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45 minutos de um início de século

Decido esticar um pouco mais o motor, abusar da energia que resta ao fim de uma jornada já intensa, aproveitar que os olhos e os neurônios ainda estão embalados para trabalhar até a pane no sistema nervoso. Um erro, nem preciso dizer: não bastasse a epopéia de encontrar uma porta aberta para deixar o edifício, é subúrbio, é noite, e em meio de semana há menos trens. Um quarto de hora na plataforma, à espera da composição, acompanhando o vapor que minha respiração lança no ar, dificilmente constitui um prazer. São nove horas.

Já a meio caminho ouço à distância – na verdade, não tão longe – o buzinaço. Cinco para as nove, provavelmente. Sigo meu caminho. De imediato, imagino que seja o trânsito na via expressa, agravado por um acidente, quem sabe. Mas essa interpretação é tola e logo se dissipa: não buzinas, buzinaço. Coisa muito diferente. Só pode ser futebol, percebo, corrigindo-me. Lembro de uma notícia lida pela manhã: é noite de jogo da França e os autóctones estão exasperados, temerosos de ficar fora da Copa. Está esclarecido o mistério, julgo, e me engano novamente. Prossegue a barulheira. Estremeço como Proust (com o perdão do paralelo) estremeceu ao sentir o pavimento irregular da rua e ser atirado em memórias de Veneza e Balbec. Quanto a mim, é como se estivesse diante de uma UERJ da vida. Em noite de gala.

Por um momento, me perco da realidade. Faltando dois para as nove, sou despertado por um berro agudo. Percebo que já subo a rampa da estação e uma motoca com dois molecotes vem descendo bem rápido e em ziguezague. O berro é da buzina, desagradável mas ridícula, descontado o risco de atropelamento. Salto de lado, desejando secretamente esticar a pasta para causar um acidente. Deve ser o mesmo desejo secreto da pequena senhora que, poucos passos atrás de mim, também dá um pulo e dirige à motoca um palavrão. Já vão longe os meninos, empunhando uma bandeira que, no escuro, não consigo divisar.

Uma tela azul informa que o próximo trem só chega às nove e quinze. Suspiros meus e de quem mais tenha visto a informação. Desço as escadas e conto, por falta do que fazer, os gatos-pingados que esperam sob a luz tíbia das lâmpadas parcas. São 21; mas sou mais um, não posso esquecer de contar a mim mesmo: somos 22. Segue o buzinaço. Os franceses, imagino, vão animados para o Stade de France . Nove e cinco.

Além do alambrado, escuto mais berros. Posso enxergar uma pequena multidão à distância e logo concluo que é mais gente a caminho do estádio. Surpreende-me, porém, o mantra entoado: nada de “Allez les bleus!”, mas algo diferente. Impossível decifrar, com a concorrência de um trem que passa vazio. Passa ao meu lado um menino, doze anos talvez, vestindo uma camiseta branca, com um escudo verde. Reconheço a bandeira da Argélia. Apuro o ouvido e consigo distinguir as palavras do canto: One, two, three! Vive l’Algérie! Uma rima bilíngüe, coisas da globalização, e de autoria de um povo que fala ainda um terceiro idioma. Nove e dez, o frio já trinca a minha mandíbula, o barulho dos torcedores embandeirados vai se aproximando. Seria então um França x Argélia? Seria no Stade de France? Nesse caso, que coragem demonstram os magrebinos. Vão atravessar a cidade torcendo contra o mandante! Ali no subúrbio, onde os conjuntos habitacionais escondem e contêm os tons de pele e as línguas menos estimados no país, eles estão seguros, diria mesmo que estão em casa. Mas no centro da capital, sabem os deuses o que pode suceder.

São nove e dez. O garoto uniformizado está mais uma vez por perto. Peço licença e pergunto com quem a Argélia vai jogar. Ele me encara como se eu viesse de cair da lua. Em poucas palavras, ele explica: já jogou, já ganhou, está na Copa e nós vamos comemorar em Saint Michel. Eu também me sinto como um alienígena. Parabenizo o rapaz e desejo sorte no Mundial. Meu inconsciente, enquanto isso, divide-se em duas ponderações. O menino fala um francês perfeito. Ele é francês. Certamente nasceu por aqui. Mas está identificado é com o país de seus ancestrais, como toda aquela multidão que vai se aproximando da estação, cada vez mais barulhenta.

