arte, barbárie, Brasil, cinema, crime, desespero, opinião, paris, roubo, São Paulo, tristeza

Nada me tira do sério como um filme picareta

Fogueira Para Um Mau Filme
Minha maior dificuldade na hora de falar de filmes que vi, livros que li, músicas que escutei e por aí vai é que não consigo ser elegante quando me sinto agredido pelo autor. Friso que isso é diferente de não gostar: posso sair de uma sessão com a impressão de que aquele filme não era para mim; posso, ao terminar um livro, considerar o autor fraco e o enredo desinteressante; posso não ser atraído por um ritmo ou uma melodia. Em todos esses casos, até que tudo bem. Não gostei e ponto; que outros gostem, não faz mal, e viva a democracia.

Coisa muito diversa é quando fica patente, ao subirem os letreiros (no caso do cinema), que alguém ali quis me fazer de otário. Pode ser o diretor, o roteirista, o protagonista, pouco importa. Aceito com o coração aberto uma produção pobre, até mesmo, em alguns casos, descuidada. Pontos de vista estéticos, mesmo filosóficos, muito diferentes dos meus, idem. Picaretagem e cretinice, jamais.

Mas nem sempre a gente vai ao cinema sozinho. Podemos ir, vamos supor, com a namorada e um grupo de amigos. Podemos ser todos confrontados, juntos, com um filme que não tem o menor respeito por nossa inteligência, paciência, tempo, dinheiro, enumere o que quiser. Podemos todos sair revoltados da sala, querendo o sangue de quem cometeu o crime e de quem o financiou (grande chance de terem sido nossos impostos). Mas, como estamos do outro lado do oceano, não podemos fazer nada. Sob efeito da irritação, a namorada e os amigos só podem se voltar para você e inquirir:

– E então, blogueiro? Vai escrever o quê sobre essa maravilha?

Você explica aquilo que eu já disse: não consigo ser elegante ao desancar um filme. Tampouco estou disposto a abrir mão da elegância. Melhor calar, principalmente porque o filme em questão merece todos os adjetivos impublicáveis que eu poderia elencar. A namorada e os amigos fazem cara feia. Insistem, você se nega. Finalmente, cede um pouco, promete pensar, mas só na esperança de que eles esqueçam o assunto.

Pobre esperança! No dia seguinte, os amigos voltam à carga. Pensou? Escreveu? Você fica encabulado ao admitir que não. As massas, que é o que você gostaria que fossem sua namorada e seus dois ou três amigos, o conclamam a deixar de tolices e descer a lenha no tal do filme. Você, que é inflexível como chiclete, acaba cedendo.

Muito bem, chega de nariz de cera: depois de ver A Via Láctea, juro pelo asfalto da Paulista que nunca mais assistirei a um filme de Marco Ricca. Não vou chegar a desejar, como esbravejou uma desconhecida na poltrona à minha frente, que ele queime lenta e dolorosamente nas chamas do inferno. Verdade que algo parecido chegou a passar pela minha cabeça, mas é demais. Ou sou eu que sou condescendente demais. Por outro lado, bem que os negativos desse filme podiam queimar, e nem precisa ser no inferno. Basta que eu não corra o risco de, um dia, sem querer, topar com um trecho na televisão.

Não sei o que me levou a trocar um dia de sol no cais do Sena por um filme do Marco Ricca. Por acaso eu não sabia que ele é uma espécie de anti-Midas cinematográfico? Aliás, teatral também. Tudo em que mete a mão vira lixo, para não usar um termo deselegante demais. O problema é que, de uns tempos para cá, a figura resolveu se meter a fazer filmes intelichentes. Por quê, meu Deus?

Assim como no último, Crime delicado, o próprio Ricca interpreta um cara intelichente e atormenta-a-a-ado, pobrezinho. Mas é praticamente a mesma pessoa, para não dizer que é o próprio Ricca. No outro, era um crítico teatral; neste, é um escritor frustrante, isto é, frustrado. Tudo bem, a produtora é dele, o dinheiro veio sei lá de onde, mas está na mão dele e ele faz o que quiser. Pode até meter uma câmera em close em cima de si mesmo durante uma hora e meia e obrigar o público a ouvir seus poemas mal recitados enquanto perdigotos se espalham pela tela. Excelente programa, e peço perdão pela imagem um tanto repulsiva.

