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O Senhor do Universo

Nos primeiros dias, o Senhor do Universo me cumprimentava friamente. Foi se abrindo aos poucos, mas em poucas semanas já me recebia com o sorriso desinibido. Isso era mais do que um sinal de apreço: quando ele cumprimenta alguém, é cumprimento sério. O que estiver fazendo, o Senhor do Universo interrompe, mesmo que seja uma frase, enquanto dá seu aperto de mão firme, olhos sempre nos olhos.

Certa vez, nos longos períodos de espera, ele me relatou como o incomodava a indiferença ocidental para com a saudação. Cerra-se a mão e o assunto continua. O contato da pele foi mera formalidade, como bater ponto. Depois dessa confidência, passei a reparar na má vontade com que ele osculava as moças, dobrado ao costume local mas sempre recalcitrante. O beijo, tal como ele o entende, é intimidade, deveria ser reservado para a família e os amigos muito próximos, não para colegas de trabalho.

Sendo assim, eu me policiava ao lhe estender a mão. Não queria magoá-lo se, num deslize, comentasse em hora imprópria que o tempo estava feio. Durante o cumprimento, travestia um ar sério e mirava bem nos olhos do Senhor do Universo. Penso que ele me respeitava justamente por isso. E me estimava, na condição de único que tinha consideração por seus conceitos. Certa vez, a proprietária comentou comigo, mal disfarçando o despeito, que em três anos de convivência não tinha ouvido metade do que eu sabia sobre a vida dele. Certamente era verdade. Ela nem desconfiava, por exemplo, de que ele é o Senhor do Universo.

Não era difícil perceber a razão do segredo. O Senhor do Universo, que naturalmente não suporta a desonestidade, estava convencido de que ela burlava o fisco e errava de propósito o cálculo da hora extra dos subordinados. Verifiquei, depois, que ele tinha razão, mas pouco importa. Fato é que ela lhe perguntava da família e ele dizia friamente que iam bem, a filha recém-nascida e a esposa com dificuldades de adaptação ao novo país. O diálogo avançava muito pouco, mas como ele fazia o serviço corretamente, não corria risco de perder o emprego. Comigo, falava apenas em inglês, código incompreensível para a gaulesa monoglota que pagava nosso salário.

Eis sua rotina. Chega mais cedo, corta as batatas e põe as rodelas no forno. Separa as carnes, as verduras, os temperos, veste seu avental sempre impecável, termina tudo sempre muito antes de chegarem os clientes. Eu entrava com o pão, saía com as toalhas e talheres; enquanto punha as mesas, via-o puxar a agenda e escrevinhar, muito concentrado. O Senhor do Universo, se pudesse ter escolhido, viveria da poesia, que eu ia esguelhar, mais tarde, quando tinha de anotar alguma reserva. Os versos, eu não compreendia. Meu deleite era contemplar as curvas do estranho alfabeto, que me faziam lembrar os arabescos do Taj Mahal, na caligrafia caprichada e miúda de meu colega.

Certa vez, ele me traduziu um dos poemas. Era um epigrama que dizia algo assim: “As pessoas vêem as flores do caminho e dizem: ‘que belas’! Mas logo esquecem”. No original, soava bem. Em seguida, pediu que eu traduzisse algo do português. Escolhi Fernando Pessoa, mas pareceu não tocá-lo, a não ser pelo trecho em que “Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu.” Foi uma noite poética. A centenas de quilômetros do oceano, esses versos foram repetidos diversas vezes, em inglês improvisado, para fixar.

O Senhor do Universo, na verdade, era jornalista. Com seu senso aguçado de justiça, escolheu a editoria mais arriscada para trabalhar. Num país instável como o Bangladesh, onde nasceu e por quem é fervoroso patriota, produzia matérias de política. Soube disso no meio de uma noite tediosa, em que nosso restaurante deu prejuízo, porque não apareceu um cliente sequer. Restou ao garçom brasileiro e ao cozinheiro bengali beber e falar da vida, cada um de seu lado do balcão. Ouvi todo o relato, contado com uma frieza que me pareceu insólita. Uma série de matérias sobre um partido radical islâmico, que cooptava jovens camponeses, acabou lhe rendendo um sequestro. Uma servente, arriscando a própria vida pelo jovem inocente, o libertou e lhe aconselhou a fuga. O repórter não pôde passar em casa, nem telefonar para a família aflita. Sem dinheiro ou documentos, conseguiu, nem sabe como, chegar à Índia, onde amigos o acolheram e enviaram para a Itália. De lá, passou para a França, exilado, empobrecido e desempregado.