Rumo a Saint Michel, a praça apinhada de turistas onde têm lugar todas as comemorações esportivas da cidade. Como quando os bleus ganharam da Nova Zelândia no rúgbi ou, hélas, do Brasil no futebol. Esta noite, outro país fará sua celebração de vitória, no coração da antiga capital imperial, diante da fonte onde o Arcanjo degola o dragão. Sabem os deuses, ainda, o que pode acontecer. Ponho-me a especular se não haveria um certo fundo político, de cunho étnico, histórico, sei lá eu, nessa manifestação esportiva. Pode ser. Mas certamente não para o menino afogueado e imberbe que se posta à minha frente. Tento parecer simpático e explico que não acompanho muito, na verdade quase nada, do futebol europeu ou, no caso, africano. Por outro lado, e a despeito de um amortecimento em mantas e cachecóis, também estou num espírito futebolístico. Meu time joga hoje, estou apreensivo, e ainda por cima o jogo cai no meio da madrugada, em função do fuso horário. O garoto não quer saber, está provavelmente incomodado por aquele sujeito – talvez até eu lhe apareça como um velho – que puxa assunto assim, sem mais, na plataforma do trem.

Ele não está para confraternizações. Não com brasileiros, ao menos. São nove e doze, o one-two-three já desce os degraus para tomar o trem que passa em três minutos. Mais uma vez, sinto como se fosse a estação Maracanã, aquela massa humana magnificada pelo próprio número, estapeando os painéis publicitários como se fossem tambores e provocando os poucos que permanecem alheios, fingindo ignorá-los. Nada no muito é mais importante do que o destino daquela equipe, é o que crêem os argelinos, como creram e seguirão crendo todos os torcedores em todos os tempos. Reis e generais não fazem a história, mas centroavantes e arqueiros. Acho curioso como eles falam em francês entre si, sem sotaque algum, afora as gírias do subúrbio. Estranha situação, penso. Estar ligado a uma terra pelo corpo e a outra pela alma. O imperialismo deixa suas chagas, não apenas nas colônias, mas na própria metrópole. Clemenceau dificilmente terá imaginado que um dia a juventude argelina tomaria de assalto a praça de Saint Michel. Pois é o que farão, esta noite, os netos e bisnetos de um povo que, naquele tempo, nada mais era do que carne para moer na luta contra o Kaiser.

Chega a composição às nove e quinze, numa surpreendente pontualidade. Os torcedores fazem também o trem de tambor. Pá Pá Pá! Os passageiros se assustam. O canto ainda é o mesmo: one-two-three, vive l’Algérie! Não sem um certo desprezo bairrista, concluo que o brasileiro é muito mais criativo, cheio de cantos diferentes, alguns brilhantes, outros dementes, incitando uma violência tão à toa quanto um jornal esportivo. Procuro um vagão com menos bandeiras e apitos, na esperança de viajar sentado. Qual. Sou obrigado a seguir em pé e o trem ainda vai lento, suponho que por causa dos torcedores, talvez se pendurando para fora ou qualquer coisa dessas que torcedores fazem, como sabemos. Na primeira parada, nove e vinte, entra uma moça de xador e bandeirola na mão. Ela agitará seu brinquedinho timidamente. Não deve ter o hábito do futebol.

Mais alguns minutos e estamos na estação central, onde vamos nos separar. Sigo ao norte, eles ao sul, rumo ao grande objetivo estratégico, a praça Saint Michel. Consigo descer mais rápido e avanço na direção das catracas e da esteira rolante. Nove e vinte e quatro, ouço à distância a aritmética anglo-saxã dos argelinos, felizes da vida. Mas já nada tenho com eles, ou pelo menos é o que creio.

Mais veloz que eu, chega à esteira rolante uma pequena companhia de policiais. São sete. Caminham bem à minha frente. Como de hábito, ponho-me a considerar sua aparência ameaçadora. Todos grandes, fortes como colheitadeiras, com suas jaquetas e calças negras, estofadas para aumentar a impressão de musculatura. Nada que lembre os tradicionais e simpáticos uniformes da política francesa. São todos muito brancos e nenhum parece interessado na vitória da Argélia. Cabeças raspadas debaixo das boinas também negras e um cinto de utilidades à la Batman, com pistola, lanterna e um mostruário de bugigangas que não sei identificar. Com seus coturnos de sola grossa, são todos muito altos, e cada passo ribomba pelo subterrâneo. Quem passa no sentido oposto espia discretamente, com uma certa perplexidade e um grande receio de encarar diretamente aqueles agentes da, como se diz, ordem. Alguns olhares também se dirigem para mim. Esses deixam entrever uma certa pena, como se imaginassem que estou sendo detido.

