barbárie, Brasil, desespero, deus, direita, doença, eleições, escândalo, esquerda, Gabeira, história, imprensa, lula, morte, obituário, opinião, passado, Politica, reflexão, religião, tempo, tristeza

O dever moral do PSDB

Não espero conquistar a atenção de muita gente, mas insisto em sair da toca com algumas palavras de bom senso, já pedindo desculpas por me apresentar como a voz do bom senso. O que segue é uma exortação à militância tucana, àqueles pequenos pássaros de escassa penugem que ainda piam no ninho, desejosos de voltar ao poder e colocar em prática as ideias (isto é, as sobreviventes) de um partido fundado em meados de 1988 sob a égide da democracia e da modernização. Poderia ser um apelo a todos os níveis do partido, mas temo que os tucanos de alta plumagem, os cardeais, já não tenham volta. Então vou me dirigir somente à base. Continuar lendo

Padrão
calor, capitalismo, centro, cidade, costumes, crônica, descoberta, férias, frança, francês, história, ironia, opinião, paris, passado, passeio, prosa, tempo

A nação e o baile

Pintura de Auguste Renoir retratando o tradicional baile do Moulin de la Galette em Montmartre

Perdoe não fugir do óbvio. Lamento, mas a atmosfera circundante sufoca qualquer esforço de escrever sobre outros assuntos, quando se está na França e o dia é 14 de julho. Comentários superficiais sobre o quotidiano enveredam, sorrateiros, pela descrição das festas públicas; reflexões críticas, analíticas ou cínicas descambam em teses sobre o nacionalismo; nem mesmo trancar-se em casa serve de escapatória, já que o estranho silêncio dos vizinhos e da rua realçam o espoucar distante dos fogos. Portanto, perdoe, curvo-me a comentar as celebrações, debater o patriotismo, invadir os bulevares.

Talvez a tarefa mais difícil, neste caso, seja descrever o perfil do nacionalismo francês e lhe avaliar o peso. Começo por um dos traços mais famosos deste país, que é sua folclórica e quase indevassável burocracia.i Em poucas palavras, explico que a famosíssima, cujo eufemismo mais corrente é Administration Française, nada mais é do que a concretização de uma estratégia de unificação nacional, que viu o dia já na Idade Média.

Se você tem ojeriza a relatos históricos, sinta-se livre para ler apenas esta frase e, em seguida, pular o resto do parágrafo, em que faço com poucas frases um resumo cronológico da burocracia e do nacionalismo franceses, desde o século XIV, com a dinastia Valois instaurando um sistema de administração pública tão eficiente que fez da França o primeiro grande Estado-nação do norte da Europa, até o pós-guerra de De Gaulle e Mitterrand, que recriaram, cada um à sua maneira, o sistema da papelada dos Valois (para controlar ou canalizar a fúria revolucionária das esquerdas), passando ainda pelo trauma sanguinolento da Revolução de 1789, que, em termos formais e administrativos, foi pouco além de uma tradução dos princípios jurídicos, sem alterar lá muito profundamente a estrutura de organização pública do país, dos ideais monárquicos aos republicanos.

Falando em República, eis uma palavra onipresente em jornais, escolas, hospitais, museus, pontos turísticos. Os imigrantes, diz-se, devem aprender e incorporar os princípios da República. A educação não pode ser reformada, para não criar uma cisão lógica entre as gerações da República. O mesmo vale para a ortografia, praticamente idêntica desde que existe a República. Os bombeiros são um símbolo republicano, como a literatura e a culinária. Não são símbolos nacionais ou culturais, mas republicanos, um termo que resume melhor o orgulho e o raciocínio do gaulês.

Em outras palavras, a idéia de República embala todas as vertentes do nacionalismo no Hexágono. E diziam que o nacionalismo morreu. É verdade que um certo nacionalismo parece coisa do passado, aquele que teve, por muito tempo, uma conotação algo militar, freqüentemente econômica, no mínimo belicosa. Esse pensamento parece corroborar-se quando vemos o tradicional desfile da Champs Élysées quase vazio, a fumaça dos aviões com as três cores da bandeira, os tanques um pouco desatualizados, a parada dos veteranos acompanhada praticamente apenas pelas esposas dos veteranos, sem contar os políticos, jornalistas, fotógrafos e um punhado de turistas vindos do interior. Um exército que já não tem muito emprego, mas mantém o ar solene e garboso ao subir a rua íngreme, menos de um mês após ser notificado de que vai encolher em efetivo e orçamento. Nada parecido com as cenas de Elena e os homens, de Jean Renoir, em que as multidões meio embriagadas se acotovelavam para acompanhar a passagem dos bravos heróis da República, pelos idos do século retrasado.