Desculpe estragar a surpresa do final, mas, bom… não é surpresa nenhuma, então não tem problema. A história foi a seguinte: um belo dia, alguém deve ter montado Vestido de Noiva (Nelson Rodrigues) em São Paulo, e convidado Marco Ricca para a estréia. Grande erro. Ele gostou da idéia de alguém que é atropelado e delira entre a vida e a morte. Só esqueceram de avisar a Marco Ricca que Vestido de Noiva é uma obra-prima porque Nelson Rodrigues é um gênio. E não basta enfiar no filme umas cenas metidas a poéticas, uns diálogos metidos a intelichentes, uns flash-backs e outros truques banais para tornar um filme genial e seu produtor, um gênio.

É preciso um algo a mais. E, com todo respeito à Alice Braga, que esteve bem em outros filmes, e ao sobrinho da Daniela Thomas, cujo nome me escapa, maus atores não são esse algo a mais. Trilha sonora banal e, ao mesmo tempo, metida a besta, muito menos. Uma súbita, desnecessária e muito mal executada reconstituição de época, então, nem merece comentários.

Talvez Marco Ricca tenha buscado a polêmica. Talvez para alavancar seu nome, o que explicaria que apareçam, logo ao final da última cena (talvez para não dar tempo ao púbico de escapar), estourando o tamanho da tela, as dez letras que o constituem. Como se dissessem: eis o culpado! Ecce homo, para ser tão pedante, ou melhor, intelichente quanto o filme. Mas esse desígnio também deu com os burros n’água: não há polêmica alguma, pelo menos na sessão em que estive, com uma sofredora centena de pessoas, o veredito foi unânime. Quem não se levantou a meio filme fugiu imediatamente ao final. Exceção feita, é óbvio, para os que dormiam.

Nenhum amigo lhe avisou, ao ver o copião, que o filme é vergonhoso? Que sua tentativa de se mostrar intelichente redundaria em um papelão histórico? Será que ele mesmo não percebeu? Agora estamos nós, pobres cinéfilos, obrigados a engolir um tijolo. Vendido para o mundo inteiro. Imagino o dono de uma sala de exibição estrangeira que presencie um desastre tamanho. Vai certamente pensar: “nunca mais penso em comprar um filme brasileiro…” É que o estrangeiro não sabe discernir nossas produções umas das outras. Ele não pode, como é meu caso, deixar de ver só os filmes do Marco Ricca. Vai acabar largando tudo. Uma pena.

Deixe ver se tenho mais alguma coisa a comentar sobre esses rolos de filme jogados fora… Ah, sim: antes de escrever uma cena que se passa na Livraria Francesa do centro de São Paulo, não custa dar uma passada lá. Eu sei que o centro é de difícil acesso, é feio, é sujo, é perigoso, é tudo isso e muito mais. Mas pelo menos não veríamos pessoas procurando (e o pior, encontrando) Drummond, Bandeira e João Cabral no original, numa loja que só vende Prévert, Desnos e Mallarmé. Outra solução, se a idéia era filmar lá dentro, seria simplesmente não dar um close no painel da loja. Pode parecer intelichente ter no filme um diálogo na Livraria Francesa. Mas, puxa, com uma gafe dessas, acaba ficando estúpido.

Chega de ser deselegante. Talvez eu devesse fazer um artigo inteiro para as boas novas, mas ora, tarde demais. Vai só um parágrafo, e bem rápido. Hoje, dia 12, este blog completa dois anos de existência. Nesse meio-tempo, ele mudou de cara algumas vezes, até que, por fim, mudou de casa. E cresceu. Pouca coisa, mas saiu do zero! Longa vida ao Para Ler Sem Olhar! Hip-hip, hurra!

Padrão
Brasil, crônica, escândalo, ironia, lula, opinião, Politica, reflexão

O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

Padrão
direita, eleições, esquerda, frança, francês, história, imprensa, ironia, opinião, paris, Politica, reflexão, sarkozy

A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

Padrão