Isso aconteceu há sete anos. Desde então, o Senhor do Universo aprendeu o francês, empregou-se primeiro como pizzaiolo, depois como cozinheiro de um restaurante típico de uma região chamada Ariège, de que eu nunca tinha ouvido falar antes de me empregar ali. Ele tampouco, evidentemente. Muçulmano, mas vagamente praticante, não se alimenta das carnes que passa a noite preparando, mas afirma que o motivo seja menos a religião e mais o paladar. Qualquer comida é intragável para ele se não leva curry, então o que o salvou da inanição foi a chegada da esposa, há dois anos, para acompanhá-lo e cozinhar seu jantar de todo dia. Assim, enquanto eu me refestelava com o pato ou o ensopado que ele preparou, o Senhor do Universo se recolhia com os potes de plástico trazidos de casa. Calado, mastigava o frango ao curry, o arroz ao curry, os legumes ao curry, o curry ao curry.

Quando não discorria sobre poesia ou a política de seu país, ele reclamava da sujeira de Paris e da preguiça dos fornecedores, com quem não raro discutia ao telefone, em seu francês agudo e quase incompreensível. Sonhava, aliás ainda sonha, em se transferir para a Inglaterra, onde espera conseguir retomar a carreira jornalística no idioma ocidental que melhor conhece. Acaba de obter a cidadania francesa, pode circular pela Europa o quanto quiser, mas não é tão fácil mudar de país, com a família dependente de seu salário.

Enquanto trabalhei com ele, eu não sabia que se tratava do Senhor do Universo. Para mim, era um sujeito de valor, castigado pela injustiça do mundo, mas orgulhoso demais para se queixar. Eu ficava inconformado, vendo-o arear as panelas antes de partir, de madrugada, um poeta que atravessou o mundo para escapar da perseguição política, um profissional honesto e idealista reduzido a imigrante, um espírito mal aproveitado por um espécie humana incapaz. Tentei convencê-lo a publicar suas memórias, já escritas. Ofereci ajuda na tradução e na procura por uma editora ou um agente.

A idéia fez brilharem seus olhos, mas ele estava cansado demais para perseguir a glória literária. Uma vez, findo o expediente, reparei nos esgares que ele produzia na tentativa de se calçar, sentado ao lado da porta. Conseguiu, mas suspirou. À luz amarelada que entrava pela janela, pude notar o desânimo em seu rosto. Por algum motivo, guardei silêncio. Ao contrário, foi ele que comentou, quase suspirando, que trabalho em restaurante é para gente jovem e forte. Antes que eu respondesse, ele soltou uma risada breve e amarga, emendada numa pergunta: se meu nome tinha algum significado. Respondi dando de ombros, incerto. Oliveira é uma árvore; Viana, não sei, mas é uma cidade portuguesa; Diego é uma das infinitas variações de um nome bíblico pouco lisonjeiro, o gêmeo invejoso.

Antes de me explicar seu próprio nome, ele alçou a cabeça como se fosse olhar em volta. Mas não seria preciso examinar aquele restaurante de vinte e poucos lugares, que tão pouca importância dava às exigências da higiene. O clima já se bastava em melancolia, com a penumbra, a chuva manhosa, o vento frio. Então ele traduziu seu próprio nome, rindo da minha reação de surpresa. Apesar de sorrir e me fazer de incrédulo, eu me enchi de tristeza. Que mundo sarcástico, que mundo cruel, pensei, este em que pode estar oculto num recanto ignóbil o Senhor do Universo.

* * *

PS: A propósito, ele tem um blog (um pouco desatualizado, porém). Para quem conseguir decifrar o alfabeto e a língua, eis o endereço: http://sarwarealam.blogspot.com

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Os bombons de quarta-feira

Belas+pernas+de+bailarina
Na primeira, primeiríssima vez, você já acertou. Com louvor. Trouxe bombons pra mim, justamente dos que mais gosto. Logo concluí que deveria te segurar de todo jeito. Virou minha meta e minha fixação. Enquanto viessem os bombons, eu não veria motivo pra sugerir um divórcio, insinuar uma gravidez, ter crises de ciúme. Os bombons foram seu salvo-conduto.

