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A barbárie se acelera?

Chegamos a meados de 2022 e parece que já não é mais a cada poucos meses que somos confrontados com um novo episódio de barbárie em algum canto do Brasil – agora, poucas semanas separam o anúncio de um massacre no Rio, uma câmara de gás em Sergipe, um assassinato brutal na Amazônia ou no Cerrado, para citar só os mais midiatizados. São todos acontecimentos hediondos, à primeira vista sem conexão direta entre si, mas temos a impressão de que estão mais frequentes.

Viramos as páginas dos jornais – quem ainda faz isso – para a seção nacional ou de política e damos com um noticiário de outra natureza, mas igualmente perturbador. Ou melhor, igualmente bárbaro: a diferença é que o sangue não salta diretamente das páginas. Uma decisão como a do rol taxativo no STJ; a pressão dos militares sobre o processo eleitoral; os bilhões canalizados pelo orçamento secreto; os milhões gastos por municípios com concertos misturados a propaganda; a proposta, ou ameaça, de um estado de calamidade que permitiria desviar ainda mais recursos para fins eleitoreiros, e por aí vai. Desta vez, estamos falando de degradação institucional, mas a sensação é a mesma: o processo está se intensificando ou acelerando.

O que dizer desse sentimento de aceleração? Os golpes estão mesmo cada vez mais frequentes ou seria apenas um reflexo de nossa ansiedade com a aproximação de um período já normalmente tenso, como é o processo eleitoral? Ou ainda: se os episódios de barbárie e degradação institucional estiverem mesmo se precipitando, é justo imaginar que exista alguma coordenação entre eles, proposital ou involuntária? Se houver, realmente, algum mecanismo pelo qual uma causa comum leva à sucessão desabalada de iniciativas destruidoras, ele pode ser identificado?

Coloquei as perguntas nessa ordem porque uma das características do conflito assimétrico e informal, majoritariamente cibernético, que caracteriza nosso tempo é justamente torná-las quase irrespondíveis. Mesmo assim, creio que, se atravessarmos esse “irrespondível” e a confusão que o acompanha, podemos identificar um movimento que talvez seja proteiforme, mas é coeso. Lamento dizer, o que parece estar atrás da cortina é aterrador.

Chegamos a meados de 2022 e tudo indica que está em curso uma iniciativa de “guerra total” quase – veja bem, quase – espontânea, e por isso mesmo ainda mais potencialmente destruidora. Mas antes de começar qualquer tentativa de diagnóstico, é preciso recuar alguns passos e buscar um olhar um pouco mais abstrato, para que o cenário de fundo esteja minimamente acessível. Seja paciente.

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Começado pela última questão: a coordenação e a causa comum a todos esses episódios é indemonstrável, porque é desnecessária. Ou melhor, o que é desnecessário é um centro inspirador ou decisório único. Basta que exista alguma modalidade de comunicação – que pode ser um único sistema ou a conjunção de vários – capaz de alinhar o desejo de realizar determinada ação com a capacidade de levá-la a cabo. A única coisa indispensável para conseguir que algo se opere, tenha efeitos, é que os agentes mobilizados na ponta – digamos assim, os “terminais” ou “receptores” – obedeçam a motivações mais ou menos coerentes – ou seja, coerentes o bastante. Em outras palavras, não são as ações que precisam ser coordenadas, mas as motivações; aquilo que, cá e lá, dispara uma ação.

Ora, é precisamente essa questão comunicacional que conduz ao irrespondível das primeiras perguntas. Se ficamos ansiosos ao ser confrontados com a repetida barbárie, em sua versão sanguinolenta e em sua versão institucional, parte da razão é que as mesmas modalidades de comunicação que alinham motivações também semeiam ansiedade. Os mesmos estímulos emitidos constantemente, a mesma cacofonia, que galvaniza as ações de um lado, do outro geram confusão. A avalanche de imagens e mensagens é tanto paralisadora quanto mobilizadora, conforme a predisposição das pessoas espalhadas pelo território – os “terminais”.

Por isso, não faz sentido opor a sensação do horror intensificado e a realidade material que poderia sustentar essa percepção. Essa condição da comunicação reticular, entranhada no tecido social, provoca a impressão de que esses acontecimentos horríveis que testemunhamos podem ser postos em ação, um tanto paradoxalmente, por si próprios. Somos quase conduzidos a dizer que ninguém é responsável, mas, como já não conseguimos nem mesmo afirmar a realidade do complexo de eventos que estamos testemunhando, não chega a ser surpreendente.

Poderíamos contrastar essa nebulosidade, por exemplo, com o que aprendemos no caso Cambridge Analytica, em que agentes muito específicos manipularam indivíduos em um vasto território, com ferramentas discretas e disponibilizadas com essa precisa finalidade. Algo semelhante ocorreu em torno de 2018, com os disparos de mensagens e os robôs que todos conhecemos, a começar por Carluxo. Também dá para fazer um contraste com o episódio da invasão do congresso americano, em 6 de janeiro do ano passado. Também aí havia um centro emissor na figura de Trump, que colocou em movimento seus seguidores a partir da acusação de fraude eleitoral e o slogan, ou grito de guerra, “stop the count”.

Mas mesmo nesses dois casos, o que realmente disparou as atitudes, as ações, até mesmo as crenças – o que poderíamos chamar de sua “causa eficiente” – foi a disposição dos próprios receptores, cultivada ao longo de um extenso período e disponíveis para aquelas mensagens. O caso Cambridge Analytica é mais evidente, porque justamente aqueles com alguma inclinação a se conectar com as mensagens enviadas eram focalizados – e vendidos como alvos.

No caso da extrema-direita brasileira, a radicalização se deu por vias semelhantes, mas não idênticas. Ao inundar os dispositivos com mensagens que tocavam em todos os temores possíveis do brasileiro – raciais, sociais, religiosos, o que for –, era praticamente garantido que uma quantidade suficiente de pessoas seriam capturadas para uma rede de influência que se retroalimenta e se torna cada vez mais coesa.

Em tempo: não estou falando especificamente das tecnologias algorítmicas usadas no disparo de propaganda (explícita ou implícita), embora elas sejam, é claro, um elemento capital do problema. Mas elas se articulam com todo tipo de dispositivo que dissemina opiniões, impressões e convocações: dos púlpitos aos editoriais, das mesas de bar aos seminários, da sala de jantar aos intervalos entre aulas. Quanto mais modulações diferentes um estímulo lograr, melhor ele se embrenha no tecido social e se naturaliza.

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Entre contrastes e semelhanças, o que se passa hoje no Brasil tem suas singularidades, que me parecem determinantes para esclarecer a questão da aceleração do horror, a “guerra total” a que estamos submetidos. Em primeiro lugar, estamos falando de um complexo com ao menos duas dimensões, como já mencionei. De um lado, os atos de barbárie estúpida, espalhados por várias regiões e no quotidiano das pessoas; do outro, a degradação institucional no Congresso, nos tribunais, em determinadas autarquias, no Executivo federal e também nas esferas inferiores – menção desonrosa para as ditas forças de segurança, tanto as forças armadas quanto as polícias.

É preciso olhar um pouco para o cenário em que tudo isso se desenrola, ou seja, o contexto, a massa preparada com fermento para se tornar o bolo de destruição hoje se expandindo tão rápido.

Primeiro ponto: não é difícil remeter a barbárie quotidiana ao discurso funesto que se expandiu assustadoramente no país a partir de 2014, mais ou menos, e que explodiu com a candidatura e eventual vitória do atual ocupante do Planalto, quatro anos mais tarde. A “foice no pescoço da Funai”, o envio de adversários à “ponta da praia”, o “fuzilar a petralhada”, e assim por diante, são sementes que se espalham e, juntando-se a outras emitidas por personagens menos notórios – alguns deles, inclusive, hoje nominalmente de oposição –, criam um terreno de naturalidade para que atos de violência e crueldade emerjam conforme as circunstâncias.

