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Bouazizi, o herói de Nietzsche

Nem Assange, o indiscreto hacker australiano. Nem Zuckerberg, o ainda mais indiscreto empresário precoce da rede, como quis a revista Time. Nem Suárez, o goleiro fugaz dos pampas, sobre o qual ainda hei de escrever. O maior herói de 2010 foi um vendedor de frutas, ambulante e sem licença, natural de Sidi Bouzid, no interior da Tunísia. Chamava-se Mohamed Bouazizi e tinha 26 anos quando morreu.

O gesto heróico de Bouazizi foi um martírio que, em si, não tem nada de novo, mas sempre impressiona. No Vietnã de 1963, Thích Quảng Đức desceu do convento e, com toda a calma que se espera de um monge budista, imolou-se na praça mais movimentada de Saigon. Kennedy admitiu que a imagem daquele corpo se consumindo abalou o mundo. Na Tchecoslováquia de 1969, Jan Palach, estudante de filosofia, escolheu que sua existência não passaria dos 21 anos. De que valia viver sob o jugo soviético? Em 1989, a celebração de sua memória desaguaria na Revolução de Veludo, batendo um cravo no caixão da Cortina de Ferro.

É perturbador, mas parece que morrer dá resultado. Continuar lendo

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Esqueletos no armário

Duas semanas atrás, recebi de meu amigo Leonardo (que, aliás, não gosta de ser chamado pelo nome inteiro) um e-mail que me instava a ir ver a última pepita do cinema alemão, em cartaz nalgumas poucas salas de Paris. Der Baader Meinhof Komplex é o nome do filme, que deve sair no Brasil como “A Facção Baader-Meinhof”, a não ser que entre em ação nossa velha mania de estragar nomes de filmes e ele acabe como “Jovens, rebeldes e armados” ou algo parecido.

Achei que não conseguiria atender ao pedido de Léo, assoberbado que estava, e estou, com as obrigações da vida. Mas surgiu um par de horas vagas, vi o filme e posso fazer um agrado ao amigo, que manifestou seu desejo de discutir a obra via blogs. Pois bem, ao trabalho! E já aviso que vou precisar, provavelmente, dividir minhas idéias a respeito por dois textos, se as leis da blogosfera não se opuserem. Neste primeiro, mando comentários sobre o filme em si. No próximo, enveredo pelas questões um tanto problemáticas que ele suscita.

Em primeiro lugar, devo declarar o seguinte: contra os alemães, podemos fazer todo tipo de crítica, mas não dá para negar que cinema, eles sabem fazer. O filme de Uli Edel, apesar de um roteiro que tenta ser enciclopédico e acaba ligeiramente confuso, além de um retrato talvez conveniente demais dos personagens (sei que o comentário é obscuro; pretendo esclarecê-lo adiante), é daqueles que só deixam indiferente o espectador beócio completo (não que essa seja uma espécie rara). Pertence a um gênero bem típico de nosso tempo, e que a Alemanha tem motivos particularmente fortes para cultivar.

Podemos batizar esse gênero como “esqueleto do armário”. São reconstituições romanceadas, às vezes mais, às vezes menos, de momentos históricos traumáticos e, se possível, embaraçosos. No Brasil, por exemplo, discute-se a última ditadura, a luta armada e, de preferência, a tortura. Os franceses começam a abrir a caixa preta da colaboração com os nazistas, enquanto remoem a saudade do tempo em que a juventude não estava contente só de reclamar e tinha coragem de enfrentar, de verdade, a polícia sua inimiga – falo de 68, claro.

E para os alemães não falta assunto. A ascensão de Hitler, o holocausto, a guerra, a Gestapo, a Stasi, a divisão do país, os grupos extremistas, os neonazistas, o muro de Berlim… Milhares de roteiros estão garantidos. Baader Meinhof (vou chamar assim para simplificar) conta a história dos membros fundadores da Rote Armee Fraktion, ou Facção do Exército Vermelho, um grupo de extrema-esquerda que deu um trabalho enorme ao governo da Alemanha Ocidental nos anos 70.

