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Conhecido entre os traços

Fotograma do primeiro filme da série O Poderoso Chefão, com um close do ator Robert Duvall

Executa seu caminho no meio de outros tantos corpos, sóbrios no vestir e no pisar o pavimento, cada um em respeito solene ao próprio traçado e nada mais. A tarefa não exige esforço algum, como nunca exigiu, se não for a observação estrita do acordado, do decidido há tempos.

A única novidade é quase nada. Uma força esquisita que empurra para trás. Um pouco incômoda. Está presente, insidiosa, desde os primeiros passos, ainda sobre o carpete da sala de estar. Nunca tinha acontecido, essa energia pesada, negativa, que chega sem anúncio, vinda não se sabe de onde.

Com ela, abafando o som dos outros corpos, a percussão das solas e saltos, os grunhidos da cidade a acertar a disposição apropriada, só ascende à consciência a vibração de um pensamento: a repetição monótona de uma expressão vulgar. O palavrão se valoriza ao raspar, áspero, uma garganta imaginária. As idéias que vêm do fundo permanecem insondáveis. Misteriosos como o empuxo que se opõe ao impulso adequado.

Nada de notável.

Sim, sem dúvida, condições objetivas existem. Questões pragmáticas. Uma pequena coleção de falhas, lado a lado com a lista humilde de sucessos, e o equilíbrio pende discretamente para o lado pessimista. Sem esquecer o inevitável; dessintonia conjugal, fantasias capciosas, contratos rompidos, o sucesso profissional postergado, perspectivas sufocadas.

Uma inclinação do momento, coisa de hormônio, conjunção astral, seja o que for, provê a condição que desequilibra a balança. O prato mais pesado é o que verga de amargura. Na liga, entremeados, o cansaço das férias por tirar, a frustração de estar aquém das ambições sexuais, a dificuldade em aceitar que o tempo se arrasta, como sempre se arrastou para todos.

Entre a força anônima e a imagem difusa de todos os nomes, a mente equilibrada se vê na obrigação de decidir uma estratégia. Pois a retirada é uma estratégia sensata. Vergonhosa, mas sensata. Antes retroceder a ser carregado pelos ventos. Cobrir com as mãos o rosto é melhor, muito mais digno, do que arrancar os olhos para seguir na ofensiva.

Encontra uma superfície horizontal para largar o peso do corpo. Fria, seja o que for, exerce bem o papel de um banco. Então basta para retomar o ânimo, que escapara em algum momento do percurso, sem se dar a perceber.

Ao lado, um outro homem. No turbilhão dos vetores que disputavam um corpo, a cegueira temporária o ocultara. Mas ele esteve sempre ali. Deitado, encolhido, abraçado aos próprios ombros como à última posse que lhe resta. Finge dormir.

Observa-o. Um mendigo. Com todos os atributos de quem vive na rua, procurando a cada noite um novo abrigo. Andarilho debaixo do sol, encalacrado sob as estrelas, eis sua única certeza. Um homem que se apropria da cidade sem que nada na cidade lhe seja próprio.

Estranha figura. Um rosto familiar. A tal ponto que os olhos se fixam sobre os traços e rechaçam o esforço de afastamento. Feições que poderiam ser reconhecidas debaixo da escuridão mais profunda. A familiaridade produz um calafrio. As pontas dos dedos gelam, os pelos do braço eriçam. Quer tocar o vizinho, pousar os dedos sobre seu ombro, depois sentir a textura da pele, devagar. Não ousa. Mas não é asco. Não é nada. Apenas encara.

O homem sente que é observado. Sacode-se bruscamente, não a ponto de assustar. Abre enorme a boca, como para escarrar um grito. Desiste. Emite apenas o hálito de álcool. Põe-se sentado, lentamente, na calma de quem não acompanha as centenas de trajetórias riscadas pouco adiante. Desperto, seu rosto é jovem. Terrivelmente familiar. Alguém do passado, talvez. Impossível não fitar. Um olhar fixo assim deveria incomodar, deveria ofender, mas o homem não deixa ler sua opinião. Apenas exibe a face, os traços que parecem os mesmos de algum sempre.

Passado um instante, o homem desvia sua face conhecida. Lentamente, apóia-se nas duas mãos para se erguer. Como um velho. E se põe em marcha. Termina cada passo antes de começar o seguinte. Cambaleia, mas projeta o corpo e conquista o espaço. Desloca-se em curva, pende para um lado, deixa a impressão constante de que vai cair.

Mas o homem segue. Uma atenção aflita o acompanha à distância. Guarda no inconsciente a linha imaginária que o corpo descreve, no menor detalhe de sua irregularidade. O arabesco intercepta os riscos deixados pelos outros pares de pés, como se os conspurcasse. Desenho livre, atinge as trajetórias de todas as direções e não pede licença. Insolente, a figura.

Salta quando crê que o homem vai ao chão. Ensaia apoiá-lo com o braço, mas interrompe o gesto em pleno ar. Assim permanece, um passo atrás do rosto familiar, sem a ousadia de aproximar-se. O reconhecimento, que atraía, agora repele, com intensidade parelha. Porque a posição é outra; ou porque, junto com o mendigo, o universo se deslocou; ou porque algo emergiu à consciência.

Está claro, mas não nítido, por que o desgraçado é assim tão familiar. As paralelas que deveriam se encontrar no infinito podem sofrer desvios. Podem chocar-se ainda no tempo. Eventualmente, acontece.

Põe-se a correr. Correr é a saída. As funções mecânicas assumem o leme da mente e a recolocam no trajeto planejado, sem empuxo que arraste, sem força alguma conclamando a retroceder. Quando dá por si, já está em pleno destino, agachado, apertando os olhos para escapar à claridade.

Da experiência, somente uma convicção que se insinuara. A desgraça é livre, é fascinante e familiar. Ei-la, a verdade. Parece temível, a desgraça. Mas dá o poder de interromper e cortar todas as trajetórias com a mera vontade.

Só que as trajetórias, conforme é ensinado, acordado e decidido, são sagradas.

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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