Veja bem: criam o terreno, mas o potencial para a violência e a crueldade estavam disponíveis, já compunham a massa complexa do dia-a-dia brasileiro; caso contrário, não poderiam vingar. O caráter claramente racial de muita dessa violência; a tentativa de acelerar a eliminação dos povos indígenas, e dos biomas em que vivem, para avançar o extrativismo; o elitismo presente em alguns desses crimes; a virada opressiva e aniquiladora de certa religiosidade. Nada disso foi inventado em 2018. Foi, isso sim, realçado, em detrimento de tantas outras características igualmente presentes no quotidiano do país, das formas de solidariedade à disposição em abraçar o outro, o diferente – o que é mais que tolerância e, sim, pode estar em baixa hoje, mas é um traço bastante frequente no brasileiro.

O segundo ponto é um pouco mais difícil de tratar; tentei fazer isso neste texto de 2018. Hoje, já está em plena vista muito do que, naquele momento, ainda tínhamos que tentar demonstrar. É evidente que, ao menos desde meados de 2020, o atual governo só se sustenta porque funciona como uma espécie de mediador, um “buffer” para que forças políticas de dominação local – leia-se centrão – e grupos de interesse encastelados, a começar pelo latifúndio, ampliem seu controle já enorme sobre o Estado e os recursos do país. O que esses grupos identificam como principal inimigo? Muito simplesmente, o conjunto de todos os ganhos trazidos pela redemocratização e os anos seguintes. Ganhos institucionais, como o SUS e o controle sobre as decisões de agentes públicos (e aí se contam desde os tribunais de contas até a LRF, com todos os seus defeitos). Ganhos sociais, como os programas de distribuição de renda, a proteção de terras indígenas, as cotas no ensino superior. E, principalmente, tudo que possa ser um obstáculo a uma economia primária e dependente. Como previsto, vamos sair dessa lamentável experiência com um país ainda mais oligárquico, parasitário e paralisado.

Assim, quando sentimos que algo parece estar se acelerando, trata-se de uma conjunção, uma espécie de aliança informal (às vezes formal) entre os aspectos mais nefastos da nossa realidade social, realçados e coordenados por um sistema de comunicação quase orgânico, e os aspectos mais atrasados – e também nefastos, por que não dizer – da nossa realidade política. Se muitas vezes você pensou que o pior de nós está no poder, é porque está.

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Resta tentar explicar por que estou falando em “guerra total” para me referir à aceleração dos horrores, sanguinolentos e institucionais. Com o risco de estar cometendo uma “reductio ad Hitlerum”, algo ainda mais delicado em se tratando de grupos políticos que evidentemente têm o fascismo como princípio ativo em sua fórmula, acho que não é absurdo enxergar no que está se passando hoje no Brasil a atitude de quem vê o fim, aliás a derrota, se aproximando e, sem poder apagar o rastro de seus crimes, escolhe o caminho inverso: intensificá-los. Nesse caso, é difícil não fazer um paralelo com “der Totale Krieg” (guerra total).

Guardadas as devidas proporções, foi o que se passou a partir de 1943, quando Goebbels fez seu chamado ao “Totaler Krieg”, em discurso no Sportspalast de Berlim. Naquele momento, já era evidente que as chances de vitória do Eixo na guerra eram ínfimas. Duas semanas antes, o exército alemão havia sido humilhado em Stalingrado, a campanha no norte da África estava praticamente perdida, a economia germânica já não tinha condições de fazer frente às demandas do front. A derrota era certa.

Na camada mais superficial de seu infame discurso, Goebbels decretou que o país não aceitaria os fatos e que estava disposto à completa aniquilação, como se ainda houvesse uma vitória no horizonte. Na realidade, o que estava sendo formalizado era um suicídio coletivo: o nazismo exigia da população como um todo um sacrifício, para esticar por um par de anos a sobrevivência de seu grupo criminoso.

Mas este resumo não dá conta de descrever o que se passaria nos anos seguintes, com o arquiteto Albert Speer como ministro dos armamentos: a escravidão dos prisioneiros de guerra (e dos campos de extermínio) foi intensificada, levando à morte por inanição de milhares de trabalhadores forçados; adolescentes foram enviados ao front sem treinamento para missões inviáveis; populações inteiras foram deixadas sem comida; toda matéria prima possível foi desviada para a produção militar. As vítimas se contam aos milhões, não só entre os povos ocupados, mas também entre os próprios alemães. E o mais importante: quanto mais os soviéticos de aproximavam de Berlim, maior era a disposição para a infâmia suicida.

Como eu disse, é preciso “guardar as devidas proporções”. Não estou dizendo que houve no Brasil algo semelhante ao Sportspalastrede. Pelo contrário, sua ausência é o que mais me perturba, porque acredito, sim, que o princípio de radicalização suicida que mobilizou Speer está disseminado, mesmo sem um apelo direto. É por não precisar da convocação explícita à barbárie que o caso brasileiro é ainda mais insidioso. Ao contrário do que ocorria num sistema totalitário como o alemão, não é preciso moldar o conjunto da população para uma ação coordenada, em bloco, comandada a partir de um ponto singular. Basta multiplicar a emissão de estímulos, que se reproduzem de um jeito que parece orgânico; quando chegam na ponta, esses estímulos entram em consonância com motivações e convicções, gerando atos ao mesmo tempo isolados e conectados. E mais: não é preciso arregimentar a todos, como nas massas uniformizadas de Nuremberg. Basta que, cá e lá, a destruição emerja, faça seu dano e perpetue a angústia e a confusão. E o medo.

No plano mais propriamente institucional, a coordenação é um pouco mais explícita, principalmente porque há um evidente núcleo de tratoramento do princípio republicano. Tendo conquistado um poder quase irrefreável e com o Executivo na coleira, o enorme pântano fisiológico do Congresso procura consolidar sua posição e garantir que ela dure além do atual mandato. Os casos das emendas de relator e da execução impositiva, são cristalinos: deixarão qualquer governo futuro à mercê de deputados que controlarão um naco maior do orçamento sem responder a ninguém. O que serviu na origem, ao que parece, para comprar apoio a um governo inepto, torna-se assim um mecanismo de perenização de poderes despóticos. Ao mesmo tempo, pautas caras aos lobbies mais retrógrados avançam com urgência, como a mineração em terra indígena ou o “PL do Veneno”, sem falar em todos os projetos que almejam implodir a educação e a saúde no país.

Resumindo: a intensificação da barbárie, esse “totaler Krieg” a que aparentemente estamos submetidos, responde à urgência que certos grupos de poder provavelmente estão experimentando de obter o tanto de espólio que puderem até a implosão do governo ou do país como um todo – que país consegue aguentar tanta morte, tanta fome, tanta frustração? E se não ficou evidente como a cacofonia dos constantes estímulos se reflete nos avanços de bancadas predatórias, grupos fisiológicos e corporações burocráticas sobre os recursos e as leis do país, eu coloco em palavras: a velocidade de renovação das pautas – no sentido jornalístico e no sentido administrativo – favorece a aprovação das piores medidas, porque a resistência não consegue se organizar. Quantas vezes as oposições não comemoraram a vitória de bloquear uma votação aqui e outra ali, enquanto passavam outras tantas igualmente anti-republicanas?

Talvez o sintoma mais grave e de efeitos mais duradouros da sanha antidemocrática seja a apresentação do documento preparado por três assim chamados “think tanks” ligados aos militares, com um projeto de terra arrasada para o Brasil a ser implementado até 2035. Em que pese o tom delirante de algumas das análises e o teor regressivos das propostas de política pública, é mais um caso em que se consolida como normalidade as forças armadas se apresentarem como partido político, com fundo programático – no caso, “desprogramático” – e, no lugar da “força de lei”, a força de um cano de canhão apontado contra nossas têmporas. A presença do vice-presidente da República no evento de lançamento do tal projeto é, não custa repetir, um acinte. Somado à tentativa de intervir no processo eleitoral, temos aí mais um caso de agressão à sociedade civil – mas até aí, nada de novidade em tempos de bolsonarismo.

Na verdade, neste caso, vale atentar mais para a própria apresentação do documento, a fanfarra em torno dele, associada à insistência em intervir nas eleições, com envio de “sugestões” ao TSE e reclamação de falta de “prestígio”. Do ponto de vista institucional, esse tipo de atitude corresponde às bravatas do próprio presidente, suas repetidas “motociatas”, das quais a mais funesta é essa última, a de Manaus – metrópole da Amazônia sob ataque e da população sem oxigênio. Muito mais do que o conteúdo de qualquer dessas iniciativas, dessas imagens, desses memes, o que conta é o estímulo afetivo, para correligionários e para inimigos. Aos primeiros, o que se diz é: “vocês têm rédea solta!” E aos últimos: “confundam-se! Protestem para cá e para lá! Tremam de medo!”