A semana inteira, eu esperava as quartas-feiras, em que soaria o interfone esganiçado e você subiria. Você, seu terno riscado e minha caixa de bombons. Eu atravessava a sala aos pinotes, abria a porta e pulava no seu pescoço. Eu gargalhava. Você só fazia charme. Sorria com o canto da boca. Eu ficava ansiosa e deixava aflorar meu lado cocote, normalmente tão bem escondido. Então, eu arrancava o pacote que você trazia debaixo do braço, rasgava o papel e me atirava no sofá.

Você vinha lentamente, tirando o paletó, enquanto eu enfiava os dentes no recheio. Era doce, escorria pelos lábios. Eu fazia biquinho pra parecer sexy. Quando sentia o gosto do licor, sacudia a cabeça como uma idiotinha. Até que você chegava, quente e descontrolado. Pronto, eu te abraçava com minhas pernas firmes, minhas pernas de bailarina (meu orgulho particular, você sabe).

Se você sufocasse, azar. Mas nunca aconteceu. Meus músculos te apertavam e prendiam durante horas. Até você admitir que não agüentava mais, dizendo que era hora de ir embora. Um beijo de despedida, um banho quente. De roupão, eu me largava na frente da TV com o que sobrava dos bombons. Eles não duravam mais do que uma noite. E eu ficava pensando que você deveria vir mais vezes.

Sim, descontrolada, sim, sim. Fiquei nervosa e irritada quando você veio apenas com o terno riscado, sem pacote debaixo do braço. A doceria fechou, você disse, como se fosse uma fatalidade e eu tivesse de me conformar. Pois sim. A doceria fechou e você não procurou outra, nem outra marca de bombons, nem outro sabor. Você não quis se dar a um pequeno trabalho por alguém que fez tanto sacrifício por você. Não trouxe nada, mas queria levar tudo.

Você se desculpou. Mas na mesma hora eu entendi o que você queria dizer. Entendi que você tinha feito sua escolha, e não nego sua razão. Já passei por isso. Sou cascuda, aprendi a levar foras com dignidade. Mas se te digo que sentirei mais saudades dos bombons que de você, não leve a mal. É um exagero. Uma flecha lançada contra o seu amor-próprio. Coisa de menininha.

Você nega que a decisão esteja tomada. Seu mentiroso. Eu disse que não precisava voltar sem presentinho. Sem presentinho, você não voltou, mesmo. Assim seja. Será que você não percebia que meus pinotes e risadinhas eram jogo de cena feminino? Agora, pode deixar. Eu compro meus próprios bombons, quando tiver vontade.