Fundado em reação à morte do estudante Benno Ohnesorg por um policial e a quase concomitante tentativa de assassinato, por um rapaz de simpatias nacional-socialistas, do líder estudantil Rudi Dutschke, a facção acabou se tornando o mais famoso grupo de ação política violenta do país, a ponto de realizar e inspirar ações que beiravam o terrorismo e, no final, descambaram em definitivo para o terror puro e simples. No início dos anos 90, quinze anos depois da morte dos pais do movimento, ao dar por oficialmente encerradas suas atividades, a R.A.F já era definitivamente uma organização terrorista.

Comparado a outros emblemas do esqueleto no armário, como Adeus, Lênin, Edukators, A queda, A vida dos outros e Sophie Scholl, este não chega a ser exatamente um ícone do gênero. Por exemplo, o que deveria ser a história dos fundadores da R.A.F. acaba se perdendo em subtramas sobre as (assim chamadas) segunda e terceira gerações. Mesmo assim, é um grande filme para quem se interessa pelas peripécias da geração de nossos pais. Menção honrosa, como sempre, para as interpretações. Os atores alemães dão seu espetáculo habitual.

Isto aqui, porém, como de costume, não é uma crítica. Muito mais me interessa a história, um enredo que dá pano pra manga a quem se deixa fascinar por eventos do passado, com toda a estranheza que eles podem causar em quem não tem a triste pressa de encaixá-los logo de uma vez num julgamento qualquer, um juízo determinado, no mais das vezes, por conveniências pessoais. Nossas sensibilidades de princípios do século XXI, diante de ações como as de Andreas Baader, Gudrun Esslin e Ulrike Meinhof, provavelmente perguntarão por que essas pessoas jovens, belas e inteligentes largaram tudo para viver na clandestinidade e na cadeia; por que pegaram em armas e arriscaram a própria vida; por que se radicalizaram tanto, a ponto de perder a noção de quem estavam atacando e por quê.

Tenderíamos a rapidamente lhes atribuir um enorme ódio à democracia, pelo fato de quererem derrubar pela força das armas um regime, para instaurar outro em seu lugar, sem grandes consultas à população. Tenderíamos a dispensá-los como iludidos ou loucos. Mas tudo isso parece apressado, se não partimos de um ponto quase ingênuo: a perplexidade perante uma era de conflito e engajamento que, aos olhos de alguém com menos de trinta e tantos anos, parece não ter sentido.

O diretor Uli Edel e o roteirista Stefan Aust (autor do principal livro sobre o grupo) afirmam terem se preocupado em realizar o filme da forma mais objetiva possível. É claro que isso não existe e eles falharam. Através da Europa, estão sendo acusados de glorificar o terrorismo. Talvez por mostrarem na tela o encadeamento causal da escalada do terror, o que é quase proibido num tempo em que as condenações têm de ser sumárias e veementes, qualquer olhar em perspectiva sendo carimbado como “justificativa do injustificável”. Talvez por esconder casos como o de Horst Mahler, que, membro da facção e advogado dos companheiros, tornou-se, atualmente, um dos principais líderes neonazistas do país. Talvez por não mencionar que os principais movimentos de esquerda da Alemanha Ocidental repudiaram com veemência as ações do grupo, a começar pela Sozialistischer Deutscher Studentbund (Sindicato [União] dos Estudantes Socialistas Alemães) de Rudi Dutschke, ironicamente um dos principais inspiradores de Baader, Ensslin e Meinhof.

Talvez, também, por realçar o lado glamoroso dos envolvidos, o apoio popular que eles receberam durante os julgamentos, que foi grande, mas nem de longe tão exuberante. Ou com pequenas atitudes como esconder a língua presa de Andreas Baader, retratado como o rebelde inconseqüente que era, mas um tanto romântico, o que não é preciso: sua rebeldia era uma extensão politizada dos tempos de delinqüência juvenil. Mesmo depois de se engajar na luta contra o capitalismo, continuou tendo fixação por (roubar) automóveis de luxo. Em resumo, ele não tinha, à parte um carisma fora do comum, qualificação nenhuma para liderar um grupo clandestino.