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Nesse meio-tempo, lemos algo quase todo dia sobre o perigo de que a patota hoje encastelada no Planalto tente um golpe de Estado no sentido clássico, ou quase. O golpe se aproveitaria do questionamento ao resultado das urnas para semear o caos, recorrendo ao extenso apoio nas forças armadas e nas de segurança estaduais, além de grupos civis armados – esses mesmos cujo armamento vira e mexe é encontrado nas mãos de criminosos comuns. A partir dessa situação de descontrole, conforme a expectativa de golpe clássico, o governo teria uma desculpa para fechar o regime.

É uma preocupação legítima, considerando todas as manifestações dessa intenção nos últimos anos, o motim cearense de 2019 e a prévia de sete de setembro do ano passado. Isso para não falar no exemplo americano, a invasão do capitólio em 6 de janeiro, agora sob investigação no Congresso de lá. Mas essa perspectiva de golpe bolsonarista, em geral, deixa de lado um detalhe quase prosaico. Um golpe tramado às claras, à vista de todos, não é bem um golpe; é antes uma ameaça ou uma promessa. Por isso, traz consigo a perspectiva de um acordo, já que alguém ameaçado é colocado diante da possibilidade de escolher entre diferentes caminhos.

Por isso, do ponto de vista deste texto, é mais importante se concentrar no próprio fomento a essa projeção do possível golpe. Uma vez mais, ele serve tanto para estimular a sanha agressiva dos apoiadores quanto para intensificar a confusão e o medo dos opositores. Enquanto houver ameaça de que as eleições sejam meladas, a mensagem está no ar: toda barbárie é aceitável, para não dizer desejável. Há sustentação institucional, há garantias das lideranças políticas. A impunidade é certa. Tudo somado, parece que não é no sentido clássico que estamos diante de um golpe – ou dentro dele; mais parece um extenso período de exceção não declarada, mas sugerida nas entrelinhas e reafirmada a cada episódio de horror impune e sancionado por meias-palavras dos centros de poder.

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Dito isto, é difícil não lançar a pergunta mais incômoda, que, devo confessar, não tenho ideia de como responder. Como agimos, sabendo da radicalização em curso, da guerra total em que o inimigo somos todos nós? Como se comportar no dia-a-dia, como bloquear a barbárie, como escapar da espiral de angústia?

A maior dificuldade, na tentativa de dar uma resposta a essas perguntas, é que o problema comunicacional não é uma via de mão dupla. Para o funcionamento regular dos mecanismos de manutenção de uma certa estabilidade social e institucional, não há nada que corresponda à cacofonia de estímulos, esses que constantemente mobilizam e desmobilizam afetos. A democracia, no sentido formalizado em que a conhecemos, depende, ao contrário, de uma comunicação capaz de produzir sentido e relevância, não entropia e espasmos violentos; opiniões e ideias, e não pavor e ódio. Assim, não adianta ficar procurando estratégias para contrabalançar o bombardeio simbólico com um outro bombardeio, mas de anticorpos.

Já ajudaria bastante se pudéssemos escapar da armadilha que consiste em reagir individualmente, repetidamente, a cada novo episódio, correndo atrás dos estímulos e passando de exasperação a exasperação, de desespero em desespero. Tenha a impressão de que o que de melhor se pode conseguir é que o vínculo estreito e reticular entre esses sucessivos atos horrendos e decisões políticas regressivas seja reconhecido, e que nosso repúdio seja estruturado, voltando-se para o conjunto como um todo. Seria bastante desejável se pudéssemos reinventar os estímulos que poderiam trazer à tona a capacidade de organização coletiva, de solidariedade, daquilo que tem sido chamado de tolerância, palavra talvez um pouco fraca demais para o que realmente é necessário.

Mas falar é fácil. Estamos cientes, em maior ou menor grau, de como todos esses episódios e todas essas iniciativas estão conectados. Constantemente, repetidamente, denunciamos a normalidade, aliás a hegemonia, de uma linguagem regressiva, obscurantista, fascista, no dia-a-dia do Brasil, e associamos esse estado de coisas a personagens que detêm poder e incentivam o avanço da barbárie. Se isso não basta para murchar o estímulo à guerra total, talvez seja apenas a expressão de que esse discurso segue forte no país e essa bomba só possa ser desarmada em um prazo mais longo, para nossa infelicidade.

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O que conduz à última questão: basta derrubar essas figuras funestas para afastar de vez a cacofonia? Bastaria reagrupar uma “coalizão democrática” em torno de um novo governo a partir do ano que vem? (Melhor não perguntar se existe disposição para uma tal coalizão em nossos grupos políticos.)

Dificilmente. Não foi o caso em outros países e não deverá ser aqui. Um dos núcleos do problema é que esse discurso, com um pé no fascismo e outro na tradição colonial, se legitimou suficientemente na sociedade brasileira para se fixar. A cacofonia ainda reverbera, mesmo que seus pólos emissores desapareçam – aliás, não vão desaparecer, só vão perder alguns de seus dispositivos e uma parcela de seus recursos. Ou seja, devemos reconhecer que não vamos retornar tão cedo a uma condição que poderia ser considerada normal. A bem dizer, um olhar um pouco mais detido sugere que já não há mais sentido no termo “normalidade”, se quisermos aplicá-lo ao que vivemos nas décadas de 1990-2000.

Para ficar só naquilo que foi transformado por esses quatro anos de barbárie oficial, há vários problemas já fáceis de identificar. Sabemos que os grupos radicalizados permanecem, seguirão com a mesma radicalidade e alguma forma de coordenação, ainda que os atuais líderes acabem sendo substituídos por outros, talvez até mais sagazes e, portanto, perigosos. O caso do professor de cursinho para agentes rodoviários federais que, filmado, ensinou a improvisar uma câmara de gás, sem o menor constrangimento, é ilustrativo. É preciso um estado muito degradado da mentalidade em um país para que alguém se disponha a falar daquela maneira em público, sendo registrado ou não.

O perigo maior, neste caso, é que se os membros mais ativos desses núcleos se sintam traídos e prejudicados quando o golpe clássico não ocorrer, pelo menos não com intensidade suficiente para sacramentar o triunfo da barbárie. A partir daí, dois caminhos opostos são possíveis, e ambos são perspectivas assustadoras. Eles podem reforçar seus laços, renovando a coordenação fascistizante; ou podem se fragmentar em pequenos grupos violentos, atuando espalhados pelo território e mais presentes no dia-a-dia da sociedade. Com fácil acesso a armas e um ódio dirigido a categorias vulneráveis, não é absurdo esperar o pior, em ambas as hipóteses.

Também devemos nos preocupar, e muito, com a renovação da fantasia característica dos militares – e ao chamar de fantasia não estou querendo dizer que não possa ter impacto real – de que constituem um dos poderes da república, ou melhor, um de seus alicerces. O tal documento dos “think tanks” é, além de uma ameaça (mal e mal) velada a todos nós, um sinal de que essa auto-imagem falsa, perigosa e inconstitucional segue sendo cultivada nos quartéis.

Outro elemento importante é o expressivo apoio ao projeto regressivo e recolonizador no meio empresarial, inclusive depois que se tornou evidente o caráter fraudulento da imagem intelectual e gestora de Paulo Guedes. Olhando nome a nome a lista de empresários que mergulharam com mais gosto no universo do bolsonarismo, encontramos um perfil ligado a setores pouco produtivos, como o comércio de grandes superfícies e a alimentação rápida, ao lado de exportadores de soja e gado. Uma característica que reúne esses nomes é sua pouca dependência da estabilidade econômica, social e política do país. É diferente, por exemplo, do que foram as lideranças do setor privado no passado (pense em Roberto Simonsen, Horácio Lafer etc.). E também é diferente de quem investe em mercados altamente tecnológicos, como os setores ligados à chamada “bioeconomia” – por mais questionável que o conceito possa ser, do ponto de vista ecológico. Para esses empresários da baixa produtividade, embora possam perder receitas com a instalação do caos e da pobreza, suas empresas são capazes de absorver o choque, seja por meio de demissão e achatamento de salários, seja batendo na porta de um governo amigo em busca de ajudas diretas. Diferentemente de grupos industriais, ou mesmo de serviços, da fronteira tecnológica, não precisam se preocupar com a concorrência de companhias que atuam em ambientes de muito maior segurança institucional e são pouco afetados pelas variações exageradas do câmbio.