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Ele, um homem sem nome

Escultura+mulher+nua

Pelas cócegas leves que lhe causava o roçar dos pêlos, sentiu a mão que abandonava sua nuca para envolver a curvatura de um seio. Ao contato tão delicado dos dedos, a pele macia cedeu, afundou-se, e o calafrio que disparou por sua espinha a fez apertar os olhos e morder o lábio. Deixou escapar um som abafado. Passou os braços por trás da nuca dele. Pelos cabelos anelados, puxou sua cabeça para trás e assaltou com os seus aqueles lábios escancarados.
O movimento dos dois corpos engatava-se pela harmonia do ritmo. Ele aninhou a cabeça em seu colo, ela apertava com as panturrilhas os rins ligeiramente salientes por baixo das costas encurvadas em sua direção. Sentia como se seu corpo cozinhasse, dois suores se misturando pela fricção, membros que dançavam feito cobras enfeitiçadas. A cada vez que ela expirava, soltava todo o ar de seu interior, e era como se escapasse uma parte de sua alma, vaporosa, à temperatura de ebulição. Passou as unhas, com violência quase descontrolada, pelas costas do homem. Debaixo da pele úmida, a musculatura era tensa, entregue ao esforço de dar prazer. Ele tinha o rosto crispado, rilhava os dentes, grunhia como um urso. Ela teve um acesso de riso, espasmos graves, livres, sem pretensões. Sentia puxões involuntários nos músculos internos das coxas, e seus pés estavam esquecidos, frios, os dedos virados para dentro.
O prazer tomava corpo no passo lento em que os corpos balançavam. Ambos queriam prolongar ao máximo aqueles minutos de simbiose das carnes, sentados sobre um colchão desconhecido, ela por cima, a abraçá-lo com os quatro membros, um limitando o fôlego do outro. Mais cedo ou mais tarde, ela sabia, escaparia de seu bojo um facho elétrico, que apagaria de seu cérebro, por um momento, todo traço de consciência.
Porém, antes que pudesse ser arrebatada pelo orgasmo inevitável, ela percebeu que ele balançava a cabeça com violência, chocando-a contra seus ombros. Seu corpo todo se agitava, tremia, enquanto sua vontade frágil combatia o fluxo que ascendia, de prazer e vida. Foi em vão. Ela sentiu quando, de uma só vez, todo aquele corpo grande, coberto de uma penugem dourada, se deixou relaxar com uma sucessão de espasmos e mais grunhidos nervosos.
Foi impossível evitar o assédio da decepção. Não que o acusasse pela incontinência, mas já antevia a perda da excitação, o amolecimento do parceiro, o final abrupto da relação. Para não terminar o encontro sem o êxtase que merecia, e que chegou a parecer tão próximo, ela seria obrigada a continuar sozinha dali por diante, estimulando o próprio sexo e os sentidos, agarrada à fantasia do que quase havia sido. Não seria uma satisfação tão grande quanto o prazer de ser levada ao gozo pela agressividade habilidosa do parceiro. Porém, se ele não conseguisse evitar de recolher seu estandarte, seria a única alternativa à frustração de não gozar.
Surpreendentemente, ele ainda conseguia. Envolveu sua cintura entre os braços, deitou-a de costas sobre os lençóis e, numa respiração penosa, acelerada, continuou a se movimentar por dentro dela, com afinco redobrado. Não era um atitude natural. Era evidente que, ao contrário, ele obrigava seu corpo a um quase sacrifício, combatendo a tendência fisiológica, que ela bem conhecia, de largar-se e dormir profundamente. Mas ela também sabia que o esforço não daria resultado por muito mais tempo. Se ela não atingisse logo seu próprio ponto de sublimação, ele perderia seu tônus, os órgãos não responderiam e a virilidade de seu membro desmancharia em flacidez. Ela teria de se unir ao esforço do homem para que ele obtivesse algum êxito.
Ela se sentia confusa, mas emocionada. Tocava-a o fato de que ele ainda se preocupasse com a satisfação da parceira, mesmo já tendo obtido a própria. Não é a regra entre os homens, dizia-lhe sua experiência amorosa de quase das décadas. Tratando-se de um namorado, um marido, um amante, o caso seria outro, mas não muito. O homem verdadeiramente amoroso cuidará que seu júbilo não seja solitário. Se também for consciente das volições do amor, tratará de levar a mulher ao zênite do arrebatamento, nem que seja por temor de que ela encontre um outro que o faça.
