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Faits divers à brasileira

fait divers

I

Saiu na semana passada a notícia de que morreu o prefeito de um determinado município de Minas Gerais. Seu avião caiu enquanto ele sobrevoava um acampamento do MST, que ocupava uma fazenda de sua propriedade.

Os acampados dizem que esse e um outro avião davam rasantes sobre os barracos para assustar as famílias. Também segundo os sem-terra, coquetéis molotov eram jogados dos aviões. Um bombardeio, em suma.

O advogado do prefeito morto disse à imprensa que tinha apenas pedido que o falecido mandatário fotografasse a área invadida, para poder entrar com um pedido de reintegração de posse.

Seja um bombardeio, seja um reconhecimento aéreo, o motivo para o próprio prefeito estar lá, e não um fotógrafo contratado – ou capangas, seria o caso de dizer, em se tratando de um bombardeio – é coisa que não se explica racionalmente. Seria preciso recorrer a uma explicação afetiva: o gozo do sadismo, talvez.

Não se sabia, da última vez que li a notícia, se o avião foi abatido ou caiu sozinho. Já o outro piloto, que não nasceu ontem, se mandou e não se falou mais nele. Pelo menos na imprensa.

II

Em 30 de abril de 1981, uma bomba explodiu no colo do sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, dentro de um automóvel de marca Puma, no estacionamento do Riocentro, que naquela época ficava longe pra burro de tudo.

Dentro do centro de convenções, um espetáculo que reunia 18 mil pessoas comemorava o Dia do Trabalho. No horário da explosão, Elba Ramalho estava no palco.

A bomba tinha sido preparada para explodir no meio do show, matando sabe-se lá quantos espectadores. O objetivo dos conspiradores, como tantas outras vezes na história, era colocar a culpa em movimentos contrários à ditadura (ou, simplesmente, comunistas). Com isso, achavam que podiam barrar a redemocratização.

Não deu certo e o único cadáver nessa aventura acabou sendo o de um dos criminosos. Só em 2014 a Justiça aceitou a denúncia contra os demais militares envolvidos. Até então, o Judiciário considerava que esse crime entrava no âmbito da lei de anistia, de 1979.

III

O artista plástico Cildo Meirelles relata, em documentário sobre sua obra, a história do seu pai, que foi afastado do Serviço de Proteção ao Índio depois de fazer uma denúncia grave: na região conhecida como Bico do Papagaio, no norte do que hoje é Tocantins, fazendeiros massacravam índios lançando mão de algo que pode perfeitamente ser considerado guerra biológica.

Roupas contaminadas com o vírus da gripe eram atiradas de aviões sobre aldeias. Os índios, ainda não contactados pelo “homem branco”, não tinham anticorpos contra a gripe, essa doença de origem europeia.

O raciocínio lembra de maneira perturbadora o do prefeito mineiro morto na semana passada. Mas naquela ocasião, até onde sei, não caiu nenhuma aeronave. Com isso, morreram algo como 40 mil índios. Dos sobreviventes, diz Cildo, muitos tiveram um colapso mental diante do extermínio de toda a sua aldeia.

O pai do artista conseguiu levar o caso à Justiça. Mas só: o corrompido Serviço de Proteção ao Índio tinha mais interesse em proteger os criminosos e relegou seu incômodo funcionário a funções burocráticas. Algo que não lhe permitisse atrapalhar.

IV

Em 1968, antes mesmo do AI-5, o brigadeiro João Paulo Burnier arquitetou um plano mirabolante para tornar o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) uma organização terrorista no sentido mais literal possível. A idéia de Burnier era usar pára-quedistas para explodir diversas bombas no Rio de Janeiro, a mais destruidora delas Gasômetro de São Cristóvão, às 18h, matando centenas de milhares de pessoas, de uma vez só.

O objetivo – adivinhe! – era acusar as oposições à ditadura, comunistas em particular, claro, e produzir um furor nacionalista sanguinolento como o que gangrenou a Indonésia poucos anos antes.

O plano só não foi adiante porque o pára-quedista Sérgio Macaco se recusou a cumprir a missão e, ainda por cima, entregou tudo à imprensa: o plano foi publicado no hoje extinto jornal Correio da Manhã e, em conseqüência, abortado.

O que resultou dessa aventura genocida? Uma sindicância militar: Burnier, nosso aspirante frustrado a Bin Laden, foi inocentado. Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, que salvou a vida de uma multidão de cariocas, foi expulso da corporação.

V

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Em 1987, uma matéria da revista Veja – que, os mais jovens talvez não acreditem, naquela época era considerada uma fonte digna de informação – dá conta de que um capitão do exército de nome Jair planejava explodir algumas bombas, uma delas numa adutora do Guandu, que abastece o Rio de Janeiro.

O jovem e irresponsável Jair, prossegue a reportagem, pretendia abalar a confiança no ministro do Exército indicado por Sarney. Tudo por causa de disputas em torno do soldo de oficiais. Um croqui da bomba chegou a ser desenhado pelo capitão e publicado pela revista.

Mesmo assim, com evidências feitas pelo próprio punho do conspirador, o episódio de terrorismo planejado não impediu o militar de encetar uma notória carreira política, arrastando consigo boa parte de sua família.

Como sabemos, o tal de Jair não amadureceu muito de lá para cá.