Resumindo: o enraizamento da mentalidade autoritária e obscurantista no país é duplo: está tanto no dia-a-dia dos conflitos sociais quanto no âmbito daqueles que de fato controlam o país – isto é, sua economia, sua política, sua comunicação. Duplo, mas, é claro, articulado, já que um lado se alimenta do outro e os “donos do poder”, como diria Raymundo Faoro, têm todo interesse em fomentar uma sociedade atomizada, conflituosa e desesperançada. Livrar-se dessa mentalidade vai ser tarefa difícil e para muitas décadas.

Para terminar em tom um pouco menos funéreo, quero repetir o que disse antes, e que em condições normais nem precisaria ser dito: o Brasil não é, de modo algum, “essencialmente” autoritário e obscurantista, até porque essas “essências nacionais” são tolice, coisa digna dos Le Pen deste mundo, e nada mais. O autoritarismo e a violência que reconhecemos no nosso dia-a-dia se desenvolveram com o passar das gerações; são reforçados sempre que se reproduzem as estruturas de dominação e exploração herdadas do período colonial e transformadas a cada etapa histórica. Mas em outros planos a mesma sucessão de gerações produziu muito de criativo, gregário, solidário, nos interstícios dessas estruturas. Não é à toa que os estrangeiros nos veem como um povo tolerante e acolhedor.

Não faltam organizações, grupos e indivíduos que reafirmam e se alimentam desse Brasil solidário e cooperativo; somos, sim, perfeitamente capazes de atrofiar a abjeta e obscura aliança do fisiologismo com a barbárie, do fascismo com a predação; temos mais do que o necessário para articular um sistema sólido de cooperação e democracia. O terremoto político do último decênio teve o efeito lamentável de desagregar muito dessa trama de organizações que constituem a sociedade civil, abrindo o caminho para a avalanche de cacofonia e ruído que nos colocou na atual situação catastrófica e potencialmente suicida. Mas desagregação não é desaparecimento. Cá e lá, surgem novos cristais e novas coalizões. Inclusive, alianças até ontem improváveis. São sinais de caminhos que se abrem.

As ilustrações são desenhos de Käthe Kollwitz
Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, doença, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, história, modernidade, opinião, passado, Politica, reflexão, Sociedade, tempo, trabalho, transcendência, trem

Naturam expellas (Parte 3)

[N.B.: esta é a terceira parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio ocorrido semana retrasada em Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios.]

Leia também a PARTE 1.

Leia também a Parte 2.

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Mestre e possessor, pois sim, mas porque “liberto” dos grilhões de uma existência “meramente natural”. Um dos pontos cruciais da construção de uma modernidade faustiana que tentou “expulsar a natureza” é a idéia de que “natureza” (já não mais falando em “estado de natureza”) corresponde a um contexto de amarras da necessidade, à qual se oporia a engenhosidade humana e, em particular, a razão. De estado a superar, passa-se de substrato; a abafar, acrescente-se.

Encontramos idéias deste tipo, de maneiras ligeiramente diferentes, em três alemães de mente para lá de poderosa: Kant, Hegel e Marx.

O mestre de Königsberg, primeiro, para respeitar a cronologia: no texto Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolítico, de 1784, Kant faz uma espécie de síntese da idéia prometéica do humano como animal nu, dependente de suas próprias técnicas, e da fórmula pascalina da cultura (ou hábito) como “segunda natureza” (idéia que será retomada criticamente na obra de Bernard Stiegler, mais recentemente).

Ele afirma, então, que estava nas finalidades da natureza (que “não faz nada por acaso”) que o ser humano:

obtenha inteiramente de si próprio tudo que ultrapassa o agenciamento mecânico [mechanische Anordnung] de sua existência animal e que não participe de nenhuma outra felicidade e nenhuma outra perfeição senão as que criou ele mesmo, livre do instinto, por sua própria razão.6

Aqui, a natureza não precisou de um Criador punitivo para ela mesma querer expulsar o humano de seus mecanismos imanentes, isto é, seu “agenciamento mecânico”. Mas é uma estranha fórmula: como pode a natureza ter desejado a extração de uma de suas criaturas, tornando-a tão frágil? Por que a fragilidade, que implica a sujeição às forças naturais, deveria ser vista como “porta de saída”da natureza, e não uma inserção ainda mais intensa, por sofrida?

O tema volta mais tarde na obra de Kant, na Crítica da Faculdade de Julgar e nos Fundamentos da Metafísica dos Costumes. A questão, ele diz, neste último texto, é que a natureza é o reino da necessidade, onde todo fenômeno obedece a leis fixas da matemática, da física e de tudo aquilo que merece o epíteto “ciências da natureza”. Não há liberdade na natureza, porque a liberdade pertence toda à razão. Se não é possível “expulsar a natureza” propriamente, ela está, em todo caso, expulsa do reino onde o humano age com sua maior desenvoltura, enquanto humano, livre e poderoso: o reino da razão prática e dos costumes.

A mediação entre esses dois reinos, que o velho prussiano faz questão de resgatar como modo todo seu de reconciliação, é o da faculdade de julgamento, aquela que discerne valores: no fundo, tudo gira em torno de um gesto inteiramente humano de valorar: cabe ao humano “dar sentido” à natureza. Por sinal, quando Marcuse, séculos mais tarde, for tentar pensar uma crítica ao mesmo tempo ecológica e marxista ao capitalismo, é nesse texto de Kant que ele vai buscar a fonte de inspiração. Porque Kant vê na natureza uma intencionalidade sem intenção, isto é, a capacidade de formar objetos de tamanha coerência que, pensaríamos, só podem ser frutos da intenção…

Como se vê, um certo trabalho de linguagem continua servindo de véu entre nossa civilização e uma dada natureza que continuamos nos esforçando por expulsar, mesmo quando estamos reconciliados com ela. Um trabalho de linguagem e também um empréstimo de intencionalidade, um certo ranço de antropomorfismo que se insere pelas frestas do pensamento racionalista, driblando o pensador.

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Mas como este texto não é uma exegese de Kant, vamos seguir em frente: essa mesma distinção entre a necessidade do natural e a liberdade do racional aparece de forma modificada em Hegel, autor que foi muito influenciado pelos textos dos primeiros economistas políticos, franceses como britânicos (Hegel leu muito o escocês Adam Smith). O animal, como o humano, têm necessidades de ordem natural, que são limitadas, mas o humano possui um outro tipo de necessidade, muito mais universal, que se subdivide em particularidades e aparece como “conforto”, depois “luxo”, e assim por diante (Princípios da Filosofia do Direito, parágrafos 191 e seguintes).

Essas necessidades sociais (“conjunção de necessidades imediatas ou naturais com necessidades mentais que surgem de idéias”) são preponderantes no humano como efeito de sua universalidade. Por esse motivo, diz o filósofo, “o momento social carrega em si o aspecto de libertação, ou seja, a necessidade natural estrita é obscurecida e o ser humano se ocupa de sua própria opinião (…) e com uma necessidade que ele mesmo produz, em vez de uma necessidade externa” (parágrafo 194).

Como é que se produz essa liberdade tão universal e tão particularizável? Ora, dirá o leitor alemão da obra de Locke e Smith, é trabalhando que conseguimos o que queremos! Assim,

através do trabalho o material bruto diretamente fornecido pela natureza é adaptado especificamente a esses fins numerosos por toda sorte de procedimentos. Agora essa mudança formativa confere valor a fins e lhes dá sua utilidade, então o homem, no que ele consome, está sobretudo atento aos produtos dos homens. São os produtos do esforço humano o que o homem consome” (par. 196).

