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Sobre símbolos e eras

* Texto já um pouco antigo, mas que, creio eu, se tornou um pouco mais pertinente agora que os mercados caíram e o medo ficou explícito. É por isso que o republico. Ele apareceu originalmente no Le Monde Diplomatique, no final de 2007. *

Foto de Denise Límpias

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Este texto, confesso, é resultado de uma recaída metafísica. Talvez seja culpa do inverno que vai terminando, levando consigo a escuridão carregada de símbolos e significados. Tão contraditórias entre si, essas imagens de penumbra, que o espírito inquieto se flagra envolvido em perguntas e mais perguntas. No meu caso, começo a me questionar sobre o mundo, nosso mundo. Nós, como humanos, não apenas vivemos no mundo, mas o construímos, o projetamos, antes até de viver. Gostaria de poder saber como se dá isso. Por enquanto, tenho para mim que cada mundo humano se tece ao redor de um punhado de certezas transcendentais, a exemplo do tempo e do espaço. Essas certezas, em geral vagas e quebradiças, precisam se concretizar diante de nossos olhos, em grandes símbolos encarnados. Símbolos assim emudecem os espíritos em suas perambulações. E mais: reforçam na grande alma coletiva os valores de suas certezas.

Essas convicções podem tomar uma infinidade de formas. Religiões, ideologias, línguas, configurações morais. Por um lado, elas servem ao propósito de limitar nosso campo de ação. Sem dúvida. É o preço a pagar para que possamos viver juntos, pelo menos por um tempo. A convicção indica, da melhor maneira que pode, uma certa direção ao olhar de cada um. Podemos obedecer com maior ou menor rigor, podemos nos rebelar, pouco importa. Ali, nesse direcionamento tácito, está o que o grosso de uma pluralidade humana qualquer considera ótimo, normal ou absurdo em algum momento e território. É isso que lhe dá uma face. Quanto aos símbolos, podem entrar nessa categoria todas as formas que o ser humano encontra para se espelhar na realidade, isto é, imprimir os contornos de seu rosto ao entorno. Como os cães, que, ao urinar nos postes, demarcam o mundo que é deles. Os humanos não empregam a amônia, felizmente; mas fazem coisa muito parecida, usando o corte das roupas, o ritmo das músicas, as idéias vulgares com que inteligências tíbias constroem seus discursos inflamados. É a dimensão estética que permeia cada fibra de nossa existência, o campo geral de nosso diálogo com o exterior. Assim, ao contemplar o leque de símbolos de uma gente, temos dela uma estranha compreensão, absolutamente silenciosa. Qualquer tradução em palavras lhe compromete o valor.

De todos os símbolos, o mais vistoso e eloqüente é, com certeza, o monumento. Primeiro, porque ele já é feito com a finalidade, nem sempre consciente, é claro, de simbolizar alguma feição da existência plural. Um vestido bem desenhado se costura para o uso de uma mulher; mesmo a tela de um grande mestre é objeto de transações no mercado, e enfeitará a sala de estar de algum homem poderoso. Já o monumento é construído com o fito único de ser monumental, estar ali, diante dos olhos das pessoas, cuspindo sobre elas um fogo cerrado de símbolos, ao mesmo tempo históricos, políticos e estéticos. Em segundo lugar, o monumento não tem escapatória. Ele está ali e ponto. Solene, quase sempre de uma solidez opressiva e, não raro, vertical até esfumaçar as retinas. Os monumentos de outros tempos e mundos se misturam e confundem pela cidade, como se o passado fosse um só, todo feito de obeliscos. Os de hoje, nós os elevamos com os olhos voltados para uma grandeza que o futuro, estamos convictos, saberá reconhecer. Nossos monumentos têm um rosto todo próprio, mas, de fato, sua função jamais é inteiramente diferente.

As grandes cidades do mundo estão coalhadas desses símbolos de pedra, terra e metal. A Europa, em particular, não sabe o que fazer com tanto monumento. Uma pilha de resquícios esfacelados dos impérios já caídos. Santuários de que se apropriaram os turistas, esses bárbaros modernos entupidos de dinheiro. Testemunhas de uma história que quase ninguém sabe contar.

Dentre essas fabulosas capitais, Paris é a que mais cultiva sua vocação para o monumental. É a cidade que encontra sua identidade justamente nas linhas de avenidas que conectam um marco a outro, como se tentassem desenhar uma estrela de incontáveis lados. Tudo pode cair aos pedaços na França; só os monumentos parisienses precisam ficar de pé. Eis a diretriz gaulesa.

Todos sabem qual é o monumento principal desta cidade; sete mil toneladas de ferro, em vigas amarradas umas às outras para escalar 324 metros de céu. Quase um milagre da engenharia de sua época, que, espalhado pela área enorme que ocupa, oprime o solo não mais do que um homem sentado. A torre planejada por Gustave Eiffel domina toda a cidade. Faz-se enxergar de qualquer canto, até mesmo alguns subúrbios distantes. A despeito da altura e do peso, sua forma esguia transmite uma leveza serena. Ocupa um volume considerável roubado ao ar, mas compõe-se majoritariamente de vazio. Puro nada, como o dos átomos, o dos bancos, o das multidões.

