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Charlie: nous suivons?

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  1. Troisième arrondissement

Posso estar dizendo isso com motivações pessoais, mas sinto que esse ataque ao Charlie Hebdo tem algo além dos outros ataques, atentados e massacres que temos acompanhado neste século. Intuo nele, ainda que intuições sejam coisa pouco confiável, o germe de uma reação em cadeia, uma bola de neve capaz de carregar coisas que nos são muito caras, ou pelo menos são muito caras para mim.

Talvez essa sensação me venha do formato algo diferente deste atentado em particular, em que os homens-bomba são substituídos por encapuzados com AK-47 – a ausência do suicídio pode ter um significado a mais? –; talvez da reação mundial tão mais expressiva, com a criação do meme bastante ambíguo “Je suis Charlie”; talvez da forma como os assim chamados líderes mundiais tentam se apropriar da situação, como naquela infame foto forjada da manifestação; talvez dos outros confrontos que se seguiram, no mercado kasher, nos ataques a mesquitas, na Bélgica. E assim por diante. Seja qual for o motivo, mais do que chocado com o ataque em si, ando apreensivo com a tormenta que se prepara. Continuar lendo

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No tempo em que a polícia batia

Em tese, um certo sumiço na virada do ano é coisa normal, mas acho que passei do ponto. Não foi por querer que fiquei desconectado durante as últimas semanas, e nesse meio-tempo houve muito assunto para deixar uma palavra por aqui, e não pude fazê-lo. Pouco a pouco, espero retomar o ritmo normal de postagens. O primeiro tema que ficou em suspenso é a continuação do texto sobre Der Baader Meinhof Komplex. E, como demorei tanto, acho que terei de aproveitar para desdobrar o assunto em três. Primeiro, este neste texto, sobre a polícia e os cascudos que só ela sabe dar. Depois, mais dois, não sei ainda em que ordem, mas um falará das músicas que são tocadas no filme e o fenômeno da Indústria Cultural, primeiramente evocado por filósofos, que coincidência, alemães. O outro aproveitará, se é que esse verbo é apropriado num momento como este, o gancho da ofensiva israelense contra o perigosíssimo território de Gaza atrás dos terroristas do Hamas… enfim, o conceito de terrorista é qualquer coisa que precisa de fato ser pensado mais profundamente.

E para ressuscitar este espaço, nada melhor do que um texto que, apesar de indiretamente, recupera alguns pontos que deixei passar em 2008. São efemérides como os quarenta anos de todas as coisas grandiosas que aconteceram em 68 (maio de Sorbonne e Nanterre, agosto de Praga, dezembro de Cinelândia e Brasília), e bem que gostaria de encaixar aqui a morte de Harold Pinter, que eu deveria ter comentado e não comentei, e os centenários de Claude Lévi-Strauss e Manoel de Oliveira… mas não vai ser possível.

Fico, então, com as brigas de quarenta (e um) anos atrás para começar meu assunto. Nem preciso dizer, essa série de eventos interligados são uma das raízes do grupo revolucionário e, mais tarde, terrorista alemão. De fato, Der Baader Meinhof Komplex mostra bem como surgiu o bando: no dia 2 de junho de 1967, durante uma manifestação até então pacífica contra o xá Reza Pahlavi, em visita a Berlim, um policial à paisana atirou pelas costas, ou seja, executou o estudante de literatura Benno Ohnesorg, de 26 anos, pai de uma criança, que morreu no mesmo instante.

Estudantes mortos

Mas Ohnesorg provavelmente não foi o primeiro e certamente não foi o único estudante morto nesse tempo que ficaria conhecido como início dos “anos de chumbo”. No Brasil, tivemos Edson Luís de Lima Souto, de 16 anos, cujo assassinato por um policial acabou resultando na célebre Passeata dos Cem Mil de 26 de junho de 1968. Em 2 de outubro, a famosa guerra da Maria Antônia, entre estudantes da USP e do Mackenzie (esses últimos reforçados por jovens encorpados que eram tudo, menos estudantes) também deixou sua vítima, de nome José Guimarães, secundarista e pintor de 20 anos. As famosas prisões de Ibiúna, a propósito, aconteceram dez dias mais tarde.

No mesmo 2 de outubro, uma manifestação estudantil na Plaza de las Tres Culturas, Cidade do México, foi reprimida pelas forças unidas da polícia e do exército com saraivadas repetidas de balas que deixaram um número indeterminado de mortos. A estimativa mais razoável diz que pereceram 400 pessoas, contando não apenas os manifestantes, mas também as pessoas que apenas passavam pelo local. Aliás, o pequeno incidente não chegou a perturbar o funcionamento das Olimpíadas na cidade, poucas semanas depois. Em fevereiro, dois meses antes do assassinato de Martin Luther King e quatro meses antes do de Robert Kennedy, durante uma manifestação na Carolina do Sul pelos direitos civis, três estudantes foram baleados e mortos por, exatamente, policiais. E por aí vai.

Estudantes e policiais se enfrentaram ao redor do mundo, com ou sem mortes, pelos anos seguintes. Nada, claro, como o 68 que, até hoje, ainda faz muitos olhos brilharem, com a Primavera de Praga, a ocupação das universidades em Roma, as palavras de ordem dos jovens de Nanterre e da Sorbonne, criativos como nem os mais prestigiosos publicitários chegam a ser: “Sous le pavé, la plage” (debaixo das pedras, a praia, numa tradução péssima), “soyez réalistes, demandez l’impossible” (sejam realistas, exijam o impossível), “exagérer, c’est commencer à inventer” (exagerar é começar a inventar). Essa garotada, tão boa com as palavras, cheia de idéias e ideais, encheu Paris de barricadas e respondeu ao gás lacrimogêneo com os paralelepípedos que arrancava do chão. Apanharam, apanharam feio. Tudo acabou voltando ao normal. A prefeitura, prudente, cobriu suas ruas de asfalto. Mas os suspiros dos saudosos ainda ecoam.