VI

Em 2009, foi premiado no festival de Gramado (e em muitos outros) o filme Corumbiara, de Vincent Carelli. O filme conta a história do “outro” massacre de Corumbiara. Sobre o massacre de sem-terra na mesma região de Rondônia, ocorrido em 1995 e mais conhecido, o jornalista João Peres acaba de lançar um livro.

O massacre do filme de Carelli ocorreu dez anos antes do caso do livro de Peres. Um completa 20 anos, o outro completa 30. Pelo visto, os massacres no Brasil são tantos que os nomes já começam a se esgotar.

Em 1985, uma aldeia inteira de índios de etnia desconhecida foi varrida do mapa por fazendeiros locais, que ali preferiam ver bois a pessoas. Vinte anos depois, os indigenistas conseguem voltar à área e encontram vestígios do crime. Jagunços e policiais tentam bloquear o trabalho – defendendo criminosos, mais uma vez. A população tem medo de falar.

Com a passagem do tempo, é impossível saber quantas pessoas foram assassinadas em nome do latifúndio.

E cito este caso apenas porque ele é pontual: seria exaustivo e não acrescentaria nada ao argumento listar os abusos cometidos quotidianamente Brasil afora contra populações autóctones.

VII

A semana passada também conteve uma, digamos assim, efeméride. Completaram-se dois anos desde que policiais da UPP da Rocinha, no Rio de Janeiro (mais de 20 policiais) seqüestraram, torturaram e assassinaram o auxiliar de pedreiro Amarildo Dias de Souza. O cadáver desapareceu e provavelmente nunca será encontrado.

Acho que quem leu até aqui se lembra bem da fórmula “Cadê o Amarildo”, que marcou a esperança de que esse tipo de crueldade, sadismo e barbaridade oficial, em nome da “boa sociedade”, fosse erradicado e superado no Brasil. Esperança frustrada, mais uma vez.

Mas esse é apenas o caso mais emblemático. No começo deste ano, policiais militares da Bahia mataram 12 jovens, a grande maioria sem passagem na polícia. Foi a chamada “chacina do Cabula”. A primeira reação do governador, o petista Rui Costa, foi comparar a ação da polícia a um gol.

Só a mobilização da população local levou à mudança da narrativa.

Os casos semelhantes são muitos e não vou me alongar.

* * *

PS: Na verdade, vou me alongar, sim. Na primeira versão deste texto, onde deveria estar “chacina do Cabula”, escrevi por descuido “chacina da Chatuba”. Mas não seja por isso: em 2012, houve uma chacina na Chatuba, em Mesquita, Baixada Fluminense. Seis jovens mortos por traficantes.

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Charlie: nous suivons?

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  1. Troisième arrondissement

Posso estar dizendo isso com motivações pessoais, mas sinto que esse ataque ao Charlie Hebdo tem algo além dos outros ataques, atentados e massacres que temos acompanhado neste século. Intuo nele, ainda que intuições sejam coisa pouco confiável, o germe de uma reação em cadeia, uma bola de neve capaz de carregar coisas que nos são muito caras, ou pelo menos são muito caras para mim.

Talvez essa sensação me venha do formato algo diferente deste atentado em particular, em que os homens-bomba são substituídos por encapuzados com AK-47 – a ausência do suicídio pode ter um significado a mais? –; talvez da reação mundial tão mais expressiva, com a criação do meme bastante ambíguo “Je suis Charlie”; talvez da forma como os assim chamados líderes mundiais tentam se apropriar da situação, como naquela infame foto forjada da manifestação; talvez dos outros confrontos que se seguiram, no mercado kasher, nos ataques a mesquitas, na Bélgica. E assim por diante. Seja qual for o motivo, mais do que chocado com o ataque em si, ando apreensivo com a tormenta que se prepara. Continuar lendo

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O leitor, terrorista internacional

Aconteceu duas vezes. Primeiro em Copenhagen, depois em Guarulhos. O sinal: bagagem ou casaco na esteira do raio-x, olhos apertados e sobrancelha alçada na pessoa de uniforme, a exigência de separar o objeto suspeito para um exame mais próximo, com direito a luvas de borracha e tom de voz imperioso. Até segunda ordem, o viajante é um terrorista em potência ou, na melhor das hipóteses, um mísero traficante internacional.

Algo ali chamou a atenção dos “agentes de segurança” aeroportuários. São os responsáveis por evitar que a Al Qaeda risque os céus, mas também por manter constantemente vivo na consciência de cada passageiro a lembrança de que a Al Qaeda existe e a sensação de que está por todo lado. Aos olhos do poder, principalmente os funcionários mais baixos do poder, a Al Qaeda está por todo lado. Por todo lado. E, noves fora os americanos velhos de guerra, ninguém está mais seguro disso do que os dinamarqueses.

Uma palavrinha sobre os dinamarqueses. Continuar lendo

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Nos quartéis lhes ensinam a antiga lição

Na excitação de viajar, na ansiedade de partir, somos capazes de atravessar as estações ferroviárias sem atentar para o microcosmo que são esses ambientes abobadados, luminosos e coalhados de gente. É um mundo estranho, para não dizer invertido, em que o turistas têm o ar mais nervoso que os profissionais, porque esses últimos sabem onde estão e conhecem seus horários, enquanto o viajante ocasional se perde entre as plataformas enfileiradas de onde vão saindo as golfadas de passageiros. Também é o lugar em que bagagens se espalham pelo chão como em nenhum aeroporto, obstáculos variáveis, imprevisíveis, para os atrasados que precisem alcançar algum trem prestes a partir. Terra em que bilheteiros e maquinistas passeiam de cabeça erguida, senhores inquestionáveis. Ambiente de confusão e risco, em que batedores de carteira agem sem ser incomodados e soldados de uniforme camuflado passeiam exibindo suas metralhadoras, em busca provavelmente de terroristas com dinamite escondida no turbante.