Eis aí uma das obras maiores e mais simbólicas de uma época encerrada sem notarmos, absortos que estávamos nos traumas que esse mundo se ofereceu. Um capitalismo escaldante, que o Ocidente superou ou preferiu esquecer. Uma força possante, irresistível. Arrasava tudo de vetusto e mesquinho, em nome de uma verticalidade que a torre Eiffel não encarna mais do que a teia negra de caminhos de ferro, a fumaça grossa dos navios a vapor, os primeiros movimentos vanguardistas da arte. Esse capitalismo, antes de querer derrubá-lo, o implacável Marx aplaudiu com efusão. Porque o teórico da revolução reconhecia ali um orgulho de si próprio inconcebível para nós, senão por seu legado: a torre; os palácios de exposição; as cidades gigantescas, irrefreáveis; os versos de louvor à máquina.

O que mais causava horror a esse capitalismo da absoluta dinâmica era a estabilidade. Para seus heróis, a segurança que ela oferece era a morte; um atestado de mediocridade, eco de um passado aristocrático que manteve o mundo idêntico a si mesmo durante quase um milênio. Os grandes capitalistas daquela era, cujo maior herói era o engenheiro, declararam guerra à estabilidade e à segurança. Buscaram o risco, quase a loucura. Derrubar e construir, invadir e conquistar, a qualquer custo, sem respeito por nada, nem por ninguém. Um mote seco e claro. Quem vivia segundo outro espírito encheu-se de horror. Guy de Maupassant, reza a lenda, almoçava todos os dias no Jules Verne, restaurante do segundo andar da torre, porque era o único lugar da cidade de onde não era obrigado a vê-la. Considerava-a uma aberração deplorável. Verdade ou não, o fato é que de lá ele não podia se furtar a contemplar uma antiga cidade sendo arrasada para dar lugar a outra, veloz e vertiginosa; uma cidade que não temia a aniquilação imposta pelo capital a seu quotidiano milenar.

Tudo isso, porém, ficou no passado. Esse capitalismo das sucessivas maravilhas resultou em guerras, revoluções reacionárias (sic), bombas de dizimar gerações e gerações. O homem que sobreviveu ao paroxismo ensandecido do modernismo envergonhou-se de suas ambições desabridas. Depois de Auschwitz, fez-se necessário construir um novo mundo, com um paradigma que se substituísse à voracidade. Qual é esse paradigma? Ora, é o oposto do anterior. Ou seja, o receio. Nosso tempo, assim, abriu mão da verticalidade, a não ser aquela comportada, dos espigões perfilados. Alguns brilhantes, outros opacos, mas sempre executados de acordo com as regras mais seguras da engenharia, com vistas a uma eficiência indigitada. Gigantes de concreto e vidro, enfim, mas com as pernas muito bem fincadas no chão. O maior dos males, valha-me Deus!, para nosso tempo, é a instabilidade. Uma doença cuja expressão mais assustadora é a inflação. O dito dragão é o equivalente econômico da erosão, no domínio moral, dos valores de um passado recente. Uma ameaça constante. Exige postura alerta e agressiva. Um contexto fundado sobre o receio de perder não pode, em hipótese alguma, tolerar a inflação.

A ambição vertical e demolidora, que as potências do passado abandonaram nas últimas décadas, subsiste apenas em países que, até há pouco, eram considerados pobres e atrasados. O carro-chefe desse ideal sobrevivente é, sem novidades, a China. A terra das antigas dinastias retraça o caminho do Velho Continente. Uma usina gigantesca, monstruosa, que inunda países e desloca povos inteiros, misturando e desmanchando seus tantos dialetos e costumes. Eis onde querem buscar sua energia. Um estádio embrulhado em cordas sintéticas, indevassável, indefinível, irreconhecível. Um palácio de esportes para esconder o louvor da derrubada e reconstrução. São os orientais, hoje, que não respeitam nada do que já há; pensam no que ainda haverá, e interpretam o presente como mera matéria-prima, tão bruta e maleável como a areia da praia.

Retornemos à torre Eiffel, construída para celebrar a Exposição Universal de 1889, realizada em Paris. Nesse gênero de evento, típico da belle époque, cada país exibia suas novidades mais impressionantes, para escancarar, diante de rivais do mundo inteiro, como era veloz seu progresso técnico. Não há nada parecido em nosso mundo. Há, sim, grandes feiras temáticas, em que as empresas montam suas barracas e alardeiam seus produtos, no esforço de garantir a eles um confortável naco do mercado. Essas feiras são, também, repletas de novidades, por certo. Mas são horizontais, comportadas. Vastas áreas protegidas da chuva, por onde uma multidão de consumidores pode passear sem receio de levar algum susto.

Não serão esses eventos tão bem organizados, eles que haverão de proporcionar a ocasião do nascimento de algo monumental, como as exposições do século XIX nos legaram a torre Eiffel. Nem quero insinuar que deveriam! Essa aí é monumento, logo símbolo, de outro tempo. Hoje, é administrada, e com grande competência, por uma empresa de capital misto cujo gráfico de lucratividade apresenta, há anos, “bons números”. Garante ao país a estabilidade de uma renda turística regular e farta. E, naturalmente, do merchandising. Esse aí, sim, é um grande símbolo e monumento de nossa era.

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A morada dos insumos

Tomara que eu não seja o único a se entristecer com a lembrança de algumas idéias que o último século aplaudiu longamente, como o princípio de Le Corbusier segundo o qual a casa é uma maquina de morar. Suspiro: no raciocínio do mundo ultra-industrial, o ser humano é um insumo de produzir. Você e eu, já sabemos, somos recursos humanos; o que não podemos esquecer é que, no frigir dos ovos, somos antes recursos que humanos. E podemos deixar nossa humanidade na soleira da porta ao entrar, façamos o favor.

