barbárie, capitalismo, costumes, crônica, deus, escândalo, guerra, humor, imprensa, ironia, jornalismo, opinião, Politica, prosa, religião, reportagem, tristeza, viagem, vida

Entrevista: “O capeta está por todo lado”

<!– @page { margin: 2cm } P { margin-bottom: 0.21cm } –>

Quando cheguei ao local marcado, ele já estava sentado à mesa, brincando com o gelo de seu Bloody Mary. Temi que estivesse atrasado, mas ele percebeu minha perturbação e meu gesto instintivo de olhar para o relógio. Nem bem me aproximei, levantou-se sorridente e me acalmou, explicando que sempre aparecia (com trocadilho) com ao menos uma hora de antecedência para qualquer compromisso. Questão de conhecer o ambiente, explicou, com a expressão de quem quer dizer algo completamente diferente – mas não consegui divisar o que seria.

.

Falando em ambiente, meu interlocutor destoava completamente daquele bar de hotel de luxo. O fraque encarnado, com duas fileiras de botões dourados, era talvez a única peça colorida no ambiente dominado por paletós e correlatos – fazia concorrência aos copos de bebida. Enquanto tomávamos nossos lugares à mesa e eu acionava o gravador, minha atenção foi atraída por sua cabeleira solta e flamejante, que emolduravam um olhar tenebrosamente sereno, para lá do cinismo.

.

Jamais estive tão apreensivo antes de começar uma entrevista. Também, pudera. Não é todo dia que se recebe a incumbência de metralhar com perguntas um autêntico representante do Outro Mundo. À minha frente, Jinn Daimon, diretor de Relações Públicas do Inferno (LTDA), aguardava com ar de mofa as duas dúzias de questões que eu tinha preparado para ele. Pelos 90 minutos seguintes, seríamos só eu e um Arrenegado, frente a frente, cara a cara.

.

Cabe frisar que a proposta desta entrevista partiu do próprio setor de RP da Tisnado Corporation, a holding que controla o Inferno. O telefonema chegou em plena madrugada, quando só este desavisado, de plantão, dormitava diante do terminal, à espera de que não caísse algum avião presidencial, nem morresse uma princesa, nem um terremoto sacudisse algum país e me obrigasse a trabalhar. Em vez de qualquer desses eventos estraga-soneca, um estranho convite para entrevistar um gramulhão de verdade. E o plantonista, já dominado pelo sono, concordou sem se dar conta do que fazia.

.

Contra todas as expectativas, Jinn Daimon foi de uma cortesia atroz. Apesar de uma tendência a desprezar os mortais em geral e os jornalistas em particular, o das-trevas não ergueu a voz em momento algum, mesmo quando oferecia réplicas de grande rispidez, e explicou com muita paciência cada ponto de seu programa satânico. A seguir, leia os principais trechos da entrevista, concedida em pleno coração de São Paulo.

*

Em primeiro lugar, por que este lugar para a entrevista?

É assim que funcionamos. Você pensa, a gente faz. Olhe em volta: metade das outras mesas tem pilantras fazendo negociatas. Nas outras, prostituição, adultérios, mafiosos tomando V.S.O.P. com dinheiro sujo. Não é assim que vocês imaginam o inferno, cá neste vale de lágrimas? Pois então, desejo-lhe as boas vindas. Eu só estava querendo agradar e é muito agradável ver suas expectativas confirmadas. Sinta-se um felizardo.

Então o inferno não se parece em nada com isso?

Custo a crer que seus leitores estejam interessados na aparência do inferno. Desculpe invadir a sua mente, mas sei bem que não é isso que você quer perguntar. Por favor, não faça cerimônias, eu não sou nenhuma sumidade infernal. Sou apenas um espírito de negócios. Sou um profissional do mercado. Vamos, solte suas perguntas.

Por que o inferno decidiu vir a público?