Quanto ao retrato do grupo, o filme insiste de maneira talvez suspeita em mostrar a preocupação da “primeira geração” em não atacar alvos civis (“o povo”, na terminologia que empregavam). Insiste também nas cenas emocionais e na tentativa de explicitar até que ponto aquelas eram, afinal de contas, pessoas normais, como qualquer um de nós, mas que “simplesmente resolveram agir”. Ora, convenhamos, a pasmaceira de nosso começo de século é uma prova irrefutável de que resolver agir não tem nada de simples.

Mas a acusação de apologia ao crime, creio eu, não procede. Afinal, por outro lado, o filme releva algumas questões graves que conduziram à radicalização dos fundadores do grupo. Fica-se com a impressão de que todo aquele esforço era em protesto contra a guerra do Vietnã e nada mais. Embora a maior parte das bombas da primeira geração da R.A.F. tenham explodido em dependências do exército americano, essa interpretação está bastante exagerada.

Por exemplo, o governo da Alemanha Ocidental. A administração do país ainda estava, por incrível que possa parecer, apinhada de ex-membros do governo nazista. O braço direito de Konrad Adenauer, o ícone da democratização da Alemanha Ocidental, era Hans Globke, redator do ato que retirou a cidadania alemã de judeus, em 1935. Em 1966, a coalizão no poder elegeu Kurt Georg Kiesinger, membro do partido nazista durante a guerra, como primeiro-ministro. Muitos alemães não engoliam a rapidez com que o processo de desnazificação do lado ocidental foi dado por encerrado, entendendo que a Alemanha tinha se tornado apenas mais um instrumento do imperialismo americano. (Algo semelhante ocorreu também na Itália.)

Nesse contexto, é menos surpreendente o rumo que as circunstâncias tomaram. Benno Ohnesorg, já mencionado, foi morto pela polícia numa manifestação que o filme reconstitui perfeitamente, mostrando como a polícia permite aos manifestantes pró Xá Reza Pahlevi descer a mão, além de objetos terrivelmente dolorosos, sobre os estudantes que protestavam. O que o filme não mostra é a forma como o rapaz morreu: com um tiro à queima-roupa na nuca. Vemos apenas uma morte acidental, quando o que ocorreu, de fato, foi uma execução.

Não leia os próximos parágrafos quem desconhece inteiramente a história, para não, digamos, “perder a surpresa”. Mas a ausência mais grave do filme é a polêmica em relação à morte dos protagonistas. A versão oficial, do suicídio coletivo, é comprada e, pois sim, justificada. Dos três mortos em outubro de 1977 (Ulrike Meinhof, a jornalista, já tinha se enforcado), dois teriam tirado a própria vida com revólveres que, até hoje, não se sabe ao certo como entraram na cadeia. A terceira (Gudrun Ensslin) se enforcou na janela e uma quarta detenta, Irmgard Möller, golpeou-se diversas vezes no peito com uma faca de ponta arredondada, dessas de passar manteiga no pão, mas sobreviveu para declarar repetidamente que seus companheiros haviam sido executados por agentes da prisão.

Der Baader Meinhof Komplex passa por cima da suspeita. Mostra toda a preparação das mortes, o contrabando das armas para dentro da prisão (uma realização, no mínimo, espetacular), o pranto dos mais jovens quando uma veterana de R.A.F. lhes anuncia o suicídio coletivo. Porém, vá saber por quê, não se vê nada sobre o inquérito relâmpago que, em menos de uma semana, atestou as causae mortis. Tampouco se fala sobre o fato de que o canhoto Andreas Baader tinha marcas de pólvora na mão direita, nem por que Jan-Carl Raspe não tinha marcas de pólvora em nenhuma das mãos. Ficou por explicar, também, como Baader teria conseguido atirar em si mesmo na base do crânio, numa posição de contorcionista um tanto improvável. Aliás, mais que contorcionista, o rapaz era muito ruim de mira: havia três balas alojadas na cela, o que significa que ele errou a própria cabeça duas vezes antes de morrer.