Aquelas figuras, com seus cassetetes, suas luvas, suas algemas, também me incomodam. Espero poder me afastar deles assim que termine a esteira. Mas, para minha grande decepção, eles tomam o mesmo túnel que eu, sobem os mesmos degraus. Esmagam a escada rolante como se a quisessem escangalhar. Nem imagino de onde vem esse ódio. Nove e vinte e oito, estamos todos, os policiais e eu, na mesma plataforma do metrô. O que querem aqui? Para onde vão? E por que sete, cáspite?

A resposta aparece espontaneamente às nove e meia em ponto. Do outro lado, uma vibração abafada parece vir do túnel. Ela cresce e se transforma num som conhecido: one-two-three, vive l’Algérie. Em poucos instantes, a plataforma oposta está inundada de jovens em verde e branco, empunhando as bandeiras com o crescente – uma delas enorme –, pulando como crianças e fazendo desta vez as máquinas de refrigerante de tambores, que denunciam a falta de ritmo. (Nisso os brasileiros também somos melhores.) Notável, me dizem meus botões, como as torcidas se parecem no mundo inteiro.

Ao mesmo tempo, minha visão periférica capta um movimento rápido. São os policiais, que afastam os viajantes sem grande gentileza e se perfilam diante dos trilhos, olhos petrificados e fixos na pequena multidão festiva. Espinhas retesadas, todos. Alguns cruzam os braços, outros apóiam os punhos na cintura. O que para mim era uma torcida, para eles é um bando de baderneiros, pelo visto. Mas os baderneiros não dão bola para a posição de ataque dos predadores, separados da enorme presa por uma vala eletrificada. A festa continua, a cantoria, a barulheira. O poder de dissuasão dos mamutes públicos é nula diante do contentamento magrebino.

É nove e trinta e três quando chega o metrô para os torcedores e demais passageiros na direção contrária à minha. Eles embarcam sem conceder um mínimo olhar às hostes da repressão e da ordem, aos sete bravos touros que não deixam de encará-los, mesmo quando as portas se fecham. Não há contato, não há comunicação. A disparidade das emoções e intenções é tão radical que encerra os dois grupos em universos isolados. Ainda bem, concluo. Provocações de parte a parte não poderiam terminar bem.

Restabelecido o silêncio na estação, penso que os policiais vão retomar sua conversa ali mesmo. Qual nada. Mal partiu o trem, nove e trinta e cinco, o mais velho e provavelmente mais graduado dá um tapa ligeiro no ombro de um outro e sentencia: “pronto, podemos ir”. Como se abrissem uma comporta, todos relaxam. Os rostos de pedra se tornam milagrosamente humanos. Contando piadas e trocando receitas, eles viram as costas e partem, de volta para casa ou para o quartel – ou ambos, por que não? Eles estavam ali com o fito único de se revelar em ameaça diante da multidão de argelinos. Nada mais. Exercida a pressão, missão cumprida. Todos os presentes vão se lembrar de que, afinal de contas, não estamos seguros coisa nenhuma.

Finalmente, tudo está tranqüilo. Sem tambores, sem rimas bilíngües, sem tropa de choque. Reflexivo e algo entristecido, tomo o metrô às nove e trinta e seis. Às nove e quarenta, estou caminhando para casa. Não me encontro mais no subúrbio, mas ainda muitos carros passam na avenida como bandeiras alviverdes, crescentes, buzinaços, one-two-three e Yallah, yallah. Esfomeado e morto de frio, aperto o passo, mas só tenho um pensamento: oxalá a polícia não invente de ir à praça Saint Michel.