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Convivo há anos, menos frequentemente do que gostaria, é verdade, com esse espaço de passagem e de encontro. Já topei com esses galhardos militares dezenas de vezes, mas nunca tinha parado para examiná-los. Nem brevemente. Quando corremos pela plataforma afogueados e vergando sob o peso da bagagem, é tão natural encontrar um quarteto de homens armados até os dentes quanto um grupo de americanos com camisa florida. A presença de sentinelas do exército só se torna chocante, isto é, nada natural, quando reduzimos o ritmo, sentamos para esperar um trem que ainda vai demorar, tomamos uma cerveja e deixamos os olhos passearem pelo ambiente em liberdade. Reconheço, se exigem que eu reconheça: essa rapaziada está aí para garantir a minha segurança. Mas se minha segurança precisa ser garantida por jovens moços treinados para as piores condições de combate (sei lá, no Afeganistão), então não posso me sentir nada seguro.

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Enquanto beberico a espuma da cerveja, tenho a impressão de que um deles me espia. Céus! Será o volume da carteira no bolso, que ele estima poder ser uma pistola? Tomo a nota mental de começar a andar de paletó mesmo no verão. Ou seria só inveja por eu estar bebendo e ele, trabalhando? Melhor não sorrir, nem nada: o soldado talvez seja um nervosinho à la Kubrick, pode tomar como uma ofensa e me fuzilar. O olhar pode ter outras explicações também, mas prefiro nem pensar nelas. Ele está armado e eu sou inofensivo. Seria uma boa hora para aparecer um suspeito de terrorismo que desviasse a atenção do grupelho. Se eu presenciasse uma cena de caçada, talvez tivesse um material melhor para escrever.

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Mas os homens-bomba não marcam presença. Os soldados vão se afastando, com um ar de grande atenção que mal disfarça uma enorme sonolência, digna do sábado que é. Em vez do agente da Al Qaeda, quem se aproxima das mesas é um bêbado, trazendo ao laço o cão que o caracteriza como borracho francês. A propósito, os olhos semicerrados e o passo longe de retilíneo o caracterizam como borracho internacional. Ele interrompe a marcha poucos metros à minha esquerda e começa um discurso. Dirige-se a um homem que, sentado em seu canto, finge ler seu jornal e ignorar o interlocutor. É natural ofender-se ao ser ignorado e o bêbado não é exceção: alça o tom e troca a conversa fiada por uma série de insultos (dos quais ignoro a metade) e ameaças contra o cidadão, que por sua vez já não tem os olhos tão fixos no jornal.

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Do outro lado da estação, os soldados, em seu passo sempre arrastado, contam os segundos para o fim do turno. Turistas e profissionais continuam a se esbarrar, correndo para todos os lados entre as plataformas, procurando seus destinos e seus trens, saltando malas e evitando carrinhos de bebê. Entre o bêbado e o homem do jornal, segue o impasse. O café do cliente esfria na xícara que ele não ousa alcançar. A garçonete prefere ficar fora da questão para não levar um sopapo desnecessário. O agressivo orador já tem o braço erguido. O leitor se esconde debaixo das páginas. O assunto se estende por minutos e minutos. Nós outros, acovardados, não ousamos a menor intervenção.

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Um homem em camisa branca corre para junto do bêbado. Dirige-se a ele no tom brando dos negociadores. “Ah, finalmente!”, penso. Então a estação tem seguranças, não só soldados. Qual. Obtido o sucesso de convencer o bêbado a procurar diversão em outro canto, ele retorna para sua mesa, logo atrás do epicentro da crise. Era, afinal, apenas outro cliente do bar da estação, mais corajoso que o resto de nós. Trêmulo, o alvo das injúrias agradece timidamente. Até que enfim, pode esticar a mão para o café, a essa altura gelado. O autor das injúrias, camarada que teve ao menos o mérito de animar a tarde, vai cambaleando para uma das saídas. O alívio substituindo a tensão, a atmosfera recupera aos poucos seu caráter irreal.

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Desço para o banheiro. No caminho, ao pé da escada, os quatro soldados conversam sem animação. Um deles coça a orelha com o cano da metralhadora e não consigo deixar de ficar incomodado. Por curiosidade, ponho-me a olhar em volta: cá e lá, homens de camisa negra, postados diante de lojas e corredores, trazem nas costas a inscrição “Sécurité“. Não falta, ali, quem me transmita a impressão de vigilância, seja contra os seguidores de Mohammed Atta, seja contra sei lá que outros contraventores que os homens de preto estão lá para combater. Batedores de carteira, talvez? Bêbados, certamente não.

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Não vamos nos esquecer de que era uma estação de trem, em que tudo se mistura e não sabemos bem quem está indo, quem está vindo, quem persegue ou é perseguido. Nas minhas considerações de quando parto em viagem, penso apenas em como chegar aonde vou, nas maravilhas que vou visitar, sei lá eu. Meu sentimento de segurança só se manifesta em meio a essa névoa irreal de pequenos ladrões, grandes soldados, terroristas em potencial e seguranças que vestem preto. Por um momento, tenho dificuldade em distinguir quem está do meu lado e quem quer me atacar. Claro está que não é a melhor das sensações.