Pois a Biblioteca Nacional da França está situada no meio de um punhado dessas máquinas de morar. Nelas, vivem centenas, talvez milhares de pequenos insumos felizes da vida, modernosos, hoje talvez menos contentes com a ameaça de verem evanescer seus empregos (nome que damos às linhas de montagem onde insumos desse tipo são utilizados). A própria biblioteca é uma máquina de sentar e ler, mas uma máquina que funciona muito mal, ou seja, é um desastre arquitetônico que merece um texto só para elencar a infinidade de seus problemas.

À noite, quando finalmente consigo vencer todas as etapas para sair da caverna de livros (já falei que é um desastre arquitetônico? Se já, peço desculpas), sou obrigado a atravessar um quarteirão enorme desses edifícios metálicos. Construídos como máquinas, lar de famílias e yuppies cuja estratégia talvez seja sentir-se em casa no escritório ou vice-versa. E me dá um desconforto, um frio na espinha, uma tristeza, como se uma epidemia de circuitos e transístores tentasse se apropriar da minha pobre carne ainda muito humana.

Tenho ganas de correr, chegar mais rápido ao buraco do metrô, ou desviar pela beira do rio. Ou ainda, tapar as orelhas e saltitar aos berros, renunciar à sanidade para guardar, ao menos, o lado biológico do que faz de mim um ser humano, seja lá o que isso for. Só fico aliviado quando estou enfim sentado ao fundo do trem na linha 14, a mais avançada da cidade, única em que a abertura das portas é automática e o condutor foi substituído por um software em funcionamento ininterrupto numa sala bem no centro da Terra. (Às vezes duvido que essa versão seja verdadeira. No centro da Terra? Uau!)

Não culpo Le Corbusier, é claro. Ele fez sua declaração nos anos 20, quando a ideia que se fazia da máquina ainda era de algo fechado numa sala, a ativar e desligar conforme as necessidades da produção, apuradas em grandes painéis estatísticos, que uma legião de especialistas controlava de um mezanino acima da fábrica, a decidir em que ritmo Carlitos teria de torcer suas porcas. Os arquitetos das gerações seguintes propuseram, e continuam propondo, suas máquinas segundo princípios de conforto e funcionalidade muito bem calculados, tão precisos que os contemporâneos de Le Corbusier não sonhariam. Nem mesmo Oscar Niemeyer, e talvez seja por isso que nosso gênio nacional desistiu da arquitetura para se tornar um grande desenhista de fachadas inverossímeis (mas eventualmente postas de pé por gente que não entendeu bem o princípio). Resultado: os prédios de apartamento de hoje são, muitas vezes, indiscerníveis dos escritórios.

Por sinal, aí está o mais curioso: não me incomodam tanto os prédios comerciais em grandes blocos de vidro, com suas torções futuristas e grandes jatos de néon, lisos e limpos, voltados para o céu, as janelas mais altas vedadas para impedir o salto dos banqueiros arruinados. Sinto-me perfeitamente confortável no meio desses espigões onde, de fato, a pessoa é um insumo, um recurso humano a ser administrado com tanto zelo quanto o suprimento de papel para as impressoras do departamento. Se vou a La Défense, uma espécie de Berrini que funciona, a oeste de Paris, a única coisa que me incomoda é o monstruoso polegar que César (o escultor, não o ditador) implantou no meio de uma praça de concreto (outra das manias contemporâneas que não compreendo). Mas essa é uma obra de arte feita com o propósito claro de me perturbar, sugerindo um titã soterrado e doido para ter sua vingança. Não creio que qualquer um dos insumos ameaçados desconfie do que o espera quando passeia em torno da escultura.

A pergunta que se impõe agora é: por que a arquitetura metida a futurista incomoda tanto na residência e tão pouco do escritório? Talvez porque a fachada e as paredes manifestem a mesma dinâmica do tempo daquilo que se passa em seu interior. O escritório, o edifício comercial, existe em função do futuro: o lucro é sempre futuro, os negócios que interessam são sempre os do futuro, o produto que importa é o que vai ser lançado no futuro. O lucro do passado não importa mais, senão como ativo para novos investimentos (no futuro); os negócios do passado caducam tão logo desaparece seu potencial de gerar receitas no futuro; o produto do passado é encalhe, vergonha, fracasso. A aparência, aliás toda a atmosfera das construções onde se passam os negócios, precisa ter um aspecto de amanhã, como se para lembrar a seus ocupantes que é para o amanhã que seus olhos têm de estar voltados. Sempre, sempre, sempre.

A residência não existe em função do futuro, mesmo se é necessário garanti-lo, migrando diariamente para o outro lado da cidade em busca da comida que se colocará na mesa. Mas isso nem chega a ser presente, porque a comida que realmente interessa é aquela que se come agora, ou no máximo enquanto ela durar na geladeira. Comparado aos grandes negócios e ganhos que se preparam nos escritórios, o futuro da vida habitacional e humana parece pálido e banal: o envelhecimento e a morte, a vinda e o crescimento das crianças. Esse futuro é tão inevitável e corriqueiro que não vale como função para a existência.

É por isso que a vida nas residências é voltada em outra direção. É ela que trata do presente. De reproduzir a vida, garantir o ciclo a partir do qual, em outro canto da cidade, uma fixação com o futuro poderá brotar, como que espontaneamente. E para quem sentiu falta do passado, calma: reproduzir a vida significa trazê-la do passado para o presente. É entregar, por exemplo, às crianças um pacote com o mundo tal como ele era antes que elas chegassem, é recuperar na memória ou no diálogo as ferramentas para lidar com a incerteza que o tempo apresenta à medida em que escorre.