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No tempo em que a polícia batia

Em tese, um certo sumiço na virada do ano é coisa normal, mas acho que passei do ponto. Não foi por querer que fiquei desconectado durante as últimas semanas, e nesse meio-tempo houve muito assunto para deixar uma palavra por aqui, e não pude fazê-lo. Pouco a pouco, espero retomar o ritmo normal de postagens. O primeiro tema que ficou em suspenso é a continuação do texto sobre Der Baader Meinhof Komplex. E, como demorei tanto, acho que terei de aproveitar para desdobrar o assunto em três. Primeiro, este neste texto, sobre a polícia e os cascudos que só ela sabe dar. Depois, mais dois, não sei ainda em que ordem, mas um falará das músicas que são tocadas no filme e o fenômeno da Indústria Cultural, primeiramente evocado por filósofos, que coincidência, alemães. O outro aproveitará, se é que esse verbo é apropriado num momento como este, o gancho da ofensiva israelense contra o perigosíssimo território de Gaza atrás dos terroristas do Hamas… enfim, o conceito de terrorista é qualquer coisa que precisa de fato ser pensado mais profundamente.

E para ressuscitar este espaço, nada melhor do que um texto que, apesar de indiretamente, recupera alguns pontos que deixei passar em 2008. São efemérides como os quarenta anos de todas as coisas grandiosas que aconteceram em 68 (maio de Sorbonne e Nanterre, agosto de Praga, dezembro de Cinelândia e Brasília), e bem que gostaria de encaixar aqui a morte de Harold Pinter, que eu deveria ter comentado e não comentei, e os centenários de Claude Lévi-Strauss e Manoel de Oliveira… mas não vai ser possível.

Fico, então, com as brigas de quarenta (e um) anos atrás para começar meu assunto. Nem preciso dizer, essa série de eventos interligados são uma das raízes do grupo revolucionário e, mais tarde, terrorista alemão. De fato, Der Baader Meinhof Komplex mostra bem como surgiu o bando: no dia 2 de junho de 1967, durante uma manifestação até então pacífica contra o xá Reza Pahlavi, em visita a Berlim, um policial à paisana atirou pelas costas, ou seja, executou o estudante de literatura Benno Ohnesorg, de 26 anos, pai de uma criança, que morreu no mesmo instante.

Estudantes mortos

Mas Ohnesorg provavelmente não foi o primeiro e certamente não foi o único estudante morto nesse tempo que ficaria conhecido como início dos “anos de chumbo”. No Brasil, tivemos Edson Luís de Lima Souto, de 16 anos, cujo assassinato por um policial acabou resultando na célebre Passeata dos Cem Mil de 26 de junho de 1968. Em 2 de outubro, a famosa guerra da Maria Antônia, entre estudantes da USP e do Mackenzie (esses últimos reforçados por jovens encorpados que eram tudo, menos estudantes) também deixou sua vítima, de nome José Guimarães, secundarista e pintor de 20 anos. As famosas prisões de Ibiúna, a propósito, aconteceram dez dias mais tarde.

No mesmo 2 de outubro, uma manifestação estudantil na Plaza de las Tres Culturas, Cidade do México, foi reprimida pelas forças unidas da polícia e do exército com saraivadas repetidas de balas que deixaram um número indeterminado de mortos. A estimativa mais razoável diz que pereceram 400 pessoas, contando não apenas os manifestantes, mas também as pessoas que apenas passavam pelo local. Aliás, o pequeno incidente não chegou a perturbar o funcionamento das Olimpíadas na cidade, poucas semanas depois. Em fevereiro, dois meses antes do assassinato de Martin Luther King e quatro meses antes do de Robert Kennedy, durante uma manifestação na Carolina do Sul pelos direitos civis, três estudantes foram baleados e mortos por, exatamente, policiais. E por aí vai.

Estudantes e policiais se enfrentaram ao redor do mundo, com ou sem mortes, pelos anos seguintes. Nada, claro, como o 68 que, até hoje, ainda faz muitos olhos brilharem, com a Primavera de Praga, a ocupação das universidades em Roma, as palavras de ordem dos jovens de Nanterre e da Sorbonne, criativos como nem os mais prestigiosos publicitários chegam a ser: “Sous le pavé, la plage” (debaixo das pedras, a praia, numa tradução péssima), “soyez réalistes, demandez l’impossible” (sejam realistas, exijam o impossível), “exagérer, c’est commencer à inventer” (exagerar é começar a inventar). Essa garotada, tão boa com as palavras, cheia de idéias e ideais, encheu Paris de barricadas e respondeu ao gás lacrimogêneo com os paralelepípedos que arrancava do chão. Apanharam, apanharam feio. Tudo acabou voltando ao normal. A prefeitura, prudente, cobriu suas ruas de asfalto. Mas os suspiros dos saudosos ainda ecoam.