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Esqueletos no armário

Duas semanas atrás, recebi de meu amigo Leonardo (que, aliás, não gosta de ser chamado pelo nome inteiro) um e-mail que me instava a ir ver a última pepita do cinema alemão, em cartaz nalgumas poucas salas de Paris. Der Baader Meinhof Komplex é o nome do filme, que deve sair no Brasil como “A Facção Baader-Meinhof”, a não ser que entre em ação nossa velha mania de estragar nomes de filmes e ele acabe como “Jovens, rebeldes e armados” ou algo parecido.

Achei que não conseguiria atender ao pedido de Léo, assoberbado que estava, e estou, com as obrigações da vida. Mas surgiu um par de horas vagas, vi o filme e posso fazer um agrado ao amigo, que manifestou seu desejo de discutir a obra via blogs. Pois bem, ao trabalho! E já aviso que vou precisar, provavelmente, dividir minhas idéias a respeito por dois textos, se as leis da blogosfera não se opuserem. Neste primeiro, mando comentários sobre o filme em si. No próximo, enveredo pelas questões um tanto problemáticas que ele suscita.

Em primeiro lugar, devo declarar o seguinte: contra os alemães, podemos fazer todo tipo de crítica, mas não dá para negar que cinema, eles sabem fazer. O filme de Uli Edel, apesar de um roteiro que tenta ser enciclopédico e acaba ligeiramente confuso, além de um retrato talvez conveniente demais dos personagens (sei que o comentário é obscuro; pretendo esclarecê-lo adiante), é daqueles que só deixam indiferente o espectador beócio completo (não que essa seja uma espécie rara). Pertence a um gênero bem típico de nosso tempo, e que a Alemanha tem motivos particularmente fortes para cultivar.

Podemos batizar esse gênero como “esqueleto do armário”. São reconstituições romanceadas, às vezes mais, às vezes menos, de momentos históricos traumáticos e, se possível, embaraçosos. No Brasil, por exemplo, discute-se a última ditadura, a luta armada e, de preferência, a tortura. Os franceses começam a abrir a caixa preta da colaboração com os nazistas, enquanto remoem a saudade do tempo em que a juventude não estava contente só de reclamar e tinha coragem de enfrentar, de verdade, a polícia sua inimiga – falo de 68, claro.

E para os alemães não falta assunto. A ascensão de Hitler, o holocausto, a guerra, a Gestapo, a Stasi, a divisão do país, os grupos extremistas, os neonazistas, o muro de Berlim… Milhares de roteiros estão garantidos. Baader Meinhof (vou chamar assim para simplificar) conta a história dos membros fundadores da Rote Armee Fraktion, ou Facção do Exército Vermelho, um grupo de extrema-esquerda que deu um trabalho enorme ao governo da Alemanha Ocidental nos anos 70.

Fundado em reação à morte do estudante Benno Ohnesorg por um policial e a quase concomitante tentativa de assassinato, por um rapaz de simpatias nacional-socialistas, do líder estudantil Rudi Dutschke, a facção acabou se tornando o mais famoso grupo de ação política violenta do país, a ponto de realizar e inspirar ações que beiravam o terrorismo e, no final, descambaram em definitivo para o terror puro e simples. No início dos anos 90, quinze anos depois da morte dos pais do movimento, ao dar por oficialmente encerradas suas atividades, a R.A.F já era definitivamente uma organização terrorista.

Comparado a outros emblemas do esqueleto no armário, como Adeus, Lênin, Edukators, A queda, A vida dos outros e Sophie Scholl, este não chega a ser exatamente um ícone do gênero. Por exemplo, o que deveria ser a história dos fundadores da R.A.F. acaba se perdendo em subtramas sobre as (assim chamadas) segunda e terceira gerações. Mesmo assim, é um grande filme para quem se interessa pelas peripécias da geração de nossos pais. Menção honrosa, como sempre, para as interpretações. Os atores alemães dão seu espetáculo habitual.

Isto aqui, porém, como de costume, não é uma crítica. Muito mais me interessa a história, um enredo que dá pano pra manga a quem se deixa fascinar por eventos do passado, com toda a estranheza que eles podem causar em quem não tem a triste pressa de encaixá-los logo de uma vez num julgamento qualquer, um juízo determinado, no mais das vezes, por conveniências pessoais. Nossas sensibilidades de princípios do século XXI, diante de ações como as de Andreas Baader, Gudrun Esslin e Ulrike Meinhof, provavelmente perguntarão por que essas pessoas jovens, belas e inteligentes largaram tudo para viver na clandestinidade e na cadeia; por que pegaram em armas e arriscaram a própria vida; por que se radicalizaram tanto, a ponto de perder a noção de quem estavam atacando e por quê.

Tenderíamos a rapidamente lhes atribuir um enorme ódio à democracia, pelo fato de quererem derrubar pela força das armas um regime, para instaurar outro em seu lugar, sem grandes consultas à população. Tenderíamos a dispensá-los como iludidos ou loucos. Mas tudo isso parece apressado, se não partimos de um ponto quase ingênuo: a perplexidade perante uma era de conflito e engajamento que, aos olhos de alguém com menos de trinta e tantos anos, parece não ter sentido.