Até coisa de duzentos anos atrás, isso era tudo que existia. É por isso que antigos eram tão apegados à tradição: suas vidas se fundavam na construção reiterada de um tempo passado. Depois vieram a modernidade, a indústria, a comunicação de massa. Quisemos fundar nosso mundo num olhar para o futuro. E de fato o fundamos. Mas o sistema vem com uma falha esquisita, um esquecimento, alguma coisa que falta. Só é possível manter seu funcionamento enquanto as máquinas estão ativas. Deixados à própria sorte, os insumos vivos retornam a seu estado bruto, voltados preguiçosamente para seu presente e seu passado. São saudosos, melancólicos, tacanhos, e se usados em excesso, podem acabar reacionários. Sim, o obscurantismo nada mais é do que a fadiga do material.

Para garantir o bom movimento em cada instante da existência de seus recursos, a lógica futurista precisa se assegurar de que as máquinas nunca estão desligadas. Sempre há alguma por perto. Encerrado o expediente, largadas as máquinas de produzir, toma-se a máquina de transportar, para a máquina de morar, com a máquina de divertir e a máquina de informar, antes da máquina de comer e, aos sábados, a máquina de se embebedar. Le Corbusier, quando imaginou sua singela maquininha, certamente não esperava tanto.

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O mito dos especuladores

No Olimpo, Hera andava enfezada com o comportamento exuberante de Poros. Ele saltitava, cantarolando, por entre as arcadas da morada dos deuses, como se fosse o dono do pedaço. Distribuía crédito a todos os mortais e todos os imortais, sem comprovação de renda, sem nada. A esposa de Zeus, sempre atenta, estava convencida de que aquele mito menor tinha planos secretos de subverter a boa ordem do universo, dando a entender a qualquer descendente de Cronos que bastaria especular um pouquinho com derivativos, que a dominação do Cosmos estaria ao alcance da mão. Como se não bastasse, o safado ainda estendia suas garras ao mundo dos mortais: manipulava, sempre para cima, os índices das Bolsas, os juros do Terceiro Mundo, o valor do metro quadrado e assim por diante.

Pouco adiantou reclamar com o marido. Zeus, conforme ela foi descobrir mais tarde, tinha uma carteira repleta de ações, participava de empreendimentos por toda a Hélade e, além de decidir, em grande medida, o destino dos mortais, ainda dera como garantia para seus investimentos na Terra, justamente, algumas terras em Atlântida cujas escrituras, tantos séculos passados, ainda estavam em seu nome. Assim, o maioral do Olimpo não deu ouvidos à esposa sempre atenta (mas sempre um poço de reclamações) e sugeriu que ela deixasse em paz o pequeno deus da abundância, esse simpático Poros que, com seus sorrisos e seus fundos de investimento, fazia a alegria de tantos deuses e tantos homens. A hybris se generalizava no Universo. A tragédia crescia em conflito dramático. Mas o Olimpo parecia não se importar.

Hera, como era de seu feitio, não se fez de rogada. Pediu a algum daimon que seguisse de perto o suspeito e não demorou a fazer uma descoberta assombrosa: o insidioso Poros andava na companhia da pequena Ate, personificação do espírito da loucura. A deusa matou a charada: desde o episódio em que, bêbado, se deixara seduzir por Pênia, a repugnante imagem da pobreza absoluta, Hera já sabia que o engraçadinho abundante não conseguia resistir a um rabo de saia. Certamente a Loucura havia levado a Abundância à loucura, só poderia ser. Mas o espião da grande deusa se apressou em desfazer o mal-entendido: não era ela que o controlava; antes, era o contrário. Mediante um pagamento exorbitante de néctar e ambrosia, ela se insinuava no inconsciente de todos os, na falta de palavra melhor, clientes do grande consultor econômico. Sob o efeito encantador de Ate, deuses e mortais investiam o que tinham e o que não tinham, endividavam-se, empenhavam até as calças, no caso dos homens, ou as auréolas, no caso dos deuses.

Terrível! Aquela era a maior afronta que Hera jamais constatara. Um imortalzinho qualquer, desses que até esquecemos quem tem por pais, que não entra na lista dos doze do Olimpo, que não é ninguém, que não é nada, conseguia engrupir reis e generais, presidentes de bancos centrais, consultores, analistas, todos os deuses do Olimpo e o próprio Zeus?! Onde já se viu! Aquilo tinha de acabar o quanto antes.

Ela sabia que não poderia esperar nada da maioria dos grandes imortais. Sobrava apenas uma amiga, com quem ela poderia contar sempre: a sábia Atena, que não era de se meter em tolices como essa; aliás, em tolice nenhuma. Hera foi, assim, a seu encontro, e ficou contente de saber que seus pensamentos recentes convergiam: aquela situação era ridícula e insustentável.

Juntas, matutaram por horas, deitadas nas nuvens, até que Atena encontrou a solução. Dois rapazotes, ela explicou, também estavam por conta com aquela euforia estúpida, aquela confiança desabrida, aquela falta de bom senso. Alegria, alegria demais. Eram eles Fobos e Deimos, os filhos gêmeos de Ares e Afrodite, o casal-problema.

Mandaram que o daimon os chamasse. Apareceram em poucos minutos, os olhos injetados de sangue, perguntando, em suas vozes ásperas de adolescentes rebeldes, “o que tá pegando”. As duas senhoras explicaram o que queriam deles: que acabassem com essa palhaçada de uma vez por todas. Que Fobos inspirasse o medo nas bolsas de todo o universo, que Deimos disseminasse o terror por todos os governos, instituições, empresas, lares, partidos. Só assim o equilíbrio poderia se restabelecer.

