, a parte mais fraca de uma eventual disputa. Impossível vencer um conflito com toda essa gente. É fazendeiro querendo pasto, é militar vendo invasão estrangeira em todo canto, é a Funai loteada e depauperada, servindo, não raro, a interesses que passam longe dos índios. Daquele grupo de garotos xavantes, quase todos voltaram ao lar para retransmitir o que aprenderam. Os demais prestaram vestibular e, hoje, se dedicam a lutar por sua tribo e pela causa indígena em geral. Resultado: dentre tantos povos dizimados, os Xavantes vão sobrevivendo.

E na última semana, divulgou-se na imprensa que foi feito contato com uma nova tribo, na fronteira com o Peru. As imagens lembram muito as de 60 anos atrás em Mato Grosso: guerreiros assustados, mas firmes, apontando flechas nos arcos tesos contra os aviões, entre as tabas dispostas com esmero na clareira. Voltou-se a falar em índios, vamos ver por quanto tempo. Quanto a mim, enquanto me pergunto o que será dessa nova tribo, fico na torcida para que Estratégia Xavante entre em cartaz.

Padrão