Para sorte dos princípios republicanos, há outras maneiras de sentir-se pertencente a uma nação. O nacionalismo está longe de morto, como se vê em toda parte do Leste Europeu, na recuperação de línguas regionais, na autonomização crescente das etnias. A França talvez seja uma exceção desconfortável, mas, como praticamente tudo neste início de século, algum arremedo de nacionalismo sobrevive transferido para a esfera das relações pessoais. Os dialetos, a música, o futebol, os ídolos, a cozinha, as paisagens.

Tendo em mente essa mudança de perspectiva, torna-se mais fácil a procura pelos franceses que comemoram sua data nacional. Estamos prontos para largar os conceitos históricos e ganhar a rua. A maioria estará deserta, como há de esperar quem viu as filas e confusões nos aeroportos, estações de trem, terminais rodoviários e estradas. Mas o vazio é enganoso. Exprime menos a fuga para o sol e as férias do que o cansaço e a ressaca. Afinal, na última madrugada, todos que não partiram em viagem ficaram acordados.

Jovens e velhos, gordos e magros, moradores e visitantes, todos formaram filas enormes para entrar em algum dos incontáveis bailes de bombeiros que se espalham pelo país. Nessa madrugada, a cada ano, as casernas, quase todas, baixam a guarda e se transformam em discotecas enormes, com vários ambientes, bandas, orquestras, mesas enormes para as famílias, champanhe a preço acessível. A garotada dança ensandecida, os idosos bebem sentados, contando histórias do passado, as moças cravam os olhos nos anfitriões, fardados, musculosos, talvez um pouco sérios demais para um evento tão alegre e que só acontece uma vez por ano. Por algum motivo, as bombeiras fazem menos sucesso com os rapazes, embora muitas também mereçam os aplausos de qualquer marmanjo.

Entre uma música e outra, um excelente exercício de sobriedade é contar o número de bandeiras tricolore em torno do salão. Erguidas em diagonal, dobradas segundo um padrão elegante e antiquíssimo, quietas e alertas em seus postos, elas não deixam esquecer aos foliões que aquela é uma celebração nacional. Jovial, barata, etílica, sem dúvida, mas sobretudo um ritual da unidade do país. Eis a mensagem das bandeiras, dos uniformes e até mesmo da arquitetura. Estáticos e discretos, esquecidos do público, às vezes é assim que os símbolos exercem seu maior poder.

Na história da França, houve reis que subjugaram as províncias impondo-lhes o francês como único idioma, não raro em regiões sem a menor raiz latina, como a Alsácia e a Gasconha. Napoleão, séculos mais tarde, formou o maior exército que o mundo já vira, conquistou a Europa, mudou a mão das ruas, recheou o Louvre, depois caiu em Waterloo. As sucessivas Repúblicas amarraram um cidadão ao outro com os elos, aparentemente inquebráveis, dos formulários e repartições, tarifas e concursos nacionais. De lá para cá, o que houve de constante, nacional e republicano foram os bombeiros, cujos bailes produzem uma expectativa comum a todos no país, jovens e velhos, gordos e magros, moradores e visitantes.

Padrão
alemanha, barbárie, Brasil, crônica, descoberta, desespero, direita, escândalo, esquerda, estados unidos, fotografia, frança, francês, greve, guerra, história, hitler, imagens, ironia, Itália, opinião, paris, passado, Politica, primavera, reflexão, Rio de Janeiro, sarkozy, São Paulo, tempo

No tempo em que a polícia batia

Em tese, um certo sumiço na virada do ano é coisa normal, mas acho que passei do ponto. Não foi por querer que fiquei desconectado durante as últimas semanas, e nesse meio-tempo houve muito assunto para deixar uma palavra por aqui, e não pude fazê-lo. Pouco a pouco, espero retomar o ritmo normal de postagens. O primeiro tema que ficou em suspenso é a continuação do texto sobre Der Baader Meinhof Komplex. E, como demorei tanto, acho que terei de aproveitar para desdobrar o assunto em três. Primeiro, este neste texto, sobre a polícia e os cascudos que só ela sabe dar. Depois, mais dois, não sei ainda em que ordem, mas um falará das músicas que são tocadas no filme e o fenômeno da Indústria Cultural, primeiramente evocado por filósofos, que coincidência, alemães. O outro aproveitará, se é que esse verbo é apropriado num momento como este, o gancho da ofensiva israelense contra o perigosíssimo território de Gaza atrás dos terroristas do Hamas… enfim, o conceito de terrorista é qualquer coisa que precisa de fato ser pensado mais profundamente.