Mas não era esse, ela pensou, o caso do homem que resfolegava por cima de seu corpo. Seu altruísmo era, sem sombra de dúvida, desvinculado de emoções estáveis. A relação dois dois estava submetida a um contrato rigoroso, em que ficava acordado que não seria mais do que um encontro fugaz, uma noite de prazer sem conseqüências que só teria lugar porque uma atração irresistível os colocara um diante do outro. Um acaso, pois. Que tenham se encontrado, e iniciado uma conversa, durante um vernissage a que nenhum dos dois planejara comparecer. Mas compareceram ambos e, simples assim, travaram conhecimento. Enfeitiçaram-se um pelo outro, e não era efeito do álcool oferecido com fausto, nem de suscetibilidade emocional.
Ele, suprema desgraça, era casado. Eis ali seu anel, que não permitiria uma mentira ou disfarce. Ela, recém-separada, acreditava estar livre do desejo, pelo menos por mais alguns meses. Tomara asco do gênero masculino e vangloriava-se das portas abertas que tinha para cuidar da própria vida. Talvez tenham sido justamente essas barreiras a empurrá-los um para o outro. Como saber? Não seria o matrimônio forte o suficiente para apagar o verdadeiro vulcão de testosterona que corroía as estruturas morais do homem, nem as convicções velariam à percepção da mulher a força telúrica dos olhares penetrantes que ele lhe lançava.
Por longas horas, ainda tentaram conter nas raias da civilização presumida o desejo mútuo que praticava seus caprichos sobre os dois espíritos. Mas não demorou até que algo acontecesse, um resvalar involuntário dos dedos, um ato falho da linguagem, qualquer coisa, e o instinto acabasse assomando à superfície. Ele se apressou em deixar claro que não tinha intenção nenhuma de abandonar sua família, nem ao menos de colocá-la em risco. Ela respondeu que jamais esperaria ou exigiria dele nada parecido. Explicou sua situação, sua misandria recentemente desenvolvida, a repulsa a qualquer forma de vínculo estável com um homem naquele instante. Desse ponto, chegaram a um acordo sobre suas intenções, que lhes permitiria partir para a relação livre sem a perspectiva da culpa ou do remorso.
Não perguntariam um ao outro nem mesmo como se chamavam. Sairiam dali diretamente para um motel, em carros separados, com um intervalo de tempo, após despedidas de naturalidade inquestionável aos demais presentes. Fariam amor, diriam adeus, e nunca mais. O acordo contava com a concordância irrestrita das partes envolvidas. Portanto, ela estava certa de que não seria por efeito de algum sentimento de estima que ele prosseguia em sua insistência de fazê-la gozar.
Seria, pois, uma manifestação de altruísmo, de consideração e respeito. Mas não era o momento de se perder em conjecturas. O fôlego do homem se esgotava. Se ela não conseguisse atingir o orgasmo nos instantes seguintes, todo o esforço seria perdido. Concentrou-se. Reforçou os movimentos, contraiu seus músculos para tornar a fricção mais intensa. Dali a pouco, pôde perceber um latejamento leve, e uma sensação que parecia uma longa nota de clarinete que vibrasse em seu corpo de baixo para cima, da vulva à nuca. Seus músculos contraíam-se e distendiam-se sem um comando seu. Ela conseguira. Queria demonstrá-lo ao parceiro, revelar que seu esforço tivera uma
recompensa digna, que ele poderia baixar a guarda. Gemeu, gritou, enfiou os dentes no pescoço salgado e vermelho do homem, com suas veias e tendões saltados.
Não seria o mais intenso de seus orgasmos, mas o que experimentava era, ainda assim, muito agradável. Foi tomada por uma calma que lhe parecia da amplidão do universo. Suspirou. Sentiu que o corpo do homem abandonava sua posição sobre ela para largar-se, exausto, a seu lado, mas ainda com o braço passando por cima de seu ventre. Abriu os olhos porque sentiu o desconforto do vento frio que ocupava o espaço deixado pelo corpo grande e pesado sobre o dela. Num movimento lento, voltou o rosto para o lado e encarou seu parceiro, que ainda tinha as faces ruborizadas pela força que fizera. Mas já estava adormecido.
Ela continuou observando seu rosto. Prestava atenção na respiração forte do adormecido ainda ofegante, no tronco que subia a cada inspiração e descia gentilmente para expulsar de volta o ar, na expressão de tranqüilidade imaculada. Um novo pensamento a assaltou. Todo aquele sacrifício seria mesmo apenas uma demonstração de consideração? Não teria acontecido algo a mais naquele intervalo de tempo em que estiveram juntos? A atração, ora, não pode ser apenas química. E mesmo que seja, é inconcebível que as ligações químicas de um momento não se reproduzam através do tempo. Os corpos, afinal, são os mesmos.