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Note-se que o texto de Hegel seria perfeitamente capaz de ser usado para justificar a mineração tal como é feita no Brasil. O material “fornecido pela natureza” é bruto. Os procedimentos, isto é, a técnica, o “engenho e a arte”, diria Camões, o especificam, engendram nele os valores e as utilidades. No mundo do consumo humano, os entes são objetos do esforço humano: a natureza ficou em outro plano, uma vez que foi transformada.

Mas não se pode encontrar em Hegel uma formulação precisa que explique o que devemos fazer com a produção em massa de rejeitos, lixo, poluição e dívida. Teríamos, talvez, de voltar à Fenomenologia do Espírito para afirmar que falta mais um Aufhebung à substância universal? Afinal, se a economia do “produtos do esforço humano” é tética, não seria o sufocamento do humano sob os imperativos de produtividade, as montanhas de lixo e a acumulação da dívida uma instância antitética?

E seria mesmo o caso de se perguntar como se daria essa nova superação, e o quanto seria possível manter o tipo de discursividade que marcou a modernidade ocidental, uma linguagem que, como lembra Viveiros de Castro, é proposicional de cabo a rabo. Teríamos de incorporar, talvez, aos desdobramentos do espírito uma etapa de expressão que recuperasse a linguagem dos mitos, capaz de reintroduzir uma racionalidade mais circular e propriamente universal (para além da universalidade que encontramos no discurso hegeliano das “necessidades sociais”)?

Está aí algo a pensar, mas não no escopo deste texto…

* * *

Derrubada do Pau Brasil

Último alemão desta seqüência, o pai do socialismo científico, o incontornável mouro, Karl Marx. Já podemos lhe dar razão quando, ainda jovem, nos seus manuscritos de 1844, critica Hegel por só ver o “lado positivo” do trabalho. O lado negativo é a proletarização, isto é, o fato de alienar-se o trabalhador dos meios de produção:

Hegel concebe a autocriação do homem como um processo, a objetificação como negação da objetificação, como alienação e supressão dessa alienação; assim, ele apreende a natureza do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque real, como resultado de seu próprio trabalho. O que possibilita o comportamento real, ativo, do homem para consigo mesmo (…) é que ele exterioriza realmente todas as suas forças genéricas (…) e isso só é possível hoje sob a forma da alienação (Esboço de uma Crítica da Economia Política).

Ironicamente, houve quem visse grande parte desse lado negativo. Exemplo: o próprio Adam Smith, com um trecho como este:

A compreensão da maior parte das pessoas é formada pelas suas ocupações normais. O homem que gasta toda sua vida executando algumas operações simples (…) não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito inventivo (…). Ele perde naturalmente o hábito de fazer isso, tornando-se geralmente tão embotado e ignorante quanto o possa ser uma criatura humana. O entorpecimento de sua mente o torna não somente incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou terno, e, conseqüentemente, de formar algum julgamento justo (…). A uniformidade de sua vida estagnada naturalmente corrompe a coragem de seu espírito (…). Esse tipo de vida corrompe até mesmo sua atividade corporal, tornando-o incapaz de utilizar sua força física com vigor e perseverança em alguma ocupação que não aquela para a qual foi criado. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida às custas de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais.” (A Riqueza das Nações, Livro V)

Mas é interessante notar como, na obra magna de Marx, O Capital, dois momentos distintos na relação da natureza com o trabalho são visíveis: no Livro I, o trabalho, “criador de valores de uso”, é “condição de existência do homem” e “necessidade natural eterna de mediar o intercâmbio material entre homem e natureza”. O trabalho também é “dispêndio de músculo e nervo” e “apropriação do natural para os carecimentos humanos”7. Nesse sentido, todas as formas sociais implicam algum tipo de trabalho.

Para quem está tratando da “expulsão da natureza”, muitas coisas aqui são interessantes: primeiro, cabe notar que Marx já começa de um ponto em que outros, antes dele, tiveram que penar para chegar, que é a atividade de gestação de valores (no caso, valores de uso). É a atividade que vimos, sob variadas formas, como mediadora, mas também inseparável de modalidades da linguagem e da técnica. O humano, aqui, reafirma-se como tal em um processo constante de extração dos seus valores e, portanto, da sua civilização (ou outras palavras quase sinônimas, como cultura, sociedade etc.).

A produção de valor é uma apropriação do natural, isto é, uma sobredeterminação, a tal ponto que, inserida no mundo que o humano gestou para si próprio, o que está sobredeterminado sobrepuja e chega a apagar o natural de onde foi extraído. Novamente, o natural desaparece do plano do discurso e, por extensão, do visível. Não é surpresa que tenhamos nos tornado incapazes de enxergar o que nossa própria atividade faz com a natureza, em termos de produção de lixo…

Slavesproducingsugar

Marx, no entanto, introduz brevemente (para depois deixar de lado) um elemento que estava ausente das análises anteriores: o corpo. Afinal, engrendrar o mundo social (dos valores de uso) através da apropriação do natural é um dispêndio de músculo e nervo, ele diz. É o consumo do corpo humano, que se exaure em nome da produção da civilização humana. O humano como natural (digamos assim) sendo parasitado pelo humano social…

Em outro texto, logo nas primeiras páginas dos cadernos conhecidos como Grundrisse, Marx chega a dizer que toda produção é consumo e todo consumo é produção: ao consumir, digamos, comida, o humano produz seu corpo; ao produzir essa mesma comida, é preciso consumir seu corpo. E assim por diante, ou seja: um constante atravessar da fronteira entre o natural e o social, uma mediação entre esferas mantidas, ainda assim, separadas, sem coincidir propriamente.

E também no Capital, encontramos durante a crítica à teoria da renda de David Ricardo aquela que é provavelmente a mais clara expressão – infelizmente não desenvolvida nesse sentido – dos ruídos entre a simbolização alienante e as dinâmicas de uma natureza feita de potência. Eis o trecho dotado de maior beleza poética, se posso me expressar assim:

Imaginemos agora as quedas-d’água, com as terras a que pertencem, nas mãos de pessoas que são consideradas proprietárias dessa parte do globo terrestre, como proprietários fundiários, e que resolvam excluir o investimento do capital na queda-d’água e sua utilização pelo capital. Elas podem permitir ou negar a utilização. Mas o capital não pode criar por si a queda-d’água. O sobrelucro que se origina dessa utilização da queda-d’água não se origina, portanto, do capital, mas do emprego de uma força natural monopolizável e monopolizada pelo capital. Nessas circunstâncias, o sobrelucro se transforma em renda fundiária, isto é, recai para o proprietário da queda-d’água.8

lama rio doce aimores

Ou seja: para Marx, o capital, que, para todos os efeitos, é artifício e linguagem (que se apresenta preferencialmente sob forma simbólica no dinheiro), consegue apropriar-se, por essa mesma via simbólica, das forças (dinâmicas, poderíamos dizer) naturais, de “partes do globo terrestre”, para sua própria linguagem. Isto é a renda, remetendo à origem rousseauísta da desigualdade entre os homens… Este trecho já me impressionava bastante. Agora, com o ecocídio do Rio Doce, me impressiona mais ainda!

Mas, na verdade, a passagem realmente interessante do Capital é aquela do Livro III em que ele afirma que o reino da “verdadeira liberdade só começa, de fato, quando o trabalho termina”. Afinal, o trabalho é “determinado pela carência”, portanto “reino da necessidade”. Assim, “além dele começa o desenvolvimento das forças humanas, que vale como fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, entretanto, só pode desabrochar tendo o reino da necessidade como base”.

O que é interessante aqui é que o trabalho já não é mais a fonte de uma liberdade humana. Nem mesmo o trabalho não-alienado. A atividade humana livre está além do trabalho, mas ainda assim se constitui sobre uma base de trabalho e, portanto, de necessidade. A relação entre o natural e o social, o artifício, o construído, é muito mais tensa nesta passagem do que em qualquer outra. Afinal, o que determina os ganhos de liberdade é a redução da jornada de trabalho, algo que ele diz claramente.

Millbank workhouse

(Leia-se a partir desse tema da liberdade o célebre texto de Keynes sobre as possibilidades econômicas de nossos netos, publicado em 1930: aparece novamente o mesmo tema do trabalhar menos, mas justamente essa redução do trabalho poderia implicar uma liberdade que tornaria inviável a socialidade com a qual nos acostumamos.)