E para ressuscitar este espaço, nada melhor do que um texto que, apesar de indiretamente, recupera alguns pontos que deixei passar em 2008. São efemérides como os quarenta anos de todas as coisas grandiosas que aconteceram em 68 (maio de Sorbonne e Nanterre, agosto de Praga, dezembro de Cinelândia e Brasília), e bem que gostaria de encaixar aqui a morte de Harold Pinter, que eu deveria ter comentado e não comentei, e os centenários de Claude Lévi-Strauss e Manoel de Oliveira… mas não vai ser possível.

Fico, então, com as brigas de quarenta (e um) anos atrás para começar meu assunto. Nem preciso dizer, essa série de eventos interligados são uma das raízes do grupo revolucionário e, mais tarde, terrorista alemão. De fato, Der Baader Meinhof Komplex mostra bem como surgiu o bando: no dia 2 de junho de 1967, durante uma manifestação até então pacífica contra o xá Reza Pahlavi, em visita a Berlim, um policial à paisana atirou pelas costas, ou seja, executou o estudante de literatura Benno Ohnesorg, de 26 anos, pai de uma criança, que morreu no mesmo instante.

Estudantes mortos

Mas Ohnesorg provavelmente não foi o primeiro e certamente não foi o único estudante morto nesse tempo que ficaria conhecido como início dos “anos de chumbo”. No Brasil, tivemos Edson Luís de Lima Souto, de 16 anos, cujo assassinato por um policial acabou resultando na célebre Passeata dos Cem Mil de 26 de junho de 1968. Em 2 de outubro, a famosa guerra da Maria Antônia, entre estudantes da USP e do Mackenzie (esses últimos reforçados por jovens encorpados que eram tudo, menos estudantes) também deixou sua vítima, de nome José Guimarães, secundarista e pintor de 20 anos. As famosas prisões de Ibiúna, a propósito, aconteceram dez dias mais tarde.

No mesmo 2 de outubro, uma manifestação estudantil na Plaza de las Tres Culturas, Cidade do México, foi reprimida pelas forças unidas da polícia e do exército com saraivadas repetidas de balas que deixaram um número indeterminado de mortos. A estimativa mais razoável diz que pereceram 400 pessoas, contando não apenas os manifestantes, mas também as pessoas que apenas passavam pelo local. Aliás, o pequeno incidente não chegou a perturbar o funcionamento das Olimpíadas na cidade, poucas semanas depois. Em fevereiro, dois meses antes do assassinato de Martin Luther King e quatro meses antes do de Robert Kennedy, durante uma manifestação na Carolina do Sul pelos direitos civis, três estudantes foram baleados e mortos por, exatamente, policiais. E por aí vai.

Estudantes e policiais se enfrentaram ao redor do mundo, com ou sem mortes, pelos anos seguintes. Nada, claro, como o 68 que, até hoje, ainda faz muitos olhos brilharem, com a Primavera de Praga, a ocupação das universidades em Roma, as palavras de ordem dos jovens de Nanterre e da Sorbonne, criativos como nem os mais prestigiosos publicitários chegam a ser: “Sous le pavé, la plage” (debaixo das pedras, a praia, numa tradução péssima), “soyez réalistes, demandez l’impossible” (sejam realistas, exijam o impossível), “exagérer, c’est commencer à inventer” (exagerar é começar a inventar). Essa garotada, tão boa com as palavras, cheia de idéias e ideais, encheu Paris de barricadas e respondeu ao gás lacrimogêneo com os paralelepípedos que arrancava do chão. Apanharam, apanharam feio. Tudo acabou voltando ao normal. A prefeitura, prudente, cobriu suas ruas de asfalto. Mas os suspiros dos saudosos ainda ecoam.