Presa pelo braço do parceiro, atravessado por cima de seu umbigo, ela não podia se levantar para ir ao banheiro, como desejava, para limpar-se e tomar uma ducha gelada. Pensou em empurrá-lo, afastar o braço, forçar a saída, mas decidiu deixar os movimentos drásticos para mais tarde. O homem dormia profundamente, ressonava, e o som de seu quase ronco transmitia uma vontade curiosa de também adormecer. Ela acompanhou com o olhar os traços do rosto, as rugas, as pequenas pontas de barba que ameaçavam nascer, os cabelos que já sofriam a invasão de alguns fios brancos e grossos.
Assaltou-lhe uma curiosidade terrível de saber quem era aquele homem, como se chamava, o que se passava em sua cabeça. Para todos os efeitos, era um adúltero. Levou para a cama uma mulher que não é a sua. Mas não parou nisso. Foi até as últimas conseqüências, no esforço de proporcionar-lhe um orgasmo, ainda que tardio. Como seria seu casamento? Terrível? Talvez a mulher não lhe despertasse mais desejo algum, talvez ele não sentisse por ela mais do que uma estima carinhosa e fria. Ou talvez ainda a desejasse como sempre a desejara, mas fosse incapaz de afastar do pensamento as fantasias com outras mulheres. Era um homem, não? E os homens querem todos, por natureza, ser polígamos, não? Eis aí um, deitado ao seu lado, que conseguiu sua pequena migalha de poligamia, sua escapadela travessa e segura, livre de culpa ou medo de revelação, graças a um contrato verbal de cláusulas claras e invioláveis.
Uma escapadela, mas onde o prazer da fêmea não foi negligenciado, nem mesmo pela crueldade que muitos homens manifestam de ignorar as necessidades da parceira apenas para exercer uma forma distorcida de superioridade. Para ela, que tantas memórias ruins carregava dos homens que a haviam amado de maneira insatisfatória, até desrespeitosa, aquele sujeito anônimo era quase um herói. Atravessou sua mente, como um pássaro que ela se apressou em expulsar, a idéia de que era injusto, muito injusto, que ela o tivesse encontrado naquelas condições, e não antes do outro, de todos aqueles outros, e também não antes que ele encontrasse alguma mulher para se casar. Talvez sua vida amorosa tivesse sido mais alegre, quem sabe?
Talvez ele tivesse sido o homem certo. Mas agora já estava perdido. Ela não estava disposta a romper o pacto, correr atrás dele, vasculhar seus bolsos para descobrir seu nome e endereço. Agir assim seria, na sua maneira de ver as coisas, bancar a louca. Isso, jamais. O mero pensamento a perturbava de tal maneira que ela precisou sair dali, afastar aquelas bobagens da cabeça, fugir das idéias que formulava contra a própria vontade. Juntou as forças, empurrou o braço do homem e se levantou da cama, nua, ainda sentindo a umidade do suor, do sêmen e de seus próprios fluidos. Ele, porém, nada mais fez do que se ajeitar de outra maneira, numa posição mais confortável para dormir. Antes de se afastar, ela ainda lhe lançou mais um olhar, num gesto que logo considerou um erro. Ele parecia uma criança, agarrando com ambos os braços o travesseiro, as pernas dobradas, o rosto escondido.
Queria, embora não admitisse, saber tudo sobre ele. Teria filhos? Se tivesse, como seria seu relacionamento com eles? Ela leva as mãos ao rosto, meneia a cabeça, repete para si mesma que não, não, não. Caminha até o banheiro. Qual seria a coisa certa a fazer? Tentar algum movimento, para conduzir a situação ao rompimento do acordo? E se ele não quisesse? Não seria ainda mais doloroso? De repente, ela descobriu que não sabia em que termos ele pensaria nela quando acordasse. Talvez não pensasse em termo algum, desse apenas um tchau cordial, dissesse que gostara muito de conhecê-la, e esperasse dela a mesma postura em relação a ele. Mas poderia, também, acordar arrependido, sentindo-se sujo, um adúltero miserável nas mãos de uma mulher manipuladora. Talvez a tratasse como uma prostituta, ou uma conquista, uma mulher fácil. E essa última hipótese era a menos desconfortável, porque derrubaria no mesmo segundo toda a fantasia que ela construíra em torno dele.
Deu-se conta, então, de que a situação já estava ainda mais longe do que esperava, se estava preocupada com a opinião que ele pudesse ter. Jamais dera importância à opinião dos homens sobre ela. Era uma mulher livre e independente. Quem não gostasse dela, tanto pior. De súbito, havia um homem, um homem sem nome, cuja opinião contava. Era demais para sua suscetibilidade. Sem mais um pensamento, ela correu até o banheiro, fechou a porta e se deixou ficar parada diante do espelho, a cabeça baixa e as mãos agarradas à pia.