Tudo isso para mostrar que foi qualquer coisa, menos um caso isolado, a morte de Benno Ohnesorg, o jovem alemão de sobrenome tão sugestivo. Que foram tempos duros, não se pode negar, mesmo que as causas ainda sejam motivo de disputa. Resta que a violência era disseminada através de um mundo povoado por governos que, dos dois lados da Cortina de Ferro, temiam revoluções; jovens perplexos com a cultura de massas que já dava os primeiros sinais do que seria o sistema de ensino industrial e rasteiro de hoje; trabalhadores que, por um lado, eram seduzidos pela mensagem soviética e, por outro, tinham um poder de reivindicação e de compra sem par; grupos minoritários começando a exigir reconhecimento e direitos, na esteira do sentimento de culpa mundial com o antissemitismo (agora tem que ser assim? Com o s dobrado em vez de hífen?) que conduziu ao Holocausto.

O que parece…

Trocando em miúdos, parece que essa era uma época em que um volume significativo de pessoas estava disposta a brigar, bater e apanhar, fosse por uma causa, pelo reconhecimento de seus direitos, por uma melhor remuneração do trabalho, pela liberdade de expressão, enfim, fosse pelo que fosse. Parece, também, que do outro lado havia uma força de segurança disposta a baixar o sarrafo, em bom português, e jamais recuar. Parece que o Poder, do fundo dos palácios, temia com tanta força ser desalojado que não se importava de soltar a cavalaria e a tropa de choque contra sua própria população. Parece que o direito de se expressar livremente não era considerado com muita seriedade, nem de um lado, nem de outro do Muro de Berlim. Parece que a idéia por trás da polícia, naqueles tempos, não era tanto a de coibir a criminalidade, mas apenas manter as gentes sob controle, como se vê, por exemplo, na caricatura francesa em que um policial do CRS (o batalhão de choque) carrega no escudo a insígnia das SS nazistas.

Por outro ponto de vista, parece que o mundo aprendeu algo desde então. Parece que nos tornamos mais livres e mais conscientes. Parece que a ilusão comunista caiu com a União Soviética e o mundo quase todo obteve o direito sagrado de pensar e desejar as mesmas coisas, sempre. Parece que a polícia não exerce mais aquela função de pôr na linha as pessoas que parecem discordar. E ainda, mesmo que continue violenta e opressiva, parece que as forças policiais estão concentradas em lutar contra o crime ou o que, para a opinião pública, parece crime. Parece que os policiais não são mais assustadores como eram naquele tempo em que, não raro, se comportavam como os fascistas da geração anterior. Parece que as pessoas não têm mais contra o que protestar, resolvidas que estão as contradições do mundo, no grande abraço sensual do consumo e da competição. Parece que a única ameaça para nossa tranqüilidade vem de fanáticos barbudos.

… mas não é.

Acontece que encontrei em algum canto da internet as imagens acima (vi algumas maravilhosas numa exposição do fotógrafo turco Göksin Sipahioglu, mas elas não estão em domínio público). Os distintos homens de gravata que aparecem aí são os temidos CRS que enfrentaram a fúria estudantil da Sorbonne em maio de 68. Lançaram bombas de gás lacrimogêneo, deram bordoadas em rapazes e moças, sendo que no começo nem sabiam ao certo o que estava acontecendo (um policial chega a relatar que a viatura recebia ordens contraditórias no caminho para as barricadas). Foram ironizados pelos slogans dos estudantes e acabaram caricaturados como soldados das SS nazistas, mas deram conta do recado. Nenhuma Bastilha caiu naquela primavera.

