Brasil, crônica, escândalo, ironia, lula, opinião, Politica, reflexão

O cartão nosso de cada dia

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Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

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Os bombons de quarta-feira

Belas+pernas+de+bailarina
Na primeira, primeiríssima vez, você já acertou. Com louvor. Trouxe bombons pra mim, justamente dos que mais gosto. Logo concluí que deveria te segurar de todo jeito. Virou minha meta e minha fixação. Enquanto viessem os bombons, eu não veria motivo pra sugerir um divórcio, insinuar uma gravidez, ter crises de ciúme. Os bombons foram seu salvo-conduto.

A semana inteira, eu esperava as quartas-feiras, em que soaria o interfone esganiçado e você subiria. Você, seu terno riscado e minha caixa de bombons. Eu atravessava a sala aos pinotes, abria a porta e pulava no seu pescoço. Eu gargalhava. Você só fazia charme. Sorria com o canto da boca. Eu ficava ansiosa e deixava aflorar meu lado cocote, normalmente tão bem escondido. Então, eu arrancava o pacote que você trazia debaixo do braço, rasgava o papel e me atirava no sofá.

Você vinha lentamente, tirando o paletó, enquanto eu enfiava os dentes no recheio. Era doce, escorria pelos lábios. Eu fazia biquinho pra parecer sexy. Quando sentia o gosto do licor, sacudia a cabeça como uma idiotinha. Até que você chegava, quente e descontrolado. Pronto, eu te abraçava com minhas pernas firmes, minhas pernas de bailarina (meu orgulho particular, você sabe).

Se você sufocasse, azar. Mas nunca aconteceu. Meus músculos te apertavam e prendiam durante horas. Até você admitir que não agüentava mais, dizendo que era hora de ir embora. Um beijo de despedida, um banho quente. De roupão, eu me largava na frente da TV com o que sobrava dos bombons. Eles não duravam mais do que uma noite. E eu ficava pensando que você deveria vir mais vezes.

Sim, descontrolada, sim, sim. Fiquei nervosa e irritada quando você veio apenas com o terno riscado, sem pacote debaixo do braço. A doceria fechou, você disse, como se fosse uma fatalidade e eu tivesse de me conformar. Pois sim. A doceria fechou e você não procurou outra, nem outra marca de bombons, nem outro sabor. Você não quis se dar a um pequeno trabalho por alguém que fez tanto sacrifício por você. Não trouxe nada, mas queria levar tudo.

Você se desculpou. Mas na mesma hora eu entendi o que você queria dizer. Entendi que você tinha feito sua escolha, e não nego sua razão. Já passei por isso. Sou cascuda, aprendi a levar foras com dignidade. Mas se te digo que sentirei mais saudades dos bombons que de você, não leve a mal. É um exagero. Uma flecha lançada contra o seu amor-próprio. Coisa de menininha.

Você nega que a decisão esteja tomada. Seu mentiroso. Eu disse que não precisava voltar sem presentinho. Sem presentinho, você não voltou, mesmo. Assim seja. Será que você não percebia que meus pinotes e risadinhas eram jogo de cena feminino? Agora, pode deixar. Eu compro meus próprios bombons, quando tiver vontade.

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