Como qualquer outro grupo empresarial, a Tisnado Corporation traça, a cada temporada, um planejamento de longo prazo. Nosso foco atual é na abertura com o público. Buscamos maior visibilidade e transparência. Somos a maior central de vileza no universo e queremos que o mercado saiba valorizar nosso produto. Estamos cansados de concorrentes reivindicando nossas atividades e atraindo investidores que deveriam ser nossos.

Quem andou reivindicando maldades demoníacas?

Você sabe. Ditadores, bispos, bandas de heavy metal… Essa molecada toda.

Os negócios do inferno estiveram ameaçados por essa concorrência mais… visível?

Imanente. Nós dizemos imanente. O Inferno é transcendente e a concorrência é imanente. Entendeu? O que costumava ser nossa vantagem passou a ser uma desvantagem, muito em parte por causa de alguns erros de estratégia que nós mesmos cometemos. Sim, nossos negócios foram abalados. Mas nada irreversível, graças às Profundezas. Por sinal, eu assumi o cargo com exatamente essa missão: reverter a derrocada do inferno.

Dizia-se, há alguns anos, que “a estratégia mais inteligente do tinhoso foi convencer o mundo de que ele não existe”. Essa estratégia existiu mesmo ou foi só um dito popular?

Fico contente que você tenha feito essa pergunta. Demorou, mas chegou. Você é muito tímido. Olha, faço questão de que você coloque no texto que, nessa época, eu não era responsável pela área de RP no inferno. Eu ainda era estagiário. Não quero ter meu nome associado a esse fracasso retumbante e mais que anunciado.

Parece uma estratégia sagaz… Se as pessoas pensam que o Coisa-Ruim não existe, elas ficam livre para fazer o mal, certo?

Você claramente não entende nada sobre o funcionamento do mal! Deveria se preparar melhor antes de fazer uma entrevista.

O mal não é mesmo minha especialidade…

Pouco importa. Veja, vou lhe dar um exemplo banal, mais banal impossível, de como nossa marca foi apropriada pelos outros. Até a coisa mais medíocre que existe: a indústria do entretenimento, que se considera infame, como se alguém pudesse nos igualar em infâmia… Você certamente viu a trilogia de Guerra nas Estrelas na infância. Pois bem, aquela famosa frase de Yoda: “Fear leads to anger, anger leads to hate, hate leads to suffering”… lembra?

Claro, perfeitamente… É a descrição do caminho para o lado negro da força… o que vocês têm com isso?

Ora, meu filho! George Lucas roubou esse tema de nós! Lado negro da Força, bah! Há seis mil anos esse dito está na porta da empresa!

Não era “Deixai toda esperança, vós que entrais”?

Isso é nos pontos de venda. Estou falando da sede social. Enfim, você é um despreparado. O que quero dizer é que, desde que a humanidade é humanidade, nosso trabalho consiste, com algumas variações, em deixar as pessoas com medo. Por quê? Ora, porque o medo leva ao ódio, o ódio ao sofrimento, e o sofrimento traz o cliente para nossos braços! Conquistamos legiões e legiões de almas assim, a ponto de tomar empréstimos no Banco Outro-Mundial para expansões urgentes. É a estratégia dos quatro “m”: Medo, Medo, Medo e Medo. Está em qualquer manual de marketing.

E por que isso deixou de funcionar?

Convencer as pessoas da nossa inexistência foi o maior erro. Aliás, eu fui contra. Sem risco de sofrer os castigos da danação eterna, as pessoas vão ter medo de quê? O resultado não poderia ter sido mais desastroso. A humanidade – felizmente não toda ela, mas pelo menos uma maioria pertencente a uma certa geração – resolveu ser feliz. Assim, sem mais nem menos. Passaram a agir em liberdade, a buscar diálogo, a tentar resolver seus próprios problemas, a compreender e aceitar o outro, a questionar seus preconceitos… Chegamos a ficar com 70% de capacidade ociosa! Imagine você que houve gente que se meteu a buscar a paz, a paz de fato, quer dizer, na Terra, entre pessoas vivas, em vez de proceder com violência em nome de uma paz idealizada e atribuída ao outro mundo! Quando as pessoas perderam o medo do inferno, elas perderam no instante seguinte a capacidade de odiar! Foi a ruína para nós, você imagina!