Portanto, aquilo que aparece a Marx como verdadeira liberdade está em relação tensa e invertida com o processo que parece estar mais ligado à liberdade nos autores que vimos anteriormente. O processo pelo qual se “expulsa a natureza” não liberta, ainda que a liberdade se assente sobre ele. O que se faz em relação à natureza nesse reino da verdadeira liberdade?

E mais: se, como previu Keynes (talvez se esquecendo da infinita universalidade e particularização dos desejos artificiais descritos por Hegel), temos produtividade suficiente para manter em níveis mais, digamos, seguros a atividade econômica que “expulsa a natureza”, então qual é o imperativo que faz com que queiramos expandi-la além de todos os limites?

Temos aí, certamente, mais um fenômeno de sobredeterminação, de valores, linguagem, trabalho e técnica. Mas é justamente isso que nos traz ao século XX, quando nuvens carregadas começam a se formar sobre a noção dessa atividade humana que nos torna “mestres e possessores” da natureza, “libertados dos constrangimentos naturais” pelo trabalho e assim por diante. Quando a ênfase passa à análise do outro lado, a escravidão, o colonialismo, o imperialismo, as guerras, a desumanização. É o século de Oswald Spengler, Hannah Arendt, Adorno e Horkheimer, Lewis Mumford.

Continua na Parte 4.

Leia também a Parte 5.

Leia também a Parte 6.

NOTAS

child labour

6.Die Natur hat gewollt: daß der Mensch alles, was über die mechanische Anordnung seines thierischen Daseins geht, gänzlich aus sich selbst herausbringe und keiner anderen Glückseligkeit oder Vollkommenheit theilhaftig werde, als die er sich selbst frei von Instinct, durch eigene Vernunft, verschafft hat. Die Natur thut nämlich nichts überflüssig und ist im Gebrauche der Mittel zu ihren Zwecken nicht verschwenderisch.

7.Este ponto do discurso de Marx mereceria uma atenção maior. Sou da opinião de que todo O Capital pode ser lido como uma teoria da socialização do corpo, através do conceito de trabalho (origem do valor-trabalho, portanto) como dispêndio de músculo e nervo. Onde há valor, há socialização (simbolização, antes de mais nada) do corpo.

8.Denken wir uns nun die Wasserfälle, mit den Boden, zu dem sie gehören, in der Hand von Subjekten, die als Inhaber dieser Teile des Erdballs gelten’ als Grundeigentümer, so schließen sie die Anlage des Kapitals am Wasserfall und seine Benutzung durch das Kapital aus. Sie können die Benutzung erlauben oder versagen. Aber das Kapital aus sich kann den Wasserfall nicht schaffen. Der Surplusprofit, der aus dieser Benutzung des Wasserfalls entspringt, entspringt daher nicht aus dem Kapital, sondern aus der Anwendung einer monopolisierbaren und monopolisierten Naturkraft durch das Kapital. Unter diesen Umständen verwandelt sich der Surplusprofit in Grundrente, d.h. er fällt dem Eigentümer des Wasserfalls zu.

placa de pare

 

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A aposta de Varoufakis

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Uma frase de Yanis Varoufakis grudou na minha cabeça logo no começo do ano, quando o Syriza venceu as eleições e o economista-motoqueiro se tornou ministro. Com o tom confiante que lhe é peculiar e uma linha de raciocínio que denuncia sua formação em teoria dos jogos, ele assegurou que, dentro de alguns meses, um acordo seria alcançado com a troika. Um acordo muito melhor do que o que estava na mesa, bem entendido – e obviamente infinitamente mais favorável aos gregos que o resultado final que agora conhecemos.

Como ele tinha tanta certeza? Os negociadores, dizia Varoufakis, estavam plenamente conscientes de que, se esse acordo não fosse alcançado, o governo do Syriza na Grécia cairia. E o próximo grupo – digamos assim – heterodoxo com que os credores europeus teriam que se sentar para negociar seria o Front National francês. É evidente que a democrática Europa não gostaria de correr o risco de ter um partido proto-fascista no poder de um de seus principais países, não? Um partido ultra-nacionalista, xenofóbico e, para horror da boa sociedade, ferrenhamente eurocético!

Essa declaração ficou ruminando na minha cabeça porque, desde o início, me pareceu um pouco ingênua. Quem garante a Varoufakis que essa abstrata entidade que (não) atende pelo nome de “troika” – e que agora tem sido chamada de “as instituições” – está mais disposta a aceitar um consórcio de grupos de esquerda nominalmente radical, mas na prática bastante moderado, do que um agrupamento de gente proto-fascista? O que a história tem a nos dizer sobre isso? Já adianto: o oposto. Com efeito, entrevistado pela revista New Statesman, Varoufakis revelou seu assombro com a despreocupação da aristocracia continental quanto à radicalização do ambiente político. Mas volto ao assunto mais abaixo. Continuar lendo

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A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

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O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

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What if…

Eu tentava há dias formatar na cabeça um texto sobre aquilo que chamo de “o paradoxo europeu”, se me permitem sair batizando problemáticas. Mas, como sabe quem leu a postagem anterior, minha cabeça não se encontrava no estado mais propício para formatar o que quer que fosse. Além do mais, um tema com nome tão pomposo quanto “o paradoxo europeu” exige um texto à altura, rigorosamente argumentado, cheio de sutileza e argúcia, palavras difíceis, o escambau. Mas, se é para colocar em poucas palavras, posso dizer o seguinte:

Quando vim morar na França, tinha uma idéia que, se não chegava a convicção, parecia fazer muito sentido. Acreditava eu que, depois de tanto sangue e tantos crimes, tantos traumas, tantas guerras, o continente europeu, obrigado a encarar a decadência e o crescimento político e econômico de suas antigas colônias, teria aprendido a tornar-se cosmopolita, tolerante, definitivamente civilizado. Antes que me tomem por um pobre ingênuo, aviso que essa forma de ver não estava tão equivocada assim.

Os europeus têm uma tendência ligeira mas perceptivelmente menor do que nós, americanos (falo do continente, por favor) para entrar em farras e modismos como foi, por exemplo, o falecido Consenso de Washington. Antes de cometer suas enormes besteiras, eles debatem muito, se questionam à exaustão, entojam uns aos outros com conceitos e teorias adquiridos por meio de leituras exaustivas dos autores mais qualificados e presunçosos. Os europeus, apesar de ainda se considerarem o centro do mundo (atire a primeira pedra…), se interessam pelas culturas mais distantes, não raro se apaixonam por uma culinária, língua ou dança muito exótica (para eles; e no meio dessa salada está a nossa). Verdade seja dita, o europeu médio, e em particular o francês, toma esse interesse (muito simpático, por sinal) como um selo de autoridade para definir, em poucas palavras, o que é ou deixa de ser tal ou tal país. Infelizmente, porém, eles não aceitam ser desmentidos nem mesmo por alguém que nasceu e cresceu no lugar em questão. Mas, nesses momentos, o melhor a fazer é contar até dez e mudar de assunto.