O diretor Uli Edel e o roteirista Stefan Aust (autor do principal livro sobre o grupo) afirmam terem se preocupado em realizar o filme da forma mais objetiva possível. É claro que isso não existe e eles falharam. Através da Europa, estão sendo acusados de glorificar o terrorismo. Talvez por mostrarem na tela o encadeamento causal da escalada do terror, o que é quase proibido num tempo em que as condenações têm de ser sumárias e veementes, qualquer olhar em perspectiva sendo carimbado como “justificativa do injustificável”. Talvez por esconder casos como o de Horst Mahler, que, membro da facção e advogado dos companheiros, tornou-se, atualmente, um dos principais líderes neonazistas do país. Talvez por não mencionar que os principais movimentos de esquerda da Alemanha Ocidental repudiaram com veemência as ações do grupo, a começar pela Sozialistischer Deutscher Studentbund (Sindicato [União] dos Estudantes Socialistas Alemães) de Rudi Dutschke, ironicamente um dos principais inspiradores de Baader, Ensslin e Meinhof.

Talvez, também, por realçar o lado glamoroso dos envolvidos, o apoio popular que eles receberam durante os julgamentos, que foi grande, mas nem de longe tão exuberante. Ou com pequenas atitudes como esconder a língua presa de Andreas Baader, retratado como o rebelde inconseqüente que era, mas um tanto romântico, o que não é preciso: sua rebeldia era uma extensão politizada dos tempos de delinqüência juvenil. Mesmo depois de se engajar na luta contra o capitalismo, continuou tendo fixação por (roubar) automóveis de luxo. Em resumo, ele não tinha, à parte um carisma fora do comum, qualificação nenhuma para liderar um grupo clandestino.

Quanto ao retrato do grupo, o filme insiste de maneira talvez suspeita em mostrar a preocupação da “primeira geração” em não atacar alvos civis (“o povo”, na terminologia que empregavam). Insiste também nas cenas emocionais e na tentativa de explicitar até que ponto aquelas eram, afinal de contas, pessoas normais, como qualquer um de nós, mas que “simplesmente resolveram agir”. Ora, convenhamos, a pasmaceira de nosso começo de século é uma prova irrefutável de que resolver agir não tem nada de simples.

Mas a acusação de apologia ao crime, creio eu, não procede. Afinal, por outro lado, o filme releva algumas questões graves que conduziram à radicalização dos fundadores do grupo. Fica-se com a impressão de que todo aquele esforço era em protesto contra a guerra do Vietnã e nada mais. Embora a maior parte das bombas da primeira geração da R.A.F. tenham explodido em dependências do exército americano, essa interpretação está bastante exagerada.

Por exemplo, o governo da Alemanha Ocidental. A administração do país ainda estava, por incrível que possa parecer, apinhada de ex-membros do governo nazista. O braço direito de Konrad Adenauer, o ícone da democratização da Alemanha Ocidental, era Hans Globke, redator do ato que retirou a cidadania alemã de judeus, em 1935. Em 1966, a coalizão no poder elegeu Kurt Georg Kiesinger, membro do partido nazista durante a guerra, como primeiro-ministro. Muitos alemães não engoliam a rapidez com que o processo de desnazificação do lado ocidental foi dado por encerrado, entendendo que a Alemanha tinha se tornado apenas mais um instrumento do imperialismo americano. (Algo semelhante ocorreu também na Itália.)

Nesse contexto, é menos surpreendente o rumo que as circunstâncias tomaram. Benno Ohnesorg, já mencionado, foi morto pela polícia numa manifestação que o filme reconstitui perfeitamente, mostrando como a polícia permite aos manifestantes pró Xá Reza Pahlevi descer a mão, além de objetos terrivelmente dolorosos, sobre os estudantes que protestavam. O que o filme não mostra é a forma como o rapaz morreu: com um tiro à queima-roupa na nuca. Vemos apenas uma morte acidental, quando o que ocorreu, de fato, foi uma execução.

Não leia os próximos parágrafos quem desconhece inteiramente a história, para não, digamos, “perder a surpresa”. Mas a ausência mais grave do filme é a polêmica em relação à morte dos protagonistas. A versão oficial, do suicídio coletivo, é comprada e, pois sim, justificada. Dos três mortos em outubro de 1977 (Ulrike Meinhof, a jornalista, já tinha se enforcado), dois teriam tirado a própria vida com revólveres que, até hoje, não se sabe ao certo como entraram na cadeia. A terceira (Gudrun Ensslin) se enforcou na janela e uma quarta detenta, Irmgard Möller, golpeou-se diversas vezes no peito com uma faca de ponta arredondada, dessas de passar manteiga no pão, mas sobreviveu para declarar repetidamente que seus companheiros haviam sido executados por agentes da prisão.

Der Baader Meinhof Komplex passa por cima da suspeita. Mostra toda a preparação das mortes, o contrabando das armas para dentro da prisão (uma realização, no mínimo, espetacular), o pranto dos mais jovens quando uma veterana de R.A.F. lhes anuncia o suicídio coletivo. Porém, vá saber por quê, não se vê nada sobre o inquérito relâmpago que, em menos de uma semana, atestou as causae mortis. Tampouco se fala sobre o fato de que o canhoto Andreas Baader tinha marcas de pólvora na mão direita, nem por que Jan-Carl Raspe não tinha marcas de pólvora em nenhuma das mãos. Ficou por explicar, também, como Baader teria conseguido atirar em si mesmo na base do crânio, numa posição de contorcionista um tanto improvável. Aliás, mais que contorcionista, o rapaz era muito ruim de mira: havia três balas alojadas na cela, o que significa que ele errou a própria cabeça duas vezes antes de morrer.

