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A sublime impotência de não ter palavras

Alguns anos atrás, nem sei quantos, uma imagem me marcou a ferro. É claro, sim, que muitas imagens me marcaram na vida. Mas esse caso me convenceu de que deve haver um compartimento específico e muito íntimo na memória, em que só caiba a lembrança de uma única fotografia. É lá que ficou guardada essa imagem que jamais esqueci. Mas se minha hipótese estiver furada e esse tal compartimento não existir, então não sei como foi acontecer. Uma dessas coisas, suponho, que se dão por mágica.

Era uma paisagem. Tomada do alto, provavelmente de um helicóptero. À direita, uma planície retalhada em grandes quadrados, verdes e de um amarelo acinzentado. À esquerda, o mar, numa baía rasa e arenosa, onde o curso das marés desenhava volutas aqui e ali cintilantes de sol. Ao centro, uma ilha redonda, um volume de pedra isolado entre dois ambientes aflitivamente planos, como a recusa extensa ao achatamento do horizonte.

Já um belo canto do planeta, certamente. Mas não particularmente memorável, sem o dedo do homem. Os medievais, em seu raciocínio transcendental, entenderam que aquela não era uma ilha qualquer. Só podia ser um canto que Deus queria mais próximo de si, para erguê-lo assim, sozinho, perdido na baía. Era evidente que deveriam construir ali um mosteiro, e assim procederam. Depois, deram-se conta de que não só estavam mais perto de Deus lá no alto, como estavam muito bem protegidos contra os vikings, a atacar cá debaixo. As obras foram expandidas. Muralhas, paredes, uma vila de pedra. A igrejinha do mosteiro, em poucos séculos, se fez catedral exuberante.

Eis o Mont Saint-Michel, a imagem agarrada à minha lembrança. Eu só queria descobrir onde ficava e como chegar. Quando desembarquei no aeroporto Charles de Gaulle, assim que o funcionário da imigração liberou minha entrada, ataquei: “por onde é o Mont Saint-Michel? Mas ele não estava no auge de seu humor e se limitou a indicar com a mão: “por ali”, e me dispensou.

<img class="alignnone" src="http://farm4.static.flickr.com/3176/2831151742_410b57592c.jpg?v=0&quot; alt="Pedras amareladas do mosteiro do Mont Saint-Michel com a ba

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Olhos de pedra

Esta é uma cidade erguida em pedra. Seu crescimento mais brilhante veio pouco antes de se abandonarem os blocos cinzentos e custosos em nome do ferro torcido e, finalmente, do concreto, este também acinzentado, mas pastoso e barato. A pedra era matéria nobre, privilégio de fortes e palácios. Cedida à cidade, ergueria o nome da capital do terceiro Napoleão acima de suas rivais e vizinhas do Velho Continente, que se espalhavam ainda com o pobre e simplório tijolo de barro. Que importa se as outras cresceriam mais, enriqueceriam, seriam coalhadas de edifícios altos, para ocupar o espaço deixado vazio pelas bombas de duas guerras? Ainda hoje, esta Paris regular, simétrica, monótona, é incensada ao redor do mundo, justamente por sua arquitetura litólatra.

Pois foi nessas pedras que os arquitetos esculpiram rostos humanos. Nos prédios mais nobres, cada friso de janela é coroado por uma face em baixo-relevo, como se o cômodo que defende fosse um ventre exposto e arejado. A caminhar pelos bairros de boa linhagem, progridem os números dos edifícios, desfilam as imagens. Muitas dão a pensar nas máscaras da tragédia ática, grandes bocas escancaradas em risos ou máscaras de terror. Outras se quedam neutras, caladas a mirar os passantes sem julgá-los. Há ainda faunos e sátiros, deusas e musas, demônios, esgares furibundos. Uma população, em suma, tão variada quanto a dos vivos.

Gosto de observá-los, esses rostos centenários que testemunharam revoltas, guerras e gerações. Ali estão, a enfeitar apartamentos sem que os proprietários dêem por eles. Diante da variedade de traços e feições, que refletem talvez os humores do arquiteto, troco olhares com as pedras e sou tomado por perguntas que elas não podem responder. Desejo entender o que representam tantas faces, como se escolhiam os temas, por que não se fazem mais. Parecem mais interessantes que os monumentos.

Busco me informar nos livros e na rede. Não encontro estudos a respeito e isso me irrita, mas concluo que sou eu que procuro com palavras equivocadas, porque é certo que alguém já escreveu, já disse, já estudou algo sobre as fileiras de faces. Com meu insucesso, enfim, as imagens frias, que choram quando chove, mas não coram se faz sol, seguem sendo enigmas. Tanto mais, quanto mais meus caminhos as cruzam.

É patente que viviam em outro mundo os ancestrais a quem não bastava edificar as paredes, nuas e lisas, para abrigar os cidadãos honrados, como fazem nossos pares. Aqueles eram tempos em que a eficiência cedia, um pouco pelo menos, lugar aos gracejos. Ardo para saber o que se passava em suas cabeças, quando se dispunham a encarecer o orçamento para que as janelas pudessem contar com cabeças vigilantes e severas, entre os capitólios e as folhas de parreira, também esculpidos.

Lembro de Panofka, que deslindou a charada da perspectiva, eminentemente horizontal: baseia-se, ele entendeu, nas proporções do rosto humano. Cada palácio, cada prédio inteiro, é calculado para harmonizar-se muito mais para os lados que para cima, pois seu princípio, sua causa inconsciente, está posta pela linha dos olhos, a circunferência do crânio, o risco dos lábios. Por que, então, pontilhar de faces as fachadas, se já cada construção é um grande rosto disfarçado, sólido e vivo?

Os prédios são antigos, mas os dias que a cidade vive são os de hoje. Abaixo de sua arquitetura centenária circulam veículos do ano, entre os cartazes contratados pela quinzena. Nas esquinas, postes elevados, coroados por tubos soturnos em lento movimento pendular, mais ativos do que os rostos de pedra que já vão trincando. Dentro dos cilindros, já integrados às paisagens e esquecidos dos passantes, trabalham as câmeras que me protegem, à espera de que eu, ou alguém mais, atente contra a segurança pública.

Dos olhos que não me enxergam, das lentes que me perseguem, sinto que me dedicam uma atenção exagerada. Pedras e circuitos, convidando o indivíduo a cair na paranóia. Seja talvez por isso que não se esculpem mais os rostos. Para evitar o excesso, pois um cidadão abafado é menos produtivo e mais irritadiço. E como as câmeras são mais eficientes, gravam crimes e os evitam, enquanto os rostos só enfeitam as ruas, fica-se com as máquinas, abdica-se das faces, na seqüência de um cálculo bem natural de lógica impecável. Tudo assim se explica. Nem tanto, é certo, como pensavam os antigos, mas sem dúvida como pensam os atuais. E é isso, a bem da verdade, que se quer sempre explicar.

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O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

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