Tudo isso para mostrar que foi qualquer coisa, menos um caso isolado, a morte de Benno Ohnesorg, o jovem alemão de sobrenome tão sugestivo. Que foram tempos duros, não se pode negar, mesmo que as causas ainda sejam motivo de disputa. Resta que a violência era disseminada através de um mundo povoado por governos que, dos dois lados da Cortina de Ferro, temiam revoluções; jovens perplexos com a cultura de massas que já dava os primeiros sinais do que seria o sistema de ensino industrial e rasteiro de hoje; trabalhadores que, por um lado, eram seduzidos pela mensagem soviética e, por outro, tinham um poder de reivindicação e de compra sem par; grupos minoritários começando a exigir reconhecimento e direitos, na esteira do sentimento de culpa mundial com o antissemitismo (agora tem que ser assim? Com o s dobrado em vez de hífen?) que conduziu ao Holocausto.

O que parece…

Trocando em miúdos, parece que essa era uma época em que um volume significativo de pessoas estava disposta a brigar, bater e apanhar, fosse por uma causa, pelo reconhecimento de seus direitos, por uma melhor remuneração do trabalho, pela liberdade de expressão, enfim, fosse pelo que fosse. Parece, também, que do outro lado havia uma força de segurança disposta a baixar o sarrafo, em bom português, e jamais recuar. Parece que o Poder, do fundo dos palácios, temia com tanta força ser desalojado que não se importava de soltar a cavalaria e a tropa de choque contra sua própria população. Parece que o direito de se expressar livremente não era considerado com muita seriedade, nem de um lado, nem de outro do Muro de Berlim. Parece que a idéia por trás da polícia, naqueles tempos, não era tanto a de coibir a criminalidade, mas apenas manter as gentes sob controle, como se vê, por exemplo, na caricatura francesa em que um policial do CRS (o batalhão de choque) carrega no escudo a insígnia das SS nazistas.

Por outro ponto de vista, parece que o mundo aprendeu algo desde então. Parece que nos tornamos mais livres e mais conscientes. Parece que a ilusão comunista caiu com a União Soviética e o mundo quase todo obteve o direito sagrado de pensar e desejar as mesmas coisas, sempre. Parece que a polícia não exerce mais aquela função de pôr na linha as pessoas que parecem discordar. E ainda, mesmo que continue violenta e opressiva, parece que as forças policiais estão concentradas em lutar contra o crime ou o que, para a opinião pública, parece crime. Parece que os policiais não são mais assustadores como eram naquele tempo em que, não raro, se comportavam como os fascistas da geração anterior. Parece que as pessoas não têm mais contra o que protestar, resolvidas que estão as contradições do mundo, no grande abraço sensual do consumo e da competição. Parece que a única ameaça para nossa tranqüilidade vem de fanáticos barbudos.

… mas não é.

Acontece que encontrei em algum canto da internet as imagens acima (vi algumas maravilhosas numa exposição do fotógrafo turco Göksin Sipahioglu, mas elas não estão em domínio público). Os distintos homens de gravata que aparecem aí são os temidos CRS que enfrentaram a fúria estudantil da Sorbonne em maio de 68. Lançaram bombas de gás lacrimogêneo, deram bordoadas em rapazes e moças, sendo que no começo nem sabiam ao certo o que estava acontecendo (um policial chega a relatar que a viatura recebia ordens contraditórias no caminho para as barricadas). Foram ironizados pelos slogans dos estudantes e acabaram caricaturados como soldados das SS nazistas, mas deram conta do recado. Nenhuma Bastilha caiu naquela primavera.

Esses sujeitos de olhar fuzilante e ameaçador eram os agentes da opressão nos violentos tempos de nossos pais, em que o equilíbrio do mundo ameaçava ruir por um sopro e a qualquer momento um líder mundial poderia decretar a aniquilação do planeta, como vemos em filmes como Dr. Fantástico (odeio essa tradução). E já que estamos nesse pé, eu me pergunto que aparência têm os agentes da ordem nesses nossos tempos sem “ameaça comunista”, em que os estudantes temem demais o desemprego para pensar em protestos, em que não há mais grupos armados de esquerda ou agentes soviéticos infiltrados. Pois bem, ei-los, os mesmos CRS, quarenta anos mais tarde:

Foram-se as gravatas, os paletós bem cortados, os elmos projetados por alguma estilista, os cassetetes de meio metro. No lugar, o que vemos são máscaras de gás, capacetes grossos, caneleiras acolchoadas, cassetetes com tasers, uniformes ultra-cibernéticos que, se me disserem que ricocheteiam balas, não vou duvidar. Os rapazes da fotografia, que, pensando bem, não deixam um centímetro de pele à mostra e bem poderiam ser andróides – com o perdão da analogia fantasiosa -, não foram enviados para alguma guerra distante, como salvadores do mundo ou dos valores democráticos ocidentais (ideais republicanos, diriam os franceses).