Gudrun Ensslin, que se enforcou pulando de uma cadeira que, magicamente, estava contra a parede do outro lado de sua cela, tinha entregue um bilhete a seu advogado, algumas semanas antes, em que afirmava ter medo de “ser suicidada” como tinha acontecido, no ano anterior, com Ulrike Meinhof. (Cheguei a mencionar as suspeitas sobre a morte dela? Pois bem… a autópsia indica que ela teria sido violentada e sufocada antes do enforcamento.) Mas também não se ouve nada a esse respeito no filme de Edel e Aust, que supostamente celebra o terrorismo.

Somando as omissões de lado a lado, o filme parece equilibrado; objetivo, não. Isso, como eu disse, não existe. Todas essas informações fundamentais que estão ausentes poderiam perfeitamente não aparecer no filme se ele assumisse uma configuração de thriller, aventura, romance. Mas a escolha ficou dúbia, em muitos momentos parece que a intenção era fazer um documentário. Nesse caso, a falta de menção a tudo que está dito acima e a aceitação sem questões da versão oficial são, de fato, graves. Poderíamos alegar que o filme mistura, ou funde, a ficção e o documental, mas num tema tão repleto de polêmicas, o resultado é apenas ficar no meio do caminho.

Mesmo assim, estranhezas à parte, reafirmo que Der Baader Meinhof Komplex faz parte da lista de filmes que precisamos ver, para adquirir um pouco de perspectiva sobre a história recente. Mas, como este texto já está extenso muito além da conta, deixo para o próximo as considerações que o filme me causou.

(Enquanto isso, mudo bruscamente o assunto para deixar meus votos de um feliz natal!)

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A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

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O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

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Língua, etnia, origem, cor

Acho que ainda encarava com inocência as armadilhas da língua, quando reagi com naturalidade: “Você não vai ter problemas para renovar o visto”, disse o rapaz do guichê, em tom da mais natural constatação, “porque, bom, você é ocidental”. E eu assenti com a cabeça, querendo indicar que entendia o que ele queria dizer, mesmo que não concordasse. Só têm problemas com a polícia e o visto, traduzi mentalmente, as pessoas que vêm de países islâmicos, interpretados logo de cara como terroristas em potência. Aqueles que, por aqui, são chamados de “orientais” (esse termo designa os oriundos do Islã, grosso modo. Nossos “orientais”, aqui, são “asiáticos”.) Brasileiro pode ficar tranqüilo nesse ponto. Povo bacana, pacífico, alegre, fonte inesgotável de sorrisos, mulheres, dribles e gols. E, na minha cabeça, também ocidental, a julgar pelo que eu tinha entendido da afirmação do rapaz do guichê.

Mas, que o quê, eu não tinha entendido era nada. Primeiro, fui entender que o conceito de Ocidente passa longe, muito longe do Brasil. Quando ouvir um europeu se referir ao “Ocidente”, esteja certo de que os países em questão são os da Europa, ora, ocidental, a que se somam os Estados Unidos e o Canadá; em certas circunstâncias, até um australiano pode receber o título, embora seu país esteja cravado no outro hemisfério. Em outras palavras, aquela velha idéia de dividir o mundo em dois hemisférios é conversa fiada. O mundo, para o europeu, é segmentado numa meia-dúzia de compartimentos: Ocidente, Oriente, África, Ásia, russos e quetais. O brasileiro, nesse esquema, tem de se contentar com o carimbo de latino-americano. Mas é importante frisar que esta não é uma identificação cultural ou geográfica. Para o europeu, ela resulta da mais autêntica ontologia.

Agora, se é assim, como se explica o fato de que, para o digníssimo sujeito do outro lado do guichê, eu seja um ocidental, se ele sabia perfeitamente que sou brasileiro, “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes” (TM Belchior)? Tenho certeza de que pelo menos um de vocês dois que estão lendo o texto já tem a resposta na ponta da língua, mas vou enrolar um pouquinho mais.

Um último episódio (último nada, quem dera) veio confirmar minhas suspeitas. Um lauto jantar, bem à francesa, de gastronomia refinada e a nata do vinho nacional (piada velha). À mesa, um cândido rapaz, quase diáfano, contava sua traumática experiência de visitar uma periferia bem ao norte de Paris. Deve ter sido terrível caminhar por ruas desconhecidas e numeradas, em vez de nomeadas. Tantas janelas, tantas crianças, tantos olhares desconfiados. E o mais assustador, ele concluiu: “para qualquer lado que eu olhasse, não encontraria um único ocidental”.

Eis aquela palavra, mais uma vez. E agora entendemos o que ela quer dizer, na boca de um indivíduo civilizado e de mente aberta da Europa. “Ocidental”, afinal de contas, nada mais é do que um sinônimo para “branco”. O que me disse o funcionário público que comigo conversou no guichê, afinal de contas, foi que a polícia francesa não colocaria empecilhos à minha permanência em seu território porque sou branco. Tenho a pele, a cabeleira e o par de olhos ideais do Ocidente.