Como isso se traduz em valor de mercado?

Pensávamos em fazer um IPO. Desistimos, não ia trazer nada. Além do mais, nosso mote foi parar em filmes de ficção, como já falei. Coisa mais humilhante… Até a figura de nosso CEO foi representado ficcionalmente, de uma maneira até ridícula… Jack Nicholson, Al Pacino… Nunca chegamos tão baixo. Felizmente, outras companhias do mundo espiritual foram tão afetadas quanto nós. Sem pensar em demônio, quem se preocuparia em seguir cegamente os preceitos de algum grupo religioso? Assim como nosso mercado de vilania, o mercado de orações minguou, minguou… Qualquer pé-de-chinelo poderia fazer uma oferta hostil na Bolsa e levar o Céu inteiro. Só que foi uma quebradeira geral. Nem os pés-de-chinelo escaparam.

E quando a luz vermelha se acendeu…

Então houve uma reunião emergencial com representantes de todo o universo desencarnado. Tinha serafins, grandes figuras do Limbo, espíritos malignos de todas as levas… Foram meses e meses de discussões levadas em poucos segundos, de maneira não raro áspera, com idas e vindas… Não tenho muito como falar porque não estava presente, só vi os autos depois de minha nomeação para o cargo que ora ocupo.

Como foi essa nomeação?

Tanto no céu quanto no inferno decidiu-se que já passava da hora de injetar sangue novo – sangue, aqui, é uma metáfora, você compreende… – nos negócios. Toda uma geração jovem e com muita vontade de trabalhar foi promovida para os cargos principais. Eu sou um representante dessa geração. Comigo subiu, por exemplo, o Arcanjo Raul nas finanças do Céu, Alexandre o Grande no Ministério da Defesa do Limbo… e tantos outros. O Purgatório foi customizado, construímos resorts na beira do Lethê, os Campos Elísios deixaram de cobrar consumação… Foi uma verdadeira revolução. Resolvemos tornar o Outro Mundo mais jovem, dinâmico e atrativo para as gerações que cresceram vendo televisão. Tínhamos chegado a um ponto em que a publicidade causava mais mal às pessoas do que nossos próprios agentes, os súcubos e íncubos. Isso era ridículo.

Quais foram suas principais medidas?

Tudo muito simples. Posso resumir minhas decisões em poucas palavras: nada de esquecimento do Belzebu. É preciso que as pessoas o vejam em toda parte. Onde está, onde não está, onde já esteve, onde nunca estará. É claro que isso nunca funcionaria sem a colaboração estreita com o Purgatório, o Céu e o Limbo. Percebendo que a situação era crítica, todos decidiram juntos que não se poderia mais separar o medo do ódio. Era preciso atacar em ambas as frentes ao mesmo tempo, caso contrário ambos se consumiriam sem jamais chegar ao sofrimento que leva ao mal e ao inferno. Todos os representantes na Terra das instâncias do Lado-de-Lá agiram em concerto para instilar ódio, preconceito, pavor, ressentimento, radicalismo e cinismo nas almas dos viventes. Eram pastores pregando, vendilhões negociando, políticos acusando, jornalistas vociferando, grupelhos se explodindo… Uma festa!

Isso não configura um cartel?

Meu filho, deixe de ser ingênuo. Você acha que alguma agência reguladora teria a força de combater um monopólio envolvendo o Céu e o Inferno? Fique contente por ainda não ter havido uma fusão. Aliás, digo isso em off: as negociações estão bem avançadas! [N.B.: o jornalista não respeita off demoníaco.]

Vocês já têm dados sobre o retorno dessa estratégia?