Gudrun Ensslin, que se enforcou pulando de uma cadeira que, magicamente, estava contra a parede do outro lado de sua cela, tinha entregue um bilhete a seu advogado, algumas semanas antes, em que afirmava ter medo de “ser suicidada” como tinha acontecido, no ano anterior, com Ulrike Meinhof. (Cheguei a mencionar as suspeitas sobre a morte dela? Pois bem… a autópsia indica que ela teria sido violentada e sufocada antes do enforcamento.) Mas também não se ouve nada a esse respeito no filme de Edel e Aust, que supostamente celebra o terrorismo.

Somando as omissões de lado a lado, o filme parece equilibrado; objetivo, não. Isso, como eu disse, não existe. Todas essas informações fundamentais que estão ausentes poderiam perfeitamente não aparecer no filme se ele assumisse uma configuração de thriller, aventura, romance. Mas a escolha ficou dúbia, em muitos momentos parece que a intenção era fazer um documentário. Nesse caso, a falta de menção a tudo que está dito acima e a aceitação sem questões da versão oficial são, de fato, graves. Poderíamos alegar que o filme mistura, ou funde, a ficção e o documental, mas num tema tão repleto de polêmicas, o resultado é apenas ficar no meio do caminho.

Mesmo assim, estranhezas à parte, reafirmo que Der Baader Meinhof Komplex faz parte da lista de filmes que precisamos ver, para adquirir um pouco de perspectiva sobre a história recente. Mas, como este texto já está extenso muito além da conta, deixo para o próximo as considerações que o filme me causou.

(Enquanto isso, mudo bruscamente o assunto para deixar meus votos de um feliz natal!)

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A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

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O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

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Oito coisas e eu defunto

Cachoeira da Fumaça, Chapada Diamantina, Bahia
Enquanto estive fora, recebi um convite para um meme vindo lá do Ágora com Dazibao no Meio, do carioca Ricardo Cabral (que assina Ricardo C., talvez para esconder o parentesco com o governador. Será?). Ricardo pensa mal de mim. Acha que não vou aceitar o convite porque sou muito cabeça. Mas ele diz isso porque não me conhece. Se conhecesse, saberia que a parte do corpo que mais uso, aliás abuso mesmo, é o fígado.

Mas o blogueiro Cabral tem lá sua razão. Já fingi não ter visto uma série de memes (falando nisso, ô palavrinha detestável! Na sua aplicação bloguística, trucida o sentido que Dawkins quis lhe dar ao cunhá-la…). Mas se o fiz, foi porque aqueles eram memes “ruins”: “cinco discos que você adora”, “dez pessoas que deveriam ser empaladas” e outras listinhas que não interessam a ninguém. O meme do Cabral é um meme “bom”: apesar de girar em torno de um número, coisa inevitável em nossa época de planilhas, esse é um convite que dá o que pensar. Em outras palavras, é um convite ao diálogo entre blogueiros, entre leitores, entre blogueiro e leitor.

Chega de nariz-de-cera, vamos ao meme: seu tema são as oito coisas que tenho de fazer antes de morrer. Mas, por favor, blogueiro que quiser dar seguimento ao meme: não é uma lista banal com oito itens: “conhecer o Nepal”, “provar LSD, “ouvir Jimmy Page ao vivo”. A idéia é falar sobre o assunto. Não é trocar dados, é trocar humanidade.

Acontece que esse papo de morte é um pouco perturbador. Penso na questão e me vêm à mente várias coisas que são feitas depois dela: velório, enterro, cremação, obituário, missa de sétimo dia. Mas isso, são outras pessoas que têm de fazer pelo defunto. Mesmo que ele deixe instruções por escrito, não terá forças de obrigar os seus a segui-las. Ou seja, no meu caso, se quiserem me velar, vão velar, com a desculpa de se despedir de mim. Honestamente, tendo a crer que se quisessem se despedir, viriam abraçar meu cadáver. Me deixar deitado entre flores e moscas não é despedida, é tortura. Uma tortura tradicional, contra uma vítima indefesa e que jamais vai abrir o bico, mas ainda assim, tortura. Não estou dizendo que todas as tradições sejam más, mas essa aí me incomoda.