Ou seja, a língua não é nada inocente. Inocente era eu. A justaposição da classificação geográfica sobre a étnica (ou racial, para dar um tom mais agressivo ao contexto) alivia a carga pesada e negativa de sentir-se um discriminador. O europeu não quer mais ser racista. A lembrança de crimes como a “Solução Final” (que é como os nazistas chamavam o extermínio de judeus), a escravidão e a guerra da Argélia ainda é muito próxima no inconsciente coletivo. É preciso ser civilizado, pois esses são os ditos “valores ocidentais” – e eis que reaparece a fatídica palavra. Não se deve julgar e, na seqüência, rejeitar alguém pela etnia. Um indivíduo democrático, justo e civilizado da Europa não faz esse tipo de coisa. Certo?

Acontece que lutar contra as próprias inclinações impõe algumas dificuldades. Quando os netos de quem outrora oprimiu vêm viver em seu país e pedir para compartilhar de sua nacionalidade; pior, quando já nascem no solo da antiga metrópole, do antigo império, e têm direito imediato a se considerar um cidadão; ou ainda, quando a pronúncia, a música e a indumentária se alteram radicalmente em plena capital do país, haja força de vontade para o ocidental não se sentir acuado, ameaçado e, falemos abertamente, ofendido. Para reerguer a barreira, mas sutilmente, sem recaída fascista, nada mais adequado que a terminologia bem escolhida.

Resultado, consegue-se estabelecer a fronteira entre o “nós”, que se refere aos que, a pele denuncia, descendem dos bárbaros que colonizaram esta terra, e o “eles”, todo mundo mais, com uma preferência acentuada pelos magrebinos e árabes em geral, além dos negros (desculpe, africanos). Só que, como toda estratégia, essa também tem seus furos, por onde esguicha com violência uma água corrosiva. Concebida para afastar os povos menos nobres do banquete da riqueza européia, corre o risco de funcionar bem demais. Seria como se, vamos supor, os serviçais desaparecessem da saturnal levando a comida, os talheres, a louça e a toalha da mesa.

Há coisa de duas semanas, a seleção da Tunísia veio jogar na França. Começou a tocar a Marselhesa e, suprema surpresa, supremo acinte, milhares de adolescentes começaram a assoviar e vaiar. Foi o caos. A imprensa se rasgou nos editoriais. O onipresente Sarkozy ameaçou: da próxima vez, não vai ter jogo. Os intelectuais, sempre atentos, aproveitaram para encher laudas e laudas de perguntas sobre o significado do evento. Nas escolas dos subúrbios, os professores foram instruídos a verificar com a garotada se eles se sentiam franceses. Muitos disseram que não. Preferem se identificar com o país dos pais, mesmo sem jamais terem posto o pé por lá.

Esse é o grande furo da estratégia lingüística de discriminar sem segregar. Há um mundo para além da língua, ao contrário do que pode crer uma parcela bastante significativa das correntes de pensamento do último século. Ao criar, no coração da região que escolheu chamar a si própria de Ocidente, uma legião de cidadãos que não são ocidentais, o ocidental que se considera herdeiro dessa cidadania corre o sério risco de berçar um contingente incontável de ocidentais que nem aspiram a ser cidadãos. E, como nós, brasileiros, sabemos muito bem, quem se vê privado em definitivo da cidadania sente que não tem obrigação nenhuma para com a sociedade.

PS: Eu pretendia continuar com uma comparação com o problema da discriminação social e racial no Brasil, porque, afinal de contas, meu país me interessa muito mais do que os dos outros. Mas ia ficar grande demais, então prefiro continuar em outro artigo, que deve chegar nos próximos dias. Se você tiver um bom coração, me diga que o aguarda com ansiedade. Nem que seja só para me agradar…

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Marlon Brando, o terrorista

Ventava forte naquela noite. Choveria ao final da sessão, senão antes. Mas, contra o clichê literário, ainda não estava escuro quando começou o filme. Os organizadores do festival adiantaram o início, temendo a tempestade inevitável. O cinema ao ar livre é uma delícia, mas está sujeito a emoções fortes também fora da tela, como bem sabe quem frequenta o evento anual do <em>Parc de la Villette</em>, cravado num dos bairros mais humildes de Paris.

A tela enorme ondulava a tal ponto que os <em>closes</em> e paisagens pareciam de sonho ou embriaguez. Tínhamos combinado com um grupo de amigos, mas quando nos sentamos sobre a grama, éramos só nós, o casal de guerreiros inquebrantáveis. Todos os demais tiveram medo da fúria dos céus, e com razão. No dia seguinte, algumas cidades da França foram desmontadas por um tornado. Ora… os covardes vivem mais, mas saboreiam menos a vida.

Nós, ao contrário, por amor ao cinema, nos enrolamos em cobertores e enfrentamos a tormenta. Pois os nomes pesavam mais do que as nuvens, era irresistível. Roteiro de John Steinbeck, ninguém menos. Marlon Brando e Anthony Quinn sob a direção de Elia Kazan, magníficos todos eles. Um grande clássico, quase uma chave inaugural da Guerra Fria: <em>Viva Zapata!</em>, de 1952. Com todos os tiros, belos cavalos e proselitismo velado em que o cinema americano é imbatível.