Mas é claro que não seria esse elogio mitigado que inspiraria o texto que eu ruminava na semana passada. Não sou de distribuir elogios gratuitamente. A triste realidade é que há tempos ficou claro que o aprendizado desse povo teimoso ficou muito aquém do necessário. O holocausto mal conseguiu abafar um antisemitismo renitente, que transparece em pequenas frestas dos discursos de todos e na quase indiferença com que se tratam os repetidos ataques a sepulturas judaicas, entre outras pequenas barbaridades. A flutuação interminável das fronteiras, o muro que rasgou Berlim, a Cortina de Ferro que, pela enésima vez, cindiu radicalmente o continente, nada disso serviu para que as populações abraçassem com honestidade a idéia de uma União Européia digna do nome. E mal adianta explicar que países pequenos como os europeus tendem à irrelevância, se continuarem se estranhando, num mundo altamente competitivo e de grandes blocos. Para encerrar, pergunte se alguém por aqui sente remorso pelos inúmeros genocídios cometidos por seus ancestrais em três continentes: a resposta será um ar se surpresa e algo como um “nunca pensei nisso”…

Até aqui, tratei no máximo de anedotário, curiosidades pitorescas, embora às vezes irritantes. O que há de verdadeiramente triste é constatar que o repertório de grandes tolices que os europeus têm para praticar ainda não está esgotado. Movimentos obscurantistas de bloqueio ao avanço da integração continental; a incrível volta do fascismo na Itália, patrocinada por ninguém menos do que Silvio Berlusconi, que dispensa apresentações, e implementada por pequenos governadores e prefeitos que culpam imigrantes e turistas pela notória e exagerada falta de educação dos italianos; o abandono de séculos de cultura e civilização, em nome de uma admiração cega e infantil pelo famoso american way of life, patente no estilo fashion victim de Sarkozy, talvez a figura mais medíocre e molenga da política mundial; a incapacidade, incrível numa terra tão cheia de sábios, de aparecer com respostas sensatas a problemas como a pirataria pela internet ou o afluxo interminável de imigrantes, o que resulta em medidas claramente antidemocráticas e discriminatórias. Se, no século XIX, EUA, Brasil e Argentina tivessem agido assim, os Europeus teriam comido uns aos outros, um enorme continente de Ugolinos. Eis meu “paradoxo europeu”. Esse, sim, é um aspecto que me surpreende profunda e negativamente numa terra com uma história tão conturbada quanto a européia.

Mas a cereja do bolo é aquele que me deu o ensejo de finalmente escrever este texto e, ainda por cima, inspirou a idéia do “E se…” do título. Jörg Haider, que morreu neste fim-de-semana ao enfiar seu carro num poste a 140 km/h, era provavelmente a figura mais preocupante de todas, ao menos para as consciências democráticas. Muito mais do que Jean-Marie Le Pen, que, com o perdão da falta de respeito, não passa de uma múmia gagá. Haider, ao contrário, tinha um carisma raro, parecia fisicamente (e se comparava a) Tony Blair, era jovem, conhecia os caminhos da política. Não gostava nada de imigrantes, considerava os europeus não-austríacos como rivais, admirava as Waffen SS e não considerava particularmente condenáveis as coisas que aconteceram em seu país entre 1938 e 1945 (chegou a chamar os campos de extermínio, como Auschwitz, de “campos de punição”…).

Muita gente o considerava uma espécie de novo “você sabe quem”; mas o compatriota mais famoso de Haider fez seu nome na cena política alemã numa época em que a injustiça do tratado de Versalhes, a hiperinflação e a Grande Depressão fizeram da terra de Goethe um país de gente ressentida e sedenta por vingança. Mesmo assim, cabe lembrar que o NSDAP não conseguiu mais de 35% dos votos limpamente. Para tornar-se partido majoritário, teve de incendiar o parlamento (Reichstag, um edifício lindo, por sinal) e jogar a culpa nos comunistas. Já Haider andava na casa dos 11% com sua Aliança para o Futuro da Áustria (nome que levanta desconfianças, não?), o que, somando os votos se seu antigo partido, também de extrema direita Partido da Liberdade da Áustria (antigo partido de Haider), dá aos obscurantistas e revisionistas algo como um quarto das cadeiras e um lugar na coalizão que governa. Trocando em miúdos, era uma força política cada vez maior, por incrível que pareça.

Mas eis que morreu Jörg Haider, aos 58 anos, figura mais emblemática do retrocesso europeu. É claro que o eleitor reacionário não vai mudar de posição, mas a perda de uma figura tão carismática é sempre um golpe duro. Andam dizendo que os dois partidos extremistas talvez consigam reatar, sem a figura acachapante de Haider, o que os tornaria, aí sim, de fato fortíssimos na cena nacional austríaca. A ver-se. Mas eu, de minha parte, lendo sobre o assunto, não consegui evitar a lembrança de uma mania tipicamente americana, que aliás é título (ou era, as coisas mudam tanto) de uma série de revistas em quadrinhos da Marvel: “What if…

Várias vezes, já me perguntei o que teria sido do mundo se, por exemplo, Marco Aurélio tivesse conquistado as terras ao norte do Danúbio. Se os portugueses não tivessem conseguido expulsar Villegagnon da Guanabara. Se os ingleses tivessem consolidado seu domínio na França, durante a Guerra dos 100 anos. Se Amaury Kruel não tivesse mudado de lado na última hora e 1964 marcasse não um golpe, mas o início de uma guerra civil. Se os alemães tivessem atacado para valer em Dunquerque e aniquilado o exército britânico. Se, e isso seria ainda mais engraçado, quando se escolheu a língua oficial dos EUA, em vez de dar inglês por um voto contra o alemão, fosse o contrário. E por aí vai.

Mas a questão mais terrível que se coloca é a seguinte: e se o jovem Adolf Hitler tivesse sido abatido quando era cabo do exército austríaco na Primeira Guerra Mundial? Se ele jamais pudesse escrever Mein Kampf, queimar livros e exterminar minorias? Não teria havido Segunda Guerra? Não teria existido a catarse suicida da Europa, bombardeios e carnificinas mútuos? O que teria sido a história do século XX sem Muro de Berlim, sem Comunidade Européia, sem Plano Marshall? Israel jamais teria sido fundado, provavelmente. Toda a reflexão, todo o sentimento de culpa, toda a vergonha pela colaboração com o nazismo, forte em todos os países que a Alemanha ocupou e mesmo em alguns que seguiram livres, nada disso teria acontecido. A maneira de pensar elitista e, sem dúvida, racista do século XIX, que até o holocausto nunca tivera necessidade de esconder o rosto, ganharia mais um bom meio século de hegemonia escancarada. Certamente, menos sangue teria sido derramado no período infernal do domínio de Hitler. Mas também cabe se perguntar quanto sangue a mais não teria sido derramado depois. E eis uma pergunta mais difícil, porém talvez mais importante: a bomba, não tendo estourado em 1939, demoraria quanto tempo a mais para estourar? E teria estourado mais forte, com armamento atômico já desenvolvido?

Ninguém sabe, é claro. Mas sabemos, isso sim, que hoje, no início do século XXI, uma outra bomba está armada. Desta vez, o crescimento das hostilidades é mais lento e mais disfarçado. O mundo é outro, mais global, mais competitivo, mais exausto por uma exploração predatória e irresponsável. Há mais gente para se sentir injustiçada, há mais gente para empobrecer com a crise. Mas a idéia de que haja inimigos espalhados pelo mundo inteiro está voltando à moda. Jörg Haider, a figura emblemática, na Europa, deste tipo de pensamento, acaba de morrer. Talvez os ânimos se acalmem um pouco por enquanto, ao menos na Áustria, na falta de um grande líder irresistível.

Mas e depois? E se (what if…) surgir um outro? E nem precisa ser aqui. Os Estados Unidos, que não têm a mesma história, nem a mesma cultura, nem os mesmos problemas, nem o mesmo “paradoxo” da Europa, estão loucos, mal se segurando nas calças, para entrar pelo mesmo caminho de sandices. E já que atravessamos o Atlântico, por que não estender as perguntas: e se Obama não for eleito? E se for eleito, mas não puder assumir? E se…

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Panela de pressão apitando em desespero

Guerre
A Europa carrega nas costas o peso dos crimes da História; senão todos, pelo menos quase. Isto pode ser verificado em todas as catedrais e castelos, bulevares e cafés. A beleza das árvores no outono pode emocionar, mas sussurra constantemente no ouvido a memória do colonialismo, do fascismo e da Inquisição. O Louvre, além da Vênus e da Gioconda, ainda tem nas paredes, mesmo fenecidas, as manchas de sangue da noite de São Bartolomeu. O Duomo de Florença é no fundo um compêndio da ganância dos Medici, assim como a Praça de São Pedro reflete a história para lá de profana do papado. E o museu do Prado, para não esquecer a Península Ibérica, acima de todas as suas telas de Velásquez e El Greco tem penduradas as vítimas hereges e judaicas, como os espectros que rondam o Tiergarten de Berlim.

Mesmo os crimes cometidos na África, na América e na Ásia são reflexo da crueldade dos europeus, esses seres pálidos de terras frias e escuras, que venderam, geração após geração, suas almas em troca de ouro e glória. Os crimes dos americanos no México, no Caribe, na Coréia, no Vietnã, no Iraque, também ecoam, ainda hoje, a sede de sangue dos conquistadores europeus. É a ação do chamado Ocidente (um conceito obscuro capaz de incluir todos os habitantes de países ricos que não têm pele escura ou olho puxado).