– Falou, tias! – E foram-se os garotos, ávidos para cumprir uma missão que parecia mais uma concessão para se divertir. Contentes, Hera e Atena, a primeira irrequieta, a segunda altiva, ficaram observando a partida de seus dois expedicionários, com seus bonés virados para trás e as calças com as cinturas no meio das coxas, deixando aparentes as cuecas samba-canção.

Não poderia ter sido melhor. O pânico se instalou como há muito não acontecia. As quedas nas cotações refletiam o absurdo que havia, no fundo, em seus índices: vinte por cento aqui, dezoito ali; em casos particulares, até oitenta, quase noventa. Bancos quebraram, Hefesto pensou em fechar sua oficina, Ades não conseguia equilibrar o orçamento de seus batalhões. Hera ria à toa, olhando de esguelha o ar enfurecido se seu marido, que, à beira da falência, descontava a ira na cabeça dos pobres mortais, com sua carga amedrontadora de relâmpagos (foi essa tempestade que salvou, afinal, os negócios de Hefesto).

Na Terra, as autoridades se reuniam e falavam línguas incompreensíveis, discutindo os bilhões, os trilhões, quanto seria necessário torrar para que as dívidas impagáveis fossem pagas ou, pelo menos, não colocassem em risco a solvência dos maiores donos do planeta. A dança das moedas virou um scherzo ensandecido. Quem deveria explicar estava pedindo explicações e ninguém queria mais emprestar, produzir, fazer nada. Bagunça absoluta. E como Poros não conseguia mais honrar seus compromissos, após o estouro de sua bolha olímpica, a própria Ate resolveu se vingar, levando o mundo inteiro à loucura. Hera ria à toa.

Mais alguns dias e o malfeitor veio, em toda humildade, pedir clemência à dupla de deusas que lhe passara uma rasteira. A esposa de Zeus, que já não agüentava mais aquela história, estava prestes a cometer a impostura de erguer a mão para lhe aplicar um sopapo, a seu ver, muito bem merecido. Mas o desejo de saborear o triunfo falou mais alto: ela resolveu criar um suspense, estendeu um pouco mais o silêncio que apertava a garganta do delinqüente humilhado.

Foi tempo demais. A seu lado, como se tivesse a intenção explícita de afligi-la, a impassível Atena se colocou de pé e, enquanto golpeava com o cabo da espada seu grande escudo trabalhado, proferiu a sentença:

– Não serás punido, nem o serão suas vítimas incontinentes, com a condição de que vós todos renuncieis à exuberância inconseqüente, à cegueira derivativa, à especulação fictícia, à manipulação de dados, ao consumo fútil e predador. Fazei isso e sereis anistiados.

Faltou tempo para protestar. Antes que Hera pudesse abrir a boca, Palas Atena fez entrar o daimon, que conduziu para fora do grande salão oval um Poros lívido, suando frio, todo mesuras de alívio e agradecimento. Depois de todo o mal que ele causou, por Cronos!, sairia impune.

Hera sacudia os ombros de Palas Atena:

– Como você foi anistiar esse criminoso?! Como a especulação sem limites ficará sem punição?! Isso é um absurdo! Você nem me deixou falar!

Mas a sábia deusa, a grande vencedora, a maioral, não fez mais do que puxar seu cachimbo. Hera não acreditava que, naquele momento de hostilidade tão patente, sua antagonista amassasse fumo, como se nada acontecesse. Na Terra e no Olimpo, os índices tinham uma reviravolta: oito, nove, quinze por cento de alta nas Bolsas, as moedas de volta à estabilidade, até mesmo algumas promessas de investimento, ainda tímidas, sendo aventadas cá e lá, operadores e corretores caindo na risada com o susto que passava. Em resumo, um desacato.

– Olha só o que você fez! Agora eles vão achar que agiram certo!

Atena, cruel: uma resposta monossilábica:

– Vão.

Hera arrancava os cabelos. Sabia que Zeus voltaria a rir à toa, de olho em seus títulos que se revalorizavam. A ciranda voltaria a rodopiar em velocidade máxima. Poros e Ate reatariam, e quem sabe que raio de pequeno deus nasceria dessa união diabólica. Ela tinha de admoestar a companheira mais uma vez, entender que tática velada poderia ser aquela, que abria mão de uma punição certa e justa, já em curso, em troca de nada. Mas não sabia o que dizer. Só encarava o rosto tranqüilo de Atena, soltando anéis de fumaça em ritmo espaçado. Afinal, foi a própria Palas que falou, com voz lenta e sem paixão, ciente do nervosismo da outra deusa.

– Vão achar que fizeram tudo certo. Vão se entregar de novo à orgia. Vão baixar a guarda. Vão queimar todas as fichas. Vão ficar indefesos.

Hera começava a se interessar pelo discurso. Atena prosseguiu, com mais um par de frases irresistíveis:

– Vão estar no ponto mais vulnerável a Fobos e Deimos. Mas, veja… Fobos e Deimos estão a postos, prontos para entrar em ação mais uma vez.

Hera assentiu:

– Para matar!

Para matar.

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De alguém sem força para escrever

Sábado bendito, o mais aguardado de tempos, termo para uma semana atroz, dias de violenta fadiga, em que pareciam se derreter as estruturas fundamentais lá dentro, em que mesmo balbuciar o relato de nossos dias, à mesa do jantar, exigiu a valentia de um Leônidas, em que, por instinto, nos pusemos a perguntar de onde vem essa energia misteriosa que consumimos ao pensar, conversar, escrever.

Tem sido assim a semana, ou melhor, foi assim, porque ela já vai terminando, para nosso grande alívio. Uma série de feiras numeradas, em forma de ladeira íngreme a ser escalada, lodosa como depois de um pé d’água escabroso. Compromissos e obrigações cumpridos pela metade, sempre em marcha forçada, sempre pelo último suspiro de fôlego.