Não poderiam ser melhores. Você não vê a virulência com que a política tem sido feita em alguns países? Você não ouve os berros ensandecidos de determinados articulistas? Você não sabe o que anda sendo feito no Vaticano e em outros grandes centros religiosos? É magnífico! Nossos vestíbulos estão abarrotados, taxa de ociosidade zero vírgula zero vírgula zero vírgula zero. Pensamos até em contrair outro empréstimo no Banco Outro-Mundial para novas expansões. Só não batemos o martelo ainda porque as taxas de juros andam que nem a água benta. O projeto de IPO voltou a todo vapor. O céu também está contente, porque, mesmo se a grande maioria das almas vêm parar conosco, eles conseguem lucros fabulosos no mercado de derivativos de orações, súplicas e exortações… Enfim, voltamos ao jogo.

Que recomendações você daria para alguém que quer escapar da perdição eterna?

Deixe disso, meu filho… Estamos de braços abertos para todos. Tema, odeie, sofra, e venha para este novo e excitante mundo das punições dantescas!

E para quem insiste em não pensar nessas coisas?

Ah, os resistentes! Ah, os lúcidos! Ah, os ponderados! Esses chatos. Digo o seguinte: o demônio está em todo lado. Obama é o demônio! Lula é o demônio! Fernando Henrique é o demônio! Os EUA são o demônio! O Islã é o demônio! A Europa é o demônio! Os católicos são o demônio! Os ateus são o demônio! Os protestantes idem! Madonna é o demônio! Canto gregoriano é o demônio! Umbanda é o demônio! O mercado é o demônio! O Estado é o demônio! Sua sogra é o demônio! O demônio é o demônio!

Obrigado, e…

Espere! O demônio está no álcool! O demônio está no chocolate! O demônio está na gasolina! O demônio está no sexo! O demônio está nas guitarras elétricas! O demônio está no transporte público! O demônio está na pequena propriedade! O demônio está em Marx! O demônio está na ciência! O demônio está na pobreza! O demônio está na imprensa! Nas taxas de juros! Nos telefones celulares!

Boa noite, vamos ter de encerrar…

Você é o demônio! Eu sou o demônio! Nós somos! Eles são! Quando você escova os dentes, é demoníaco! Quando se masturba, é demoníaco! Quando amarra o cadarço, demoníaco! Quando passa perfume, demoníaco…

*

Antes que ele terminasse de elencar todos os lugares em que devemos crer piamente (com trocadilho, por favor) que está o demônio, a bateria do gravador acabou. Ele pigarreou, terminou seu Bloody Mary, explicou que a conta já estava paga e desapareceu.

Padrão
barbárie, Brasil, crônica, crime, descoberta, economia, escândalo, imprensa, ironia, jornalismo, Nassif, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, reportagem, São Paulo

De Dantas e Nahas, sobretudo Nahas

peça publicitaria da carta capital
Em primeiro lugar, créditos a quem merece. A revista Carta Capital publicou (pelo menos na internet) um resumo de suas principais matérias em que, pelos últimos cinco ou seis anos, manteve uma campanha acirrada e declarada contra Daniel Dantas, esse aí de que tanto se fala. Luís Nassif, em seu blog, indicou o caminho para o texto da revista, não sem antes deixar seus parabéns. Mais que um resumo, trata-se de um tapa com luva de pelica na concorrência, que subiu atrasada no bonde (talvez por querer) e corre atrás do prejuízo.

Enquanto lia o auto-elogio da revista, me lembrei imediatamente de uma das peças publicitárias mais felizes que já vi no Brasil (essa aí que encima o texto). Foi em 2004 ou 2005, não me lembro. Não exagero em dizer que tremi de emoção com a imagem das capas das quatro revistas semanais brasileiras, lado a lado. Três delas em flagrante “babação de ovo” (com o perdão da expressão) do nosso bardo imortal, Paulo Coelho. Uma única tratava de um assunto verdadeiramente digno de uma publicação séria: a Carta Capital, com Dantas em destaque pela enésima vez. Acima, a inscrição corrosiva: “Nada contra os coelhos, mas alguém tem que vigiar as raposas”.