Sei que estou fugindo do assunto, mas não faz mal: fugir do assunto é uma delícia, gosto muito, Syd Field não manda neste blog. Agora, retorno ao mundo do meme. Oito coisas a fazer antes de morrer. Mas, puxa, é tanta coisa que quero fazer, e são todas enquanto estiver vivo! Mas só posso escolher oito, isto aqui não é uma autobiografia por antecipação. Então resolvi colocar um pouco de pimenta no assunto: vou partir de um cenário bastante assustador, mas útil. Imagino um oncologista insensível que me anuncie, na lata, meus últimos seis meses de vida. Mas é uma doença rara: meio ano vivendo normalmente e, de uma hora para outra, cair duro. Não sei como eu receberia essa notícia na vida real. Mas, nesta minha suposição, eu seria frio como Friedman: seis meses para fazer oito coisas, é isso e fim de papo. E finalmente me sinto à vontade para atacar o tema do meme.

Por mais cético que eu seja, principalmente em assuntos de vida após a morte, não consigo jogar uma banana definitiva para a posteridade. Engraçado, tenho pouca esperança no hoje, mas, bem, aos do futuro, temos de antecipar algum crédito. E creio que, para evitar a terrível desgraça de formar uma próxima geração tão medíocre quanto a atual, é preciso bagunçar as cabeças desde já; as dos bebezinhos e até as nossas. Sendo assim, sabedor da minha morte próxima, eu redigiria umas poucas páginas de uma obra cujo propósito seria resultar inacabada. E começaria assim: “Sei que as n (digamos… 10) teses que vou apresentar são horrendamente polêmicas e parecem atentar contra o bom senso e qualquer tipo de lógica. Mas estou certo de que a argumentação que as sustenta nos capítulos seguintes será suficientemente rigorosa e bem construída, e há de demonstrar com clareza a verdade do que estará exposto.” Em seguida, mais alguns parágrafos recheados de auto-elogio, mas muito bem disfarçado, para seduzir os leitores mais refratários sem passar recibo de afetação. Finalmente, as n teses (quantas eram? Dez?), enumeradas uma embaixo da outra, no melhor estilo analítico anglo-saxão. Por último, um “vamos então aos argumentos”. E acaba aí, porque o autor morreu sem poder concluir sua obra-prima, o coitado. Com isso, na minha fantasia, por gerações a fio as pessoas se ocupariam concordando e discordando, construindo provas e refutações, e teriam de sair da letargia intelectual. É presunçoso, claro, mas o cenário é meu, faço com ele o que quiser.

A segunda idéia parece coisa de gente boazinha, mas não é. Sem mais rodeios: eu devolveria meu apartamento e distribuiria minhas posses. Não é questão de ser franciscano, nada disso. “Liquidez é liberdade”. Eis aí uma divisa interessante… Quem tem posses está preso a elas. Você não é você: você é uma soma de você com sua casa, seus móveis, seus livros e discos, seu carro e suas contas a pagar. Mas quem precisa disso quando sabe que vai morrer? Com a ampulheta escorrendo, não quero passar o tempo na fila do banco.

Muito bem, liberdade conquistada, restaria fazer o óbvio: viajar bastante e torrar a tal da liquidez passeando por aí. Vamos dizer, pela América Latina, já que o mundo inteiro é demais para seis meses. Pode parecer um princípio um pouco guevaresco, talvez mesmo bolivariano, mas aí está uma leitura errada do meu projeto: quem vai morrer não tem mais tempo de revolucionar nada. Na verdade, é uma espécie de Libertadores pessoal; falando nisso, um certo número de estádios não está fora da lista de afazeres. Dar um olá para os vizinhos, pense comigo, não seria má idéia. Nada mal, terminar a vida entre os menonitas do Paraguai, os incas do Peru, folha de Coca e tudo, um daiquiri e um puro legítimo ao som de Compay numa praia do Caribe. Enfim, um pouco de prazer e cultura não fazem mal a ninguém.