E mesmo assim, a cada momento, a questão segue a se esgueirar por entre a massa cinzenta falida e a branca esgotada: onde estará a fonte da força ausente? Como buscá-la de volta, conclamá-la a não desertar, obrigá-la a apresentar-se em uniforme impecável, conforme o acordado e necessário? Há coisas não precisa me dizer, já estou bem ciente, obrigado que não se controlam. As vias que nos alimentam, e falo aqui de energia mental, se abrem e fecham, assim é e pronto.

Mas o entorno, essa entidade tão nebulosa, embora concreta e pesada, não parece ter tanta consciência do inviável. Pior, exerce todo seu poder para obliterar nossa própria consciência. Uma lojinha, por exemplo, não pode deixar de vender seus legumes, creio eu, com base na alegação de que o asfalto das estradas se encontra um tanto esfalfado, désolé. Sendo assim, neste universo de planilhas de horário, prazos, vencimentos, neste mundo de anos que, ao passar, levam consigo a perspectiva de fazer tais e tais coisas adoráveis, que horizonte haverá para quem pretende, ou pretenderia, respeitar as idiossincrasias daquilo que, dormindo em nós, está além do controle!

Se tudo está marcado, determinado e, dependendo do ângulo pelo qual se olha, “precificado”, vá dizer ao famigerado entorno, ao universo de planilhas, ao mundo das datas idas, aos departamentos do Estado, aos gestores do mercado (ah, que saborosa vingança, na forma do cataclismo desses dias!), vá dizer a todos esses mamutes que a energia está em falta… Vá, pois, lhes pedir um minuto! Uma pausa para beber água!

Mas quando for fazê-lo, não se esqueça de me convidar para acompanhá-lo, para que eu possa rir quando eles rirem. Não com eles, é claro, mas da expressão em seus rostos, as máscaras contorcidas e afogueadas, explodindo em jorros de saliva, içada de gargantas que ainda exalam a pestilência nauseante de almas mal digeridas…

Desculpe rir do grotesco das figuras do tempo, da ordem, do mercado, do poder, da lei. Desculpe, sei bem que são fenômenos da mais grave seriedade, para o bem e para o mal. Mas é difícil escapar aos efeitos da imagem. Gordas figuras, pálidas como trutas descamadas, sacudindo-se em suas cadeiras, com as veias do pescoço saltadas e roxas, os olhos a ponto de escapar das órbitas…

Controle o asco e o despeito, faça o favor. Ora, não sou eu que estou nesse estado? Não era eu quem estava a ponto de redigir uma petição, para remeter aos responsáveis dos céus, na tentativa de obter a graça de um dia suplementar entre a quinta e a sexta (diego-feira?), só nesta semana, que eu prometeria de empregar no remanejamento de minhas funções mentais? Quem passaria pela humilhação perante a insensível realidade, em assembléia de suas manifestações mais presentes, seria ninguém menos do que eu mesmo, pois sim. Então se me ponho a rir, não vejo por que alguém ficaria ofendido.

Gargalhar no cadafalso é o último trunfo do condenado. Confunde as impressões do carrasco e as expectativas da turba sedenta de sangue. Tomba-se, sim, mas com um pequeno triunfo entre a corda e o pescoço. No meu caso, também é uma resposta às provocações de minha própria mente, ao menos sua parte inconsciente, que insiste em ficar passando diante de meus olhos, à noite, antes dos sonhos que esquecerei em seguida, a imagem de tantas coisas que eu poderia e deveria fazer, como se me convidasse a levantar da ilha de calor que é a cama neste outono rigoroso, para me por a tentar resolver um pepino, adiantar um projeto, publicar uma crônica.

Como se fosse possível, cabeça sardônica e cruel! O dia inteiro, tudo que eu poderia pedir seriam essas imagens e, pelos céus, juro que pedi! Mas elas me vêm quando nada posso com elas, deitado, prostrado, incapaz de deslocar a ponta do mais leve de meus dedos. Pois bem, eis minha resposta a essa semana moedora de neurônios, que carregou para campos mais férteis a energia de que tanto necessitei: uma risada amarga, alaranjada, querendo-se reverberante e ameaçadora, mas mais provavelmente tímida de cansaço.

É a reação mais orgulhosa que ainda está em meu poder, enquanto se aproxima um sábado de pleno alívio, porto abrigado depois de um mar de ondas grossas e ventos que rasgaram minhas velas. Se voltar a energia na próxima semana, pensarei em algo melhor. Até lá, asseguro que é com uma sinceridade fora do comum que desejo a você, bravo leitor que chegou ao final deste texto estrambótico, um excelente final de semana.

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barbárie, crônica, crime, desespero, deus, doença, escândalo, frança, guerra, história, imprensa, ironia, obituário, opinião, pena, prosa, reflexão, tempo, transcendência, tristeza, vida

Muito bem. Acabou o mundo?

É hoje o dia do buraco negro. Posso programar o texto para sair quando o mundo já não for mais. Sem preocupação com a gramática e a pontuação. Com palavrões e ofensas vulgares. Sem nexo ou assunto. Eu já estarei sugado, minha matéria e minha luz, estarei indefeso, atado a um campo magnético que comprovou o que as religiões já diziam: somos todos um só.

O grande círculo suicida, que não é de giz nem caucasiano, fica logo aqui ao lado. Se pegasse um trem, não desses comuns, mas dos muito velozes, eu poderia ter descido até a Suíça para ser o primeiro a morrer. Que delícia, aniquilar-se à beira do lago Léman! Que os cientistas tenham colocado a humanidade em risco, não discuto. Mas você há de conceder que eles sabem se acabar com classe.