Quem há de discordar que é fantástico? Os publicitários que criaram a peça, talvez sem querer, estocaram uma peixeira incandescente direto no fígado da maneira como o jornalismo tem sido feito no Brasil, pelo menos desde meados dos anos 90 (antes disso, não posso dizer, eu era muito garoto). Quantas vezes a Veja não estampou em sua capa as últimas novidades da cirurgia plástica ou coisa que o valha? Nos jornais diários, quantas capas com Michael Jackson perseguido por repórteres, manchetes inócuas, porcentagens sem sentido? No rádio, o tempo que se perde entrevistando técnicos e jogadores de futebol, com seu vocabulário espartano! Nada contra, como diz a propaganda, mas que não reclamem se os leitores andam sumidos.

Tenho imaginado como anda o clima na redação da Carta Capital. Figuro repórteres e editores que não conseguem dormir, viram uma caneca de café atrás da outra, passam dias e noites pendurados em telefones, os editores na redação, os repórteres na rua, agora que as ações de sua galinha dos ovos de ouro foram tão valorizadas. Da noite para o dia, todos querem comprar (a começar pela concorrência), pois descobriu-se que Dantas fazia das suas. O material e a experiência que Carta Capital acumulou sobre o assunto devem ser objeto da cobiça dos demais e não duvido que outras empresas assediem os jornalistas da casa. Chegou o dia deles, como chegou o dia de Samuel Wainer quando Getúlio morreu, mal comparando.

Como se vê, Carta Capital deu furo em todas as concorrentes. Talvez tenha furado até demais: fala há tanto tempo e tanto em Daniel Dantas, que o povo até desconfia. Antes de sair do Brasil, confesso que não entendia por que os ataques tão reiterados a uma única pessoa. Afinal, não seria ele, certamente, o único escroque do país, ainda mais que o país em questão é o Brasil. Face ao banqueiro baiano a cada semana na capa da revista, as orelhas alongadas digitalmente, eu não sabia de quem deveria ter mais medo, se do acusado ou do acusador. Pois bem, Carta Capital apostou firme em sua linha e acertou. Victori patatae, já dizia Quincas Borba.

Em segundo lugar, e volto a citar lembranças: certa vez, quando eu terminava o colegial, visitei uma corretora de valores do centro de São Paulo, para descobrir se eu realmente queria ser economista (não descobri foi coisa nenhuma). Um sujeito destacado para receber meu grupo, com toda probabilidade um estagiário infeliz, nos mostrou a certa altura um gráfico com a evolução histórica do índice Bovespa.

Logo notei que havia um salto enorme em finais dos anos 80. Perguntei ao (suposto) estagiário por que o mercado de capitais brasileiro tinha se desenvolvido tão de repente, como podíamos ter enriquecido tão rápido em meio a uma recessão tão forte. Ele me respondeu que não era nada disso. O salto exprimia um episódio em que “o Nahas quebrou a bolsa do Rio” e os negócios foram transferidos para São Paulo, quase todos. Nem preciso dizer que fiquei pasmo. Então uma pessoa, sozinha, era capaz de causar um estrago tão grande no sistema financeiro? (O fechamento definitivo da bolsa do Rio, a mais antiga da América Latina, mal demorou uma década.) Na opinião de nosso cicerone, sim. Se essa pessoa fosse Naji Nahas.

O investidor libanês, com isso, tornou-se uma lenda para mim. Acusado de operar com laranjas e outras fraudes no episódio da quebra da Bolsa, fui saber que, em 2004, ele acabou inocentado. Grandes economistas depuseram a seu favor, como o falecido Mário Henrique Simonsen, e o investidor ainda saiu da pendenga prometendo entrar com um processo contra a CVM e contra Eduardo Rocha de Azevedo. Esse último, ex-presidente da Bovespa e da BM&F, seria, no dizer de Nahas, o mentor de uma conspiração para acabar com ele e, principalmente, para concentrar o mercado financeiro na terra da garoa.