Mas nem só de hedonismo vivem os moribundos, é claro. E os deslocamentos cansam, mais cedo ou mais tarde. Já mencionei a questão da posteridade, não? Pois bem: enquanto estamos vivos, deixamos sempre, talvez por preguiça, ou então por crueldade, ou ainda orgulho, uma infinidade de arestas por aparar. Muitas delas fáceis, rusgas desnecessárias, que não precisariam ter durado mais do que alguns instantes. Mas nós, em nossa estupidez perfeitamente natural, deixamos que cresçam até nos sufocar. Sou tão orgulhoso quanto qualquer um e não estou particularmente interessado em deixar um rastro de paz e alegria como legado, mas suponho que a proximidade da morte seja algo que amolece o coração. Para amainar os ódios e rancores, inventarei versões para todos os fatos dolorosos do passado, de forma a deixar em boa situação o antagonista. Mesmo que eu esteja seguro de ter razão, morto, ela não me fará nenhum bem. O que custa aliviar a consciência alheia? Puxando pela memória, só consigo pensar em duas exceções para este terceiro ponto. Gente que, por mim, pode carregar a culpa para a tumba (a deles, não a minha).

Quebrei a cabeça feito um louco e só agora cheguei à metade dos itens que quer o meme do Cabral. Oito é um número alto… puxa. Mas é preciso louvar o criador da série por não ter escolhido um daqueles números de sempre: três… cinco… sete… dez… A gente se acostuma a enquadrar o pensamento nas categorias mais banais e desnecessárias. Uma atitude simples, como essa de escapar aos algarismos cabalísticos, já é heróica. Um verdadeiro exemplo para o resto da nossa existência. O lado um pouco desconfortável é ter de inventar mais quatro coisas para fazer nos últimos meses da vida.

E, como acho que já soltei demais as rédeas da bondade (fui franciscano, fui agregador…), me sinto no direito de abrir espaço para a minha maldade. Quer dizer, maldade bem entre aspas. Trata-se muito mais de subverter algumas aberrações que se cristalizaram no inconsciente coletivo de todo mundo e, na seqüência, foram atacar a consciência individual de cada um, a ponto de muita gente desenvolver justificativas de muita complexidade para crenças que, cá entre nós, são umas enormes tolices. A essa altura, com só mais dois meses de vida a viver, sem precisar fazer planos para meu próprio futuro, sei que vou estar livre para me dedicar à atividade cruel e deliciosa de derrubar, ou pelo menos tentar derrubar, um certo número de ícones que me sobem à cabeça. Isso que venho de dizer pode parecer enigmático, e a idéia é essa mesmo. Estamos tratando de um futuro hipotético, em que não me desviaria de nada mais importante o trabalho de apontar charlatães, escarnecer de conceitos, sabotar monumentos e assim por diante. Não pense, por favor, que sem a perspectiva da morte eu seja um conformista, preguiçoso conservador. Simplesmente sou obrigado a expor meus argumentos com parcimônia e prudência, tentando trazer as opiniões e espíritos para o meu lado sem assustá-los e pô-los em fuga, conforme ensinou o velho Sun Tzu. Se hoje preciso ser sedicioso o quanto der, à beira da morte poderei escancarar meus propósitos mais disfarçados.

Muito bem, eis cinco coisas. A sexta será um escorregão na fraqueza. Nosso mundo nos oferece todo tipo de opções imediatas que, se somos preocupados com o longo prazo, evitamos, recusamos, tentamos ao máximo escapar. Longo prazo? Não para alguém que já prepara as malas para o encontro com a morte. Conclusão: limites para quê? Nas poucas semanas em que meu sangue ainda circularia, teria de aceitar ser transformado em laboratório. E se acaso, certa vez, eu passasse dos limites, problema nenhum: o pior que poderia me acontecer seria a morte. Mas, convenhamos, isso não representaria nada em termos de trade-off. Ainda algum cretino poderia me acusar de eutanásia, mas que então me denunciasse e mandasse atirar no xadrez meu cadáver. Irônico, não? Pergunte a algum cronista sóbrio como quer terminar a vida e ele responderá: doidão!