Quanto tempo o buraco negro leva para sugar todo o planeta? A essa altura, é uma pergunta tão relevante quanto qualquer outra. Estamos todos condenados a sumir na consistência pastosa do espaço-tempo, pelo que entendi. Sendo assim, discernir os milésimos de segundo entre minha morte e a dos meus amigos, do outro lado do oceano que vai deixar de existir, conta tanto quando decifrar, por exemplo, as estruturas da percepção. Isto é, a rigor, não conta nada, porque a resposta não vai chegar a tempo de nos esclarecer ainda em vida. Mas convenhamos que é um jeito de passar a espera e atenuar a apreensão.

Noves fora, segue tudo no mesmo. Construir um acelerador de partículas gigantesco é tido por muita gente boa como brincar com o fim do mundo. Concordo, mas tenho que deixar minha ressalva, se permitem os distintos. Que bom abreviar o curso da história. Acaba agora o rame-rame de flertar com a morte, que é no fundo o propósito inconsciente de todo o engenho humano. E terá acabado como acabam todas as coisas: no estouro de seu paroxismo, como os fogos de artifício de Copacabana. Agora que podemos dar cabo de tudo isso, sou a favor, e que seja logo de uma vez.

Só me incomoda uma coisa. A incerteza, a baixa probabilidade, a quase garantia de que, em vez de desaparecer, vamos conhecer mais alguns detalhes sobre os fundamentos do universo. Perdoe a sinceridade, mas assim não vale. Não é isso que queremos conhecer. Já que um possível Armagedom está marcado para hoje, eu teria preferido que me dessem garantias:

“Escute, amigo, o mundo vai acabar, sim, no dia 10 de setembro, 2008, a tal hora”.

Eu teria largado tudo. Você não? Eu lançaria uma sonora banana ao senhorio, tomaria a companheira pela mão, mesmo que ela nem soubesse o que está acontecendo, e partiria em viagem. Dez dias é tempo bastante para conhecer muita coisa. Bastaria alugar o melhor carro disponível, já que não haveria o risco de ter de pagar por ele. Acho que não precisaria nem de mapa rodoviário.

Só é triste não poder voltar e contar aos amigos o que vi. Mas como, tudo terminado, meus ouvintes estariam tão mortos quanto eu, pensando bem, não faz mal. Quem sabe no outro mundo, não? Poderíamos passar a eternidade discutindo viagens. Que maravilha.

Mais uma grande maldade que eles aprontaram, esses físicos sem coração. Saiba você que o evento programado para hoje é só um “teste preliminar”. Que decadência, esse mundo. Bilhões de anos de evolução, para terminar durante um “teste preliminar”. Que fim melancólico, que ironia infeliz. Tenho certeza de que, se pudesse escolher, nosso universo teria pedido para acabar (já que insistem em aniquilá-lo) no dia 21 de outubro, essa sim a data de inauguração oficial do tal acelerador de partículas, quando as coisas vão começar a acontecer de verdade.

Seria inesquecível, se é que alguém pode se lembrar do fim do mundo. Centenas de físicos, centenas de políticos, um punhado de operários, uma sigla (LHC) e um nome pomposo (Large Hadron Collider, ou grande aparelho para jogar partículas hipotéticas umas contra as outras). Sobe um grande líder para dar a ordem, suponho que Sarkozy, que está em todas. Ele faz um discurso com seu habitual olhar de peixe morto. Os cientistas estão impacientes, os operários entediados.

Os jornalistas vão filmando, seguros de que haverá o noticiário da noite. Afinal, a chance de uma falha que cause o tal buraco negro (na verdade, um mini-buraco negro, seja lá o que for isso), ou um strangelet (se existir mesmo e seja lá o que for), ou qualquer outra porção de matéria mundicida, é de uma em dez mil. Melhor garantir a matéria (sem trocadilho) e alguns bons ângulos.

Mas, de repente, algo vai errado. Sem delongas, acaba o mundo. Um estouro: BUM!…? Um murchar: pifff…? A substância do universo escoando pelo buraco negro como a água de uma banheira: grolllll…? Boa pergunta, agora fiquei curioso sobre a sonoplastia do Juízo Final. Espero honestamente ter muito tempo ainda para esse tipo de especulação estéril. Aliás, boa para bares.

Porém, é uma pena, mas este texto não pode continuar. Que sentido teria escrever depois do fim do mundo? Aliás, não só não teria sentido: também não seria possível. Mas, como não espero que ele chegue a ser lido, uma vez que estaremos todos aniquilados nos confins do universo, escrevi de qualquer maneira, sem prestar atenção, sem estrutura, sem nada. Espero que não esteja ilegível demais.

No fundo, é a minha forma de dizer que, mesmo confrontados com a possibilidade de uma morte ignóbil, aliás ridícula, devemos sempre ousar e tomar riscos. E desta vez, nunca desejei tanto alguma coisa quanto a vergonha de expor um texto escrito às pressas, se para isso eu tiver sobrevivido ao desaparecimento puro e simples. Eu e o mundo inteiro, é claro.

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arte, Brasil, direita, esquerda, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Informação e ânimos exaltados

Todos+os+homens+do+presidente+capa
Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outros, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas crônicas da Folha, enviadas sempre com atraso, terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox News é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja autobiografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem “mentiras”. Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade.

E, pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: “Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!” Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de “denúncia”. Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso “fontes ligadas ao palácio afirmam que…”, os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama “jornalismo”. Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

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Um vício é um vício

Caneca
Ouvi dizer que parar de fumar é muito difícil. Não sei, jamais fui fumante. Comprar cigarro, observe, nada mais é do que transformar dinheiro em fumaça. Sem falar no cheiro que impregna as roupas e os ambientes, a tosse, o câncer. Fico imaginando o desespero de tantos colegas durante uma longa palestra da qual não se pode sair para aliviar o vício, e a idéia me parece, menos que triste, engraçada.

Existem outros vícios, sim. Eu não poderia escapar de todos. Está para nascer o homem que vive sem obedecer a alguma substância, impulso ou idéia. Mas estou livre dos principais, acredito. Ao menos, dos mais perigosos. Não consumo químicos ilegais. Minha relação com o álcool é plenamente gustatória. Que culpa tenho, se há uma variedade tão grande de bebidas com valor gastronômico? Sói prová-las o mais rápido possível. E eu as provo. Não a ponto de ser alcoólatra, por favor.

Há um vício, porém, de que não consigo me libertar, e sei que é mortal para o organismo. Uma substância cheirosa, líquida, negra e quente. Uma frutinha vermelha que enriqueceu muito latifundiário brasileiro. Vendida para o mundo inteiro, torrada e moída, fervida e coada, servida no desjejum ou após as refeições. Pelos céus, eu admito, não consigo passar o dia sem tomar café.

Começou quando decidi que deveria escrever sem parar. Foi, digamos, uma decisão leviana de juventude. Acreditei que pudesse ser um desses autores que se debruçam sobre o teclado na hora do almoço e só se levantam para o café-da-manhã (com trocadilho). Horários definidos por e para outras pessoas, porque, com esses artistas geniais e incompreendidos, a comida serve apenas para não cair doente sobre uma página incompleta. Esses abnegados não dão importância às coisas boas da vida. Não buscam prazeres, nem glórias. Querem apenas fazer sua literatura… e assim por diante.

Jamais consegui. Tentei por alguns dias, mas sempre ocorria uma dessas três coisas: 1) Algo me puxava de volta para o mundo exterior, um jogo de futebol, uma morena passando na janela, uma goteira pingando na cozinha. Qualquer coisa. 2) Eu me via sem assunto. Queria escrever, mas, bolas, sobre o quê? Com que palavras? Tentava escrever apenas frases, até que delas saísse algum tema. Não funcionava. Ou as frases eram ruins, ou o assunto era banal. 3) Eu tinha sono. Dormia na escrivaninha, acordava, dormia de novo. Escrever é algo muito chato, já aviso a quem quer começar. Ver televisão é mais interessante e, se dormimos, não sentimos culpa.

O café, insumo insidioso, ofereceu-se como solução. Prometia mil maravilhas. Que me deixaria acordado, alerta, esperto. Que faria de meu cérebro uma máquina incansável, sempre produzindo idéias, frases e imagens. Que eu me tornaria o mais produtivo dos homens, preenchendo laudas e laudas com letra miúda e nervosa. O café, mais do que as drogas, o álcool ou o tabaco, é o segredo dos grandes autores. Acreditei nessa história, caí no conto.

Não demorou para que ele se tornasse minha fonte principal de alimentação. No trabalho, eu afundava o dedo no botão da garrafa térmica. Duas, três vezes por dia. E todos comentavam. Cada colega preparava para si uma pequena xícara a cada manhã. Quanto a mim, era um copo cheio até a borda. Mais de uma vez, vi meu chefe meneando a cabeça, em negativa ressentida. À tarde, quando a garrafa estava vazia, eu quase me recusava a continuar prestando meus serviços. O que me impedia era o medo de ser mandado embora. Sabe como é a situação, a coisa não está fácil para ninguém.

Há anos, eu me arrasto para fora da cama, esbarro em todos os móveis, vou até a cozinha e, em gestos de cágado, preparo a cafeteira. Espalho-me no sofá, à espera, ainda sonhando, os olhos bem atados. Quando ouço o chiado da bebida pronta, não sei explicar o que se produz em mim. Desperto imediatamente e pulo sobre ela. Bebo tudo de uma vez, e só daí parte o dia. Minhas roupas cheiram a café. Meus lençóis, idem. Minha mulher, às vezes, tem insônia, apenas da essência que a roupa de cama exala. E olha que ela também é viciada, e já o era antes de nos conhecermos.

Parar parece impossível. Um dia sem café corresponde a um dia como morto-vivo preguiçoso, mais morto do que vivo. Não quero conversar, mal cumprimento as pessoas, a luz do sol me incomoda. Arrisco dizer que é como se nesse dia eu simplesmente não tenha sido. É um vão na minha existência, a negação da continuidade do tempo.

Pois bem. Há coisa de uma semana, decidimos, juntos, reduzir o consumo da bebida. No lugar das duas canecas diárias, uma xícara. Pois bem. Funcionou no primeiro dia. No segundo, fui acometido da dor de cabeça típica dos dias de pouco café. Resisti bravamente. Depois, vieram os dias cheios de aulas e trabalhos por entregar. Tomamos duas xícaras, cada um. Uma escorregadela, certamente. Mas nada que se compare às canecas transbordando de outrora.

Tenho suado. Tenho tido pesadelos. Não tenho conseguido manter o ritmo de leitura e estudos. Um vício é um vício. Mas hei de resistir. Mesmo se, hoje, algo tenha dado errado. Escrevo com a caneca amarela ao lado do computador, oferecendo-se como prova de meu fracasso. Mas hei de resistir. Parar de fumar, dizem, é bem mais difícil. E tem muita gente que consegue.

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