Marlon Brando, em seu estilo habitual, travestiu-se de seu personagem, para não precisar interpretá-lo. O astro, que esticou os olhos para virar japonês, pintou o cabelo para virar polonês e encheu a boca de algodão para virar italiano, vestiu organdi branco e sombrero, passou uma temporada na praia, fez-se de estrábico e se pôs a falar muito lentamente. <em>Voilà</em>! Um autêntico mexicano humilde, analfabeto, honrado e bigodudo. Zombaria à parte, o filme é um espetáculo. Anthony Quinn rouba a cena. Embora nos créditos seu nome ainda não apareça com destaque, já mostra por que foi um dos maiores atores do cinema no último século. As batalhas, os diálogos, tudo é belíssimo. E, se há incorreções históricas, se há um a pitada de doutrinamento, respondo que ao cinema tudo se perdoa. Era a Guerra Fria, cada fotograma tinha de estar a serviço da pátria.

Mas o melhor de tudo, na verdade, foi ver projetada na tela a ironia do tempo. Se fosse produzido hoje, <em>Viva Zapata!</em> seria considerado um atentado ao patriotismo. George Bush o condenaria como antiamericano, acabariam deportando Elia Kazan de volta para a Turquia, a Fox se recusaria a passar o material promocional. Marlon Brando, o mito fanhoso e fortão, teria seu retrato afixado em praça pública, procurado como perigoso terrorista. O grande sucesso, quem diria, transformado em enorme perigo pela correnteza das décadas.

Não há dois seres humanos mais distintos que o Zapata que morreu no México em 1919 e o Zapata que nasceu em Hollywood em 1952. Este último se espelhava metade em São Francisco de Assis, metade em Rambo. Descendia de uma família de renome, mas não sabia ler e não tinha um grão de terra que fosse seu. Desprezava as roupas elegantes e só queria um pouco de paz para os camponeses, seus vizinhos. Virou general por acaso, derrubou governos por sorte, teve uma rápida passagem pela presidência, mas renunciou, tomado de asco pelo universo do poder. Quando morreu, na emboscada, era cansaço de tanta luta, quase uma desculpa para depor as armas.

O Zapata do México era um pouquinho diferente. Tinha terras; era pouca, mas produzia. Adorava vestir-se com garbo, destoava pela elegância até exagerada nas festas, cultivava um bigode que devia lhe subtrair não pouco tempo da vida. É provável que soubesse ler, caso contrário teria sido em vão o esforço do amigo Ricardo Flores Magón em lhe apresentar livros anarquistas. Mas, ao contrário, deu resultado: Zapata se encantou pelo anarquismo a ponto de escrever um projeto de reforma agrária, o Plano Ayala, que influenciou o debate político mexicano por décadas. Por fim, se ele foi presidente do México, esqueceram de registrar e só contaram a Steinbeck.

Nem preciso dizer que o Zapata das telas é muito mais interessante. Fico imaginando os suspiros de nossas avós nos cines Serrador e Payssandu. O verdadeiro era muito humano, não chegou a general por acaso, tinha aspirações políticas e gosto de sangue, perdeu muitas batalhas e morreu porque se deixou enganar. Já Marlon Brando, quando mexicano, levava uma vida muito dura em nome de uma causa. Vivia escondido nas montanhas, arregimentava pobres camponeses ingênuos para sua luta, atacava comboios, preparava emboscadas, o escambau. Suprema ousadia, associou-se com comunistas e exilados para derrubar sucessivos presidentes de seu país. Alguns deles, até eleitos.

Não raro, dava um passo para fora de seu analfabetismo e discursava com as melhores técnicas da oratória. Conclamava cada homem a pegar em armas contra a iniquidade dos poderosos. Afirmou mais de uma vez que, se os oprimidos não se organizassem e lutassem, seriam humilhados até o fim dos tempos. Para ele, não havia governo e não havia lei que estivessem acima do sagrado direito do trabalhador à terra. Parecia que falava Jacobo Arenas ou Osama bin Laden, mas não. Era um astro americano, explicando ao público o poder do indivíduo contra a ameaça soviética.

Eis, porém, que nesse meio-tempo os vermelhos viraram poeira. Grupos armados que vivem nas montanhas, preparam emboscadas, atacam comboios, ameaçam governos e desconsideram leis fundiárias ganharam uma nova alcunha. Não são mais interpretados por galãs do naipe de Marlon Brando, levam no máximo alguns cascudos de James Bond, quando tentam destruir a civilização ocidental como antes faziam os vilões russos. A idéia de que as pessoas peguem em armas contra os poderosos se tornou perigosamente inconveniente, agora que no ringue do poder mundial só sobrou um lutador de pé.

O Zapata de Marlon Brando não era um general competente como o Zapata de Morelos: era um terrorista (pelos padrões contemporâneos) cujas vitórias se apoiavam tão somente em sua ideologia e sua sede de lutar. Hoje, mais de meio século depois de filmado, <em>Viva Zapata!</em> de Elia Kazan, mais do que um filme épico, é um documento histórico. Onde mais podemos ver a indústria de Hollywood aplaudindo efusivamente um grupo paramilitar, sabotador, proscrito, liderado por um anarquista violento, mal ajambrado e de pele morena (artificial, mas enfim)! Em tempos de Halliburton, o filme é uma oportunidade rara de ver os Estados Unidos prestando homenagem à iniciativa privada.

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