Muito bem, das oito coisas que me pediu o sobrinho do governador, faltam só duas. Para me livrar da tarefa de maneira cretina, mas eficaz, eu poderia dizer, não inteiramente desprovido de razão, que a última seria morrer, e a penúltima, preparar a morte. Se eu fizesse isso, quem chegou tão longe na leitura me lincharia com certeza. Mas o que vou fazer, afinal, não chega a ser muito diferente. Minha sétima atitude pré-“bater as botas”, a ser tomada poucos dias antes da hora fatídica, seria voltar ao médico, fazer novos exames e me certificar de que é isso mesmo, ele tinha razão, mais alguns dias e acabou para mim. Imagine o pandemônio que seria descobrir uma cura milagrosa à beira do fim, depois de me desfazer dos meus bens, prometer argumentos que não posso expor, dissipar os últimos fundos numa viagem interminável, oferecer em presente a meus desafetos uma consciência tranqüila imerecida, fazer novos inimigos lá onde só havia quietude e estragar o que restava do meu organismo condenado?

Nessa hora, talvez eu preferisse ouvir do doutor a confirmação da morte próxima. Ainda assim, muito me atrai a idéia de recomeçar a vida em bases inteiramente diferentes. Para além das implicações filosóficas que representaria uma experiência radical desse jeito, seria, na prática, um sopro de vida tão forte que só mesmo a morte sabe dar. Mas não posso aventurar essa hipótese neste texto: na falta de seu elemento unificador, ou seja, a própria morte, tudo que venho escrevendo perderia inteiramente o sentido. Conclusão: vou ao médico, apreensivo, mas ele balança a cabeça e diz, se fazendo de desolado: “É… isso mesmo. Seu quadro não deixa dúvidas. Dois dias e já era”. Deixo o consultório num misto de apreensão e determinação. Sei que, num dia como esse, eu suaria frio e o mundo de minha visão estaria borrado, como se eu fosse desfalecer a qualquer instante. Eu tentaria me agarrar à consciência e ao sangue frio, embora, nas veias, o sangue de verdade estivesse a um grau da ebulição. Eu tentaria me concentrar nos dois dias, não como o que me separa do aniquilamento, o nada definitivo, mas como o prazo que me concedeu a enfermidade para cumprir minha última tarefa, a já famigerada “oitava coisa”…

Dois dias é tempo suficiente para chegar à Cachoeira da Fumaça, Bahia (salve, meu pai!). Mas antes de terminar esta saga dos meus últimos dias, que já nem agüento mais escrever, e imagino que você também não suporte mais ler, preciso alertar que, como todo mundo, sou contra o suicídio. Conforme a nosso código moral, considero-o crime mais hediondo do que a covardia e a tirania. Tirar a própria vida não é justificado nem quando as convicções de nosso inconsciente, ou a mera lógica, parecem justificá-lo. Antes definhar, passar as últimas horas na dependência da morfina e ser reduzido à aparência de uma múmia anoréxica a cometer o supremo absurdo de abandonar este mundo num ato de livre arbítrio.

Por outro lado, também me parece que a morte é o momento mais importante de uma vida. É uma espécie de fecit, poioumenós, de parla, sei lá eu. Sem a morte, toda vida é uma história incompleta. Não soa injusto que passemos toda a vida buscando a dignidade, o estilo, e na hora da morte aceitemos qualquer coisa, mesmo uma bobagem como ter um piripaque no meio da rua? Acho irônico. Os bravos guerreiros do passado, afinal, não eram assim tão irracionais, ao preferir perecer no campo de batalha, jovens, mil vezes a fenecer enfraquecidos num leito de morte mal-cheiroso. É uma estranha dicotomia. De um lado, o pecaminoso; de outro, o indigno.