Quando reergueu os olhos, não reconheceu imediatamente o próprio rosto. Estranhou os olhos entristecidos, a boca, as faces. Encontrou uma marca de expressão em que jamais reparara, e que concluiu ter surgido poucas horas antes. O tempo não perdoa. Ela estava ficando mais velha, sentia-se assim e sua imagem reproduzia o que sua imaginação formulava.
Perfilou-se diante do espelho. Seu corpo ainda era atraente? Talvez jamais o tivesse sido, e os homens que se aproximavam dela o fizessem por compaixão ou, pior, porque não eram capazes de conquistar mulheres mais belas, perfeitas, com curvas traçadas a compasso e sem os pequenos defeitos que lhe saltavam aos olhos. Seus seios lhe pareceram desalinhados e acanhados. Havia uma acumulação de gordura logo abaixo do umbigo, que a fazia sentir-se barriguda, e que não ia embora por nada neste mundo. As nádegas não eram mais tão redondas quanto um dia chegaram a ser. Era impossível disfarçar as concavidades de celulite e os pontos vermelhos de irritação da pele. Que espécie de homem largaria a esposa por uma mulher assim?
Uma certeza se formou em sua mente. “Não sou sedutora, não sou sedutora”, pensou em voz alta, sussurrando no tom de uma sentença de morte. Escapou-lhe o fato de que, poucas horas antes, seduzira aquele mesmo homem que dormia na cama do quarto. Mas sentia-se tão feia e desprovida de encantos que a memória quase se apagara de sua mente. Ele estava ali por alguma espécie de acaso. As ondas de seus cabelos castanhos, que costumava cultivar como uma arma de feminilidade agressiva, traduziam para ela, naquele momento, apenas falta de escova. Passou a mão pelo rosto, e ele lhe pareceu menos liso do que se lembrava.
Percebeu que seus pensamentos a traíam, influenciados por uma perturbação que a ocupara sem motivo, que ela não merecia, mas de que tinha consciência. Revo
ltou-se. Aquilo não poderia continuar assim. Abriu a torneira, molhou as mãos, mergulhou o rosto bruscamente na água fria. O corpo inteiro estremeceu. Tomou ar, estufou o peito. A verdade, disso não tinha nenhuma dúvida, era que não queria alterar o curso de sua vida. Tinha a obrigação de impedir qualquer movimento que a conduzisse nessa direção. Estava decidida: não permitiria que um homem desconhecido lhe negasse o direito de conduzir sua própria vida da maneira como tinha planejado.
Abriu novamente a porta, com o máximo possível de cuidado para não fazer barulho. O homem ainda dormia, e não precisava se preocupar com que ele acordasse: seus roncos cresciam em intensidade, o que era mesmo um bom sinal, uma vez que ela tinha horror a homens que roncam. Pé ante pé, ela buscou suas roupas, espalhadas pelo chão e por cima da cama. Por sorte, nenhuma debaixo do corpo adormecido. Vestiu-se sem olhar para a pele fresca do homem estirado tão perto. Retornou ao espelho, ajeitou-se inteira, os cabelos, o vestido, a maquiagem. A beleza era um componente inseparável de seu amor-próprio.
Ainda sentia no corpo os resquícios do prazer do homem, que a obrigaram a estancar o dilúvio com um papel dobrado. Aquele elemento viscoso de memória quase a abalou, mas sua força de vontade era maior. Tomou sua bolsa, verificou por alto que não deixava nada para trás, atravessou a porta e foi até o carro. Desceu as escadas sentindo o incômodo do sêmen rebelde, mas ignorou-o com galhardia. Deu a partida com um suspiro de alívio e, na saída do motel, fez questão de pagar a conta inteira, como uma última forma de afirmar seu poder individual.
Tomou a avenida no rumo de sua casa. Precisava dormir, não sem antes tomar um último drinque. Mas a determinação que a conduzira para fora do quarto se esvaecia paulatinamente, à medida em que os quilômetros avançavam e a história ia ficando para trás. Não conseguia mais escapar ao ponto mais profundo de sua veleidade: precisava telefonar para a melhor amiga, contar-lhe do ocorrido, de tudo que pensara, do que se passara em seu interior. Sem tirar a mão esquerda do volante, esticou a direita para o banco dos passageiros, abriu a bolsa e a vasculhou em busca do telefone celular. Era uma bolsa pequena, mas seus dedos não topavam com o aparelho. Irritada, ela esvaziou o conteúdo da bolsa sobre o banco. Ele não estava lá.
Percebeu a ironia do fato. Riu, depois sentiu o sangue subir à cabeça. Quase causou um acidente quando golpeou o painel do automóvel. Depois, acalmou-se e riu novamente. Disparou um ligeiro palavrão, suspirou e mordeu o lábio. A vida, pensou, é isso aí. E prosseguiu no caminho para sua própria casa e sua própria cama.
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