Culpado ou não, nunca mais eu tinha ouvido falar em Naji Nahas, o mago das finanças e dos investimentos. Esse nome só me foi reaparecer agora, quando a Polícia Federal colocou novamente as mãos sobre ele, através da operação Satiagraha (falando nisso, onde entra Gandhi nessa história?). Para a polícia, Dantas e Nahas formaram uma quadrilha para manipular as relações entre grandes conglomerados, ex-estatais, fundos de pensão e o próprio governo. Ou seja, gente de calibre grosso, muito grosso.

E, no entanto, quase não se fala em Naji Nahas. O homem foi esquecido. A bolsa do Rio não existe mais, o processo foi encerrado, os holofotes estão todos em cima de Daniel Dantas. Acusa-se o baiano de subornar juízes e jornalistas, atacar a reputação dos que se revelavam insubornáveis, grampear inimigos, molhar a mão de políticos, por aí vai. A reboque dos sucessivos furos que levaram de Carta Capital durante anos, os demais veículos da imprensa brasileira cercam Daniel Dantas como se ele fosse uma espécie de Alexandre Nardoni das finanças.

Mas, diz o delegado Protógenes, Dantas e Nahas são os cabeças de uma quadrilha. E o libanês está no jogo há muito mais tempo do que o homônimo do ator. Também diz o delegado que Dantas não poupava esforços para influenciar resultados de julgamentos e até evitá-los, esse Dantas que teria formado uma quadrilha com Naji Nahas, o investidor mais velho que, ora-vejam-só, já teve complicações sérias com a Justiça e saiu livre. Mesmo assim, por algum motivo ou sem motivo algum, quase não se ouve falar de Nahas nas matérias sobre a operação Satiagraha.

Sem mais rodeios: a imprensa se beneficiaria, talvez, de sair da poltrona, abdicar de redescobrir o que Carta Capital já publicou, juntar os cacos e sair para investigar. O que mais existe de saboroso nessa história toda? Isso certamente renderia bem.

Padrão
abril, arte, barbárie, Brasil, cinema, crônica, crime, desespero, escândalo, férias, frança, francês, futebol, história, imprensa, ironia, jornalismo, modernidade, Nassif, obrigações, opinião, paris, parque, passado, passeio, pena, Politica, português, praça, primavera, prosa, reflexão, reportagem, roubo, saudade, tempo, trabalho, tristeza, Veja

Cinema, censura e a tranqüilidade que era mentira

Cartaz de homem velho pichado no metrô de Paris
Passadas as semanas loucas de maio, a vida que se prometia tranqüila revela a verdadeira face na forma de pilhas de afazeres acumulados. Diante dos prazos que vão se encurtando, morrem abraçados o descanso idealizado e o desejo de dedicar-se a leituras e escritas pessoais. O maior prejudicado é o blog, claro, ninguém duvide. Ele é empurrado para o fundo da lista de prioridades, ao passo que o futebol, essa maldita cachaça, não aceita ser removido da primeira posição.

Não é que faltem assuntos. Uma centena de coisas aconteceram desde o último artigo: eventos, impressões, opiniões, que estou louco para compartilhar com quem, digitando qualquer coisa no Google ou no Yahoo!, acabe caindo por aqui. Duro é escolher e ordenar todos os filmes do Festival de Cinema Brasileiro de Paris, em particular os documentários; as matérias lidas nos jornais franceses, como sempre um prato cheio para quem gosta de divagar sobre notícias alheias; as novidades, sempre tendendo para o absurdo, que chegam sem parar do Brasil.

Um exemplo é o caso envolvendo o Gabeira, o Pedro Dória, e a famigerada lei brasileira. Observe que eu disse lei, e não Justiça, que é coisa bem diferente. Quando soube que o velho guerrilheiro foi admoestado pelos tribunais por causa do apoio recebido do jornalista (espontaneamente), fiquei pensando nas armas disponíveis aos internautas para lutar contra a censura. Lembrei da vez em que tentaram colocar o dossiê do Luiz Nassif como primeira referência para quem digitasse “Veja” no Google. Mas não vi como isso poderia ajudar no combate à censura. Pensei num levante de blogueiros adotando o banner de Gabeira, mas isso só daria mais munição aos tribunais para apertar a corda no pescoço do candidato. E mesmo quem está fora do Brasil não escapa ao constrangimento, afinal, quem leva as bordoadas vive na Cidade Maravilhosa. A localização dos blogs pouco importa. Ao que parece, só resta mesmo reclamar, como de hábito.

O que não chega a ser um desastre. Pelo menos, o episódio serve de gancho para trazer à baila alguns dos documentários brasileiros que vi na última semana e que pretendo comentar nos próximos artigos. Não poucos têm como tema, ainda que indiretamente, a nossa última ditadura escancarada. É o caso de Operação Condor, Hércules 56 e Wilson Simonal, ninguém sabe o duro que dei. Do ponto de vista puramente cinematográfico, são todos excelentes. De um prisma histórico, são fundamentais. Considerado o momento revisionista e mesquinho por que passa a opinião pública brasileira, vieram em boa hora. Quem tiver alguma simpatia pelo que o Brasil viveu na geração de nossos pais (quer dizer, dos meus pais), que vá vê-los com urgência!

De volta à questão da censura: com voto ou sem voto, nosso Brasil tem muita dificuldade em lidar com a idéia de democracia. É triste, mas não tão vergonhoso como pode parecer. Democracia não cai do céu, é um aprendizado difícil. Os alemães, por exemplo, civilizadíssimos que são (e são mesmo), tiveram que colocar em risco a própria existência como nação para incorporar finalmente os valores democratas. Os franceses, quase isso. Os russos não aprenderam até hoje. E por aí vai. Nós, que já tivemos duas ditaduras longas em menos de 120 anos de república, mesmo quando pudemos votar, jamais vivemos de fato em democracia. A opinião sempre foi cerceada, o voto obrigatório, a polícia violenta, a imprensa desonesta (nem toda, bem entendido). Que os tribunais queiram excluir a internet do debate político, cá entre nós, não é surpreendente no Brasil, onde livros ainda podem ser recolhidos por decisão judicial e jornalistas são multados por “ofensas” que podem vir, quem sabe, a pronunciar algum dia. É triste, sim, e muito. Só que também é uma excelente oportunidade para externar o desejo de liberdade de expressão, de democracia, de um desenvolvimento que vai muito além do econômico, mas contribui muito para ele.

Democracia exige prática. Pratiquemo-la.

PS 1: Isso não quer dizer que eu concorde com a análise radical que Pedro Dória faz da liberdade de expressão. Ele coloca uma questão interessantíssima, talvez sem querer, de fundo filosófico, ou seja, a tratar no Cálculo Renal muito mais do que aqui: como definir as fronteiras da expressão? Para Dória, toda propaganda é expressão e deve ser radicalmente livre, o que incluiria publicidade de cigarros e bebidas na hora do almoço. Eis aí uma idéia que incita à análise. Nem sempre a publicidade é expressão e nem sempre a expressão é opinião. Bom, esse é mais um assunto para a pilha acumulada!

PS 2: Temo que, nas próximas semanas, este espaço se transforme num blog sobre cinema. Não de crítica cinematográfica, que não sou crítico. Mas de reflexões que se apóiam em filmes. Culpa da overdose de tela grande deste maio sobrecarregado. Depois, prometo que volto ao normal.

Padrão
direita, eleições, esquerda, frança, francês, história, imprensa, ironia, opinião, paris, Politica, reflexão, sarkozy

A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

Padrão
arte, Brasil, direita, esquerda, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Informação e ânimos exaltados

Todos+os+homens+do+presidente+capa
Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outros, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas crônicas da Folha, enviadas sempre com atraso, terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox News é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja autobiografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem “mentiras”. Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade.

E, pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: “Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!” Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de “denúncia”. Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso “fontes ligadas ao palácio afirmam que…”, os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama “jornalismo”. Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

Padrão