Eis onde entra a cachoeira da fumaça: na tentativa de conciliar o que duas partes tão diferentes de mim consideram mais apropriado. É mais do que simplesmente encontrar a morte no meio de uma beleza fantástica como a da Chapada Diamantina. É incorporar a beleza à morte de uma maneira que mesmo em vida não seria possível. Quando estive no alto desse despenhadeiro, anos atrás, veio sem ser chamado um pensamento geométrico. Tanto espaço, tanto ar, entre as escarpas em que se agarram arbustos cegos! Uma multidão de pontos de vista ocupados só com partículas de água invisíveis, tão insidiosamente densas que desencorajam até o vôo turístico dos pássaros. Um volume de ar sem olhos. Um crime.

Não digo que seja sem sentido. É que não consigo me livrar de uma certa tendência hegeliana a achar que o espírito precisa superar as mistificações da pura natureza, virgem, violenta, perigosa. Hegel poderia até estar certo, não fosse o fato de que o espírito pode muito pouco quando o corpo é tomado de vertigem. Seguindo as instruções dos guias, o espírito só pode se aproximar do abismo para espiar a maravilha se for se arrastando, o ventre contra a pedra fria e áspera. Uma humilhação para o espírito, talvez? Creio que não chegue a tanto. Ainda é o espírito que se dispõe a pôr-se na horizontal para um momento de concentração que aos irracionais não é possível. De pé, nem o mais inabalável dos brutos conseguiria evitar a tonteira e a queda. Então o espírito saudável, o que faz? Não tem pudores de meter-se de joelhos em busca da beleza que cobiça.

Entre as oito coisas a fazer antes de morrer, faço questão de incluir a própria morte. Conhecendo o destino inevitável, adquirimos um controle tão magnífico sobre a própria vida! Quantas vezes não sabotamos nossas volições mais brilhantes por medo da cortina que nos esconde o futuro e, no futuro, a idéia vaga que nutrimos da morte, única face assegurada da existência! Será que o melhor exercício do bem viver não seria convencer-se de que a morte está próxima, muito próxima? Deixo a questão aos autores de auto-ajuda. Quanto a mim, imagino algumas despedidas, dois ou três goles de cachaça para dar coragem, uma longa inspiração profunda de ar puro, impregnado de pólen e, quando o guia não estivesse olhando e não pudesse me impedir, o salto, tão distante quanto desse, naquele vazio cheio de atmosfera e paisagem. Seria uma queda louca, alucinante, infelizmente curta. Eu veria coisas que ninguém viu, de uma maneira que ninguém imaginou.

E aí, terminaria tudo. O ideal seria ter a crise que de qualquer jeito me mataria, o mais próximo possível do fim do percurso. Que frustrante, não, tombar logo depois do impulso? Minha queda pela Chapada seria como a de um saco de beterrabas. Mas o mais provável seria nem sofrer o ataque: morrer quando o corpo desse com o chão, pesado e moído. Aí sim, podemos dizer que houve um suicídio, uma eutanásia, um ato ilícito, um horror. Mas se forem buscar meus restos, teriam dificuldade em determinar o momento do sinistro, então seriam obrigados a me sepultar direitinho, de preferência por ali mesmo. A morte pela queda, dizem, é instantânea. A vítima não sente nada. Os ossos são feitos em pedaços de repente e acabou. É um pensamento terrível, mas nem tanto para o morto ele mesmo. Afinal, quando minha carne estiver espalhada, molenga, sobre as rochas cobertas de limo aos pés da cachoeira, que me importarão meus ossos? Não haverá mais ninguém ali para se importar, eis uma subjetividade a ser riscada da agenda.

Fim deste texto desordenado, cheio de digressões, quase sem unidade, às vezes enfadonho, às vezes simplesmente tolo. A rigor, eu deveria ter vergonha de submeter o distinto internauta a uma provação dessas. Mas estou tranqüilo, primeiro porque sei que o internauta não se submete a nada e eu não tenho o poder de ofendê-lo; depois, porque me diverti pensando todas essas tolices sobre minha própria morte. Pois é, isso me basta. Agora, para obedecer às prescrições do Cabral, sobrinho do governador, deixo aqui minhas indicações:

Anny
Diego
Marcão
Naty
Nelson
Olívia
Rafael
Sandro

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