Toda essa sanha destrutiva custou caro ao continente. Eles chegaram à beira do abismo mais de uma vez, a última delas há pouco mais de meio século. Perderam grande parte de sua riqueza, suas colônias, sua predominância internacional. Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Áustria, Portugal. Todos eles, países que chegaram a se considerar donos de um belo naco do mundo – ou de todo ele. Centros de cultura, comércio e poder. Todos submetidos ao jugo de sua ex-colônia norte-americana e, por algum tempo, a seu antigo patinho feio, a Rússia.

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O que restou do banho de sangue foi um continente fascinante, pelo que tem de cruel e pelo que tem de admirável. Ao contrário do que disse o Otto Lara Resende (ou será que foi o Nelson Rodrigues, se fazendo passar pelo Otto? Isso acontecia…), não é uma burrice aparelhada de museus, mas o museu vivo das burrices e dos brilhantismos que nem sempre se distinguem claramente. É o continente que inventou o humanismo com as ferramentas do Terror e da retórica esnobe. Foi a primeira parte do planeta a romper aristocraticamente com a aristocracia, a disseminar tiranicamente os valores democráticos, a abrir a sociedade às mulheres, sem abrir mão do patriarcalismo. Neste rabicho da Eurásia surgiu a idéia de que todo indivíduo tem direito à educação: os ricos e os pobres, os brancos e os imigrantes; educados, os trabalhadores puderam render melhor nos momentos da espoliação. A Europa investiu mais do que ninguém em transporte de massa, que leva seus subjugados para subúrbios desumanos como os nossos – bom, talvez não como os nossos.

A amplitude das contradições chega a ser fantástica. Se for para comparar com o Brasil, eu diria que nossas contradições são mais comportadas, reproduzindo na ponta dominada uma imagem de tamanha incompatibilidade. Note-se a civilidade, e quão brutal essa civilidade pode ser: quando há um problema, e Deus sabe que há muitos, eles sentam, discutem e resolvem como der. Nem que isso envolva ameaças de aniquilação e fantasmas de guerras passadas. A cultura européia, com toda sua arrogância e xenofobia, e talvez até mesmo por causa dela, é mais aberta do que a nossa. Como pode? Apesar de uma infinidade de atitudes de segregação e desrespeito que se vêem quotidianamente nas ruas de Paris, ainda assim os franceses se dedicam a iniciativas de aproximação com outras culturas, religiões, civilizações, bem mais que os brasileiros.

No Brasil, quando se discute qualquer assunto, a comparação é inevitável: “no Brasil é X, na Europa (ou nos EUA), é Y”. Já o europeu discute assim: “Aqui X, no Egito é Y, em Madagascar, Z, no Japão W, no México…”. O mais notável é que na verdade eles estudam geografia mais ou menos como nós, mas não acham que seja perda de tempo. É um exercício pelo qual reafirmam para si próprios, e para os periféricos deste mundo, sua superioridade moral (já que a econômica e a bélica, não dá mais). Assim, absorvem aquilo que é útil para eles e elevam à categoria de descrição fiel do universo. É autoritário e, ao mesmo tempo, aberto.

Mesmo assim, parece que o momento atual está fazendo transbordar isso tudo. Devo dizer que estou assustado, sem querer soar sensacionalista. Há um ódio latente que é difícil não notar, e que tem justificado um desejo de retornar a narrativas bem mais fechadas (e tão autoritárias quanto). Aqui há olhares de desprezo, acolá de agressividade. De um lado há sobrenomes tradicionais da Provença ou de Champagne, do outro filhos do Maghreb e da Costa do Marfim. Houve por algum tempo uma ilusão de integração e assimilação que exala uma certa beleza. Por sinal, chegou a ser verdade alguns casos. Por exemplo, durante um curso da faculdade, estudantes de origem islâmica debatem com o professor no tom mais aberto e intelectualmente honesto possível.

Fora da sala de aula, isso não acontece dessa maneira. Os grupos islâmicos estão se tornando mais herméticos e muito se fala em ressentimento. Há famílias que recusam a entrada de médicos e bombeiros em seus enclaves, sentindo-os como se fossem imposição de um império colonial. Não admitem estudantes não-islâmicos em suas escolas, e chegam a expulsar famílias que colocam seus filhos em escolas públicas, e portanto laicas. Afastam-se de todo contato com o país em torno. A descrição é desagradável, mas o mais desagradável é perceber que por muito tempo não acontecia assim… e agora está acontecendo.

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A explicação pode estar no lado inverso, e é por isso que ele me assusta mais. É mais ou menos normal que populações imigrantes procurem buscar segurança no próprio seio (claro, com um certo bom senso), principalmente quando são grupos excluídos socialmente e economicamente desfavorecidos. O que observo, porém, é um recrudescimento do ódio nos europeus, esses mesmos que há algumas gerações desenvolveram os conceitos de tolerância, humanismo, igualdade e assim por diante, pincelados acima. As comunidades muçulmanas se fecham sobre si próprias e os próprios europeus se fecham também, não só para os muçulmanos, mas para os próprios conceitos que formam o, digamos assim, lado mais admirável dessas contradições européias. Andam ressuscitando ideais de pureza e violência que se acreditavam sepultados e superados. A presença de um “outro”, na verdade um semi-outro, já que sua história é intimamente vinculada à história dos europeus nos últimos séculos, justifica a a firmação de uma identidade que também é mutilada e grosseira. Nada de bom pode sair daí.

Vê-se a tensão em cada canto, como uma panela de pressão que apita em desespero. Muçulmanas com véus tão apertados quanto possam, coloridos, de frente para moçoilas de mini-saia e maquiagem, que as encaram com ar de desdém. Rapazes de barba e pele escura olhando como quem quer briga para colegas pálidos que se barbeiam provavelmente duas vezes por dia, e não retornam o olhar de maneira menos agressiva. As posturas estão cada vez mais demarcadas, distantes, herméticas. Os cursos universitários de cultura islâmica têm pouquíssimos interessados, a grande maioria de estudantes muçulmanos, quase nenhum não-islâmicom querendo se aprofundar em outras formas de pensar e enxergar o mundo. Quando o provável próximo presidente chama uma parcela da população de escória, não é à toa. Não há diálogo, senão marginalmente, entre pessoas “de boa vontade” mas um pouco sonhadoras.

Não há como deixar de ver um certo risco de uma guerra civil, quiçá religiosa, na Europa. Nada, claro, como o que se passa no Brasil. Não é questão de ser assaltado na frente de um policial que finge nada ver. É algo um pouco mais, digamos, sério. Seria a concretização do “choque de civilizações” de Samuel Huntington? Talvez, mas o que se choca são, na verdade, vizinhos que têm o mesmo passaporte, votam nos mesmos candidatos, usam a mesma linha de metrô.

Os valores que salvaram o continente, infelizmente, não são tão fortes quanto chegaram a se afirmar (e não poderiam se firmar sem afirmar-se como tais, talvez até mesmo sabendo que era blefe). Não será de estranhar se esses antigos monumentos forem testemunhas de mais um banho de sangue. Talvez o que falte a esses valores seja nutrir-se da própria dialética e entender o quanto há de contraditório neles. Afinal, se havia o ideal de uma integração, que integração é essa que necessariamente apaga quem vem a se integrar? Se de fato a imigração enriquece a cultura que a recebe, qual é o nome que se dá a um enriquecimento que relega a subúrbios esquecidos a fonte dessa mesma riqueza?

Há uma falha trágica, pelo visto, na própria integração, e que vem completar as falhas dramáticas do integrismo dos brancos e do comunitarismo dos árabes. Muito de criação poderia passar no meio desses buracos, desses vórtices supersaturados de energia. Mas caminhando pela cidade e por alguns de seus subúrbios, conversando com jovens e velhos, franceses “de souche” e filhos de magrebinos, o termo que flutua por entre as frases, quando o interlocutor faz a pausa para retomar a respiração, é ressentimento, como o apito da panela de pressão.

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