Tudo isso para mostrar que foi qualquer coisa, menos um caso isolado, a morte de Benno Ohnesorg, o jovem alemão de sobrenome tão sugestivo. Que foram tempos duros, não se pode negar, mesmo que as causas ainda sejam motivo de disputa. Resta que a violência era disseminada através de um mundo povoado por governos que, dos dois lados da Cortina de Ferro, temiam revoluções; jovens perplexos com a cultura de massas que já dava os primeiros sinais do que seria o sistema de ensino industrial e rasteiro de hoje; trabalhadores que, por um lado, eram seduzidos pela mensagem soviética e, por outro, tinham um poder de reivindicação e de compra sem par; grupos minoritários começando a exigir reconhecimento e direitos, na esteira do sentimento de culpa mundial com o antissemitismo (agora tem que ser assim? Com o s dobrado em vez de hífen?) que conduziu ao Holocausto.

O que parece…

Trocando em miúdos, parece que essa era uma época em que um volume significativo de pessoas estava disposta a brigar, bater e apanhar, fosse por uma causa, pelo reconhecimento de seus direitos, por uma melhor remuneração do trabalho, pela liberdade de expressão, enfim, fosse pelo que fosse. Parece, também, que do outro lado havia uma força de segurança disposta a baixar o sarrafo, em bom português, e jamais recuar. Parece que o Poder, do fundo dos palácios, temia com tanta força ser desalojado que não se importava de soltar a cavalaria e a tropa de choque contra sua própria população. Parece que o direito de se expressar livremente não era considerado com muita seriedade, nem de um lado, nem de outro do Muro de Berlim. Parece que a idéia por trás da polícia, naqueles tempos, não era tanto a de coibir a criminalidade, mas apenas manter as gentes sob controle, como se vê, por exemplo, na caricatura francesa em que um policial do CRS (o batalhão de choque) carrega no escudo a insígnia das SS nazistas.

Por outro ponto de vista, parece que o mundo aprendeu algo desde então. Parece que nos tornamos mais livres e mais conscientes. Parece que a ilusão comunista caiu com a União Soviética e o mundo quase todo obteve o direito sagrado de pensar e desejar as mesmas coisas, sempre. Parece que a polícia não exerce mais aquela função de pôr na linha as pessoas que parecem discordar. E ainda, mesmo que continue violenta e opressiva, parece que as forças policiais estão concentradas em lutar contra o crime ou o que, para a opinião pública, parece crime. Parece que os policiais não são mais assustadores como eram naquele tempo em que, não raro, se comportavam como os fascistas da geração anterior. Parece que as pessoas não têm mais contra o que protestar, resolvidas que estão as contradições do mundo, no grande abraço sensual do consumo e da competição. Parece que a única ameaça para nossa tranqüilidade vem de fanáticos barbudos.

… mas não é.

Acontece que encontrei em algum canto da internet as imagens acima (vi algumas maravilhosas numa exposição do fotógrafo turco Göksin Sipahioglu, mas elas não estão em domínio público). Os distintos homens de gravata que aparecem aí são os temidos CRS que enfrentaram a fúria estudantil da Sorbonne em maio de 68. Lançaram bombas de gás lacrimogêneo, deram bordoadas em rapazes e moças, sendo que no começo nem sabiam ao certo o que estava acontecendo (um policial chega a relatar que a viatura recebia ordens contraditórias no caminho para as barricadas). Foram ironizados pelos slogans dos estudantes e acabaram caricaturados como soldados das SS nazistas, mas deram conta do recado. Nenhuma Bastilha caiu naquela primavera.

Esses sujeitos de olhar fuzilante e ameaçador eram os agentes da opressão nos violentos tempos de nossos pais, em que o equilíbrio do mundo ameaçava ruir por um sopro e a qualquer momento um líder mundial poderia decretar a aniquilação do planeta, como vemos em filmes como Dr. Fantástico (odeio essa tradução). E já que estamos nesse pé, eu me pergunto que aparência têm os agentes da ordem nesses nossos tempos sem “ameaça comunista”, em que os estudantes temem demais o desemprego para pensar em protestos, em que não há mais grupos armados de esquerda ou agentes soviéticos infiltrados. Pois bem, ei-los, os mesmos CRS, quarenta anos mais tarde:

Foram-se as gravatas, os paletós bem cortados, os elmos projetados por alguma estilista, os cassetetes de meio metro. No lugar, o que vemos são máscaras de gás, capacetes grossos, caneleiras acolchoadas, cassetetes com tasers, uniformes ultra-cibernéticos que, se me disserem que ricocheteiam balas, não vou duvidar. Os rapazes da fotografia, que, pensando bem, não deixam um centímetro de pele à mostra e bem poderiam ser andróides – com o perdão da analogia fantasiosa -, não foram enviados para alguma guerra distante, como salvadores do mundo ou dos valores democráticos ocidentais (ideais republicanos, diriam os franceses).

Todas essas imagens foram feitas em Paris, algumas durante manifestações de jovens do subúrbio contra o recentemente