Todas essas imagens foram feitas em Paris, algumas durante manifestações de jovens do subúrbio contra o recentemente eleito Nicolas Sarkozy; outras durante as greves estudantis de 2005 contra uma reforma do sistema universitário que parecia projetada por Bush; e uma única por ocasião de um mui irônico evento em que os CRS foram chamados para dar uma coça nos bombeiros em greve: não parece uma guerra de ciborgues?

Bem se vê por essas imagens que, não, a polícia não está menos disposta a dar bordoadas do que há quarenta anos. Não, não estamos mais razoáveis. Não, o mundo não se tornou mais seguro. Não, o poder não se sente mais garantido. Não, não era apenas como resposta e prevenção ao perigo soviético que a polícia (e as forças armadas, por sinal) estavam de sobreaviso para dar cascudos. Não, as contradições não estão resolvidas. Não, ainda falta muito para que as pessoas deixem de ter contra o que protestar.

Revejo a caricatura dos CRS retratados como agentes das SS e sou tomado por sentimentos contraditórios. Por um lado, o respeito que sempre se deve à História, cujos fatos merecem ser apreendidos em sua própria dimensão, sem o olhar condescendente, mas distorcido, do futuro. Por outro, a impressão de que os batalhões de choque deste início de século são infinitamente mais parecidos com a SS em termos de violência do que os engravatados de quarenta anos atrás.

Por algum motivo, e essa questão é certamente mais importante do que pode parecer, a polícia sabe ser um instrumento de dissuasão até melhor do que naquele tempo. Tem mais poder de fogo, mais proteção e, a julgar pelas imagens em que três ou quatro policiais são necessários para segurar um manifestante, tem também mais efetivo. A princípio, isso parece estranho, considerando que o inimigo, ao que sabemos, abandonou o certame. Estamos carecas de saber que as atenções de quem tem por função “manter a ordem pública” estão há muito voltadas para outra direção, não mais os jovens rebeldes do Quartier Latin, mas os filhos de imigrantes do subúrbio. Já os estudantes, que outrora corriam o risco de se deixar abater em batalhas urbanas, não têm mais a mesma disposição para a briga. Certo dia, topei com alguns que tentaram bloquear a entrada de sua faculdade, ao norte de Paris: bastou a polícia chegar para que eles mesmos desfizessem a barreira. Se algum desses garotos for filho de alguém de 68, é certamente a vergonha da família.

A pergunta passa a ser, portanto: se a polícia não mudou de postura e até a intensificou, o que aconteceu do lado dos estudantes para que eles não se disponham a arriscar o pescoço em barricadas? Por que as tensões não chegam mais às vias de fato, ou antes chegam tão raramente, como foi neste ano na Grécia, cujos estudantes revoltados mereceram os aplausos e muitas pichações de apoio nos muros da França, feitas por estudantes que gostariam muito, mas não têm a mesma força de vontade?

Não tenho resposta para nenhuma dessas perguntas, mas o mero gesto de formulá-las talvez já ajude a esclarecer que há algo de muito profundo que diferencia os jovens de hoje dos de quarenta anos atrás. Eu gostaria de saber, por exemplo, o que fez com que uns fossem de um jeito e outros, de outro. Acho que a resposta passa pela noção de indústria cultural, mas isso, como já mencionei acima, é questão para outro texto.

Para uma lista de slogans de 1968, clique aqui.

Padrão
alemanha, barbárie, costumes, crônica, crime, descoberta, desespero, direita, doença, economia, escândalo, esquerda, estados unidos, frança, francês, guerra, história, hitler, imagens, inglaterra, Itália, modernidade, opinião, paris, passado, pena, Politica, prosa, rússia, reflexão, sarkozy, tempo, tristeza, vida

A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

<!– @page { size: 21cm 29.7cm; margin: 2cm } P { margin-bottom: 0.21cm } –>

O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

Padrão
Brasil, crônica, escândalo, ironia, lula, opinião, Politica, reflexão

O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

Padrão
direita, eleições, esquerda, frança, francês, história, imprensa, ironia, opinião, paris, Politica, reflexão, sarkozy

A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

Padrão