Esses sujeitos de olhar fuzilante e ameaçador eram os agentes da opressão nos violentos tempos de nossos pais, em que o equilíbrio do mundo ameaçava ruir por um sopro e a qualquer momento um líder mundial poderia decretar a aniquilação do planeta, como vemos em filmes como Dr. Fantástico (odeio essa tradução). E já que estamos nesse pé, eu me pergunto que aparência têm os agentes da ordem nesses nossos tempos sem “ameaça comunista”, em que os estudantes temem demais o desemprego para pensar em protestos, em que não há mais grupos armados de esquerda ou agentes soviéticos infiltrados. Pois bem, ei-los, os mesmos CRS, quarenta anos mais tarde:

Foram-se as gravatas, os paletós bem cortados, os elmos projetados por alguma estilista, os cassetetes de meio metro. No lugar, o que vemos são máscaras de gás, capacetes grossos, caneleiras acolchoadas, cassetetes com tasers, uniformes ultra-cibernéticos que, se me disserem que ricocheteiam balas, não vou duvidar. Os rapazes da fotografia, que, pensando bem, não deixam um centímetro de pele à mostra e bem poderiam ser andróides – com o perdão da analogia fantasiosa -, não foram enviados para alguma guerra distante, como salvadores do mundo ou dos valores democráticos ocidentais (ideais republicanos, diriam os franceses).

Todas essas imagens foram feitas em Paris, algumas durante manifestações de jovens do subúrbio contra o recentemente eleito Nicolas Sarkozy; outras durante as greves estudantis de 2005 contra uma reforma do sistema universitário que parecia projetada por Bush; e uma única por ocasião de um mui irônico evento em que os CRS foram chamados para dar uma coça nos bombeiros em greve: não parece uma guerra de ciborgues?

Bem se vê por essas imagens que, não, a polícia não está menos disposta a dar bordoadas do que há quarenta anos. Não, não estamos mais razoáveis. Não, o mundo não se tornou mais seguro. Não, o poder não se sente mais garantido. Não, não era apenas como resposta e prevenção ao perigo soviético que a polícia (e as forças armadas, por sinal) estavam de sobreaviso para dar cascudos. Não, as contradições não estão resolvidas. Não, ainda falta muito para que as pessoas deixem de ter contra o que protestar.

Revejo a caricatura dos CRS retratados como agentes das SS e sou tomado por sentimentos contraditórios. Por um lado, o respeito que sempre se deve à História, cujos fatos merecem ser apreendidos em sua própria dimensão, sem o olhar condescendente, mas distorcido, do futuro. Por outro, a impressão de que os batalhões de choque deste início de século são infinitamente mais parecidos com a SS em termos de violência do que os engravatados de quarenta anos atrás.

Por algum motivo, e essa questão é certamente mais importante do que pode parecer, a polícia sabe ser um instrumento de dissuasão até melhor do que naquele tempo. Tem mais poder de fogo, mais proteção e, a julgar pelas imagens em que três ou quatro policiais são necessários para segurar um manifestante, tem também mais efetivo. A princípio, isso parece estranho, considerando que o inimigo, ao que sabemos, abandonou o certame. Estamos carecas de saber que as atenções de quem tem por função “manter a ordem pública” estão há muito voltadas para outra direção, não mais os jovens rebeldes do Quartier Latin, mas os filhos de imigrantes do subúrbio. Já os estudantes, que outrora corriam o risco de se deixar abater em batalhas urbanas, não têm mais a mesma disposição para a briga. Certo dia, topei com alguns que tentaram bloquear a entrada de sua faculdade, ao norte de Paris: bastou a polícia chegar para que eles mesmos desfizessem a barreira. Se algum desses garotos for filho de alguém de 68, é certamente a vergonha da família.

A pergunta passa a ser, portanto: se a polícia não mudou de postura e até a intensificou, o que aconteceu do lado dos estudantes para que eles não se disponham a arriscar o pescoço em barricadas? Por que as tensões não chegam mais às vias de fato, ou antes chegam tão raramente, como foi neste ano na Grécia, cujos estudantes revoltados mereceram os aplausos e muitas pichações de apoio nos muros da França, feitas por estudantes que gostariam muito, mas não têm a mesma força de vontade?

Não tenho resposta para nenhuma dessas perguntas, mas o mero gesto de formulá-las talvez já ajude a esclarecer que há algo de muito profundo que diferencia os jovens de hoje dos de quarenta anos atrás. Eu gostaria de saber, por exemplo, o que fez com que uns fossem de um jeito e outros, de outro. Acho que a resposta passa pela noção de indústria cultural, mas isso, como já mencionei acima, é questão para outro texto.

Para uma lista de slogans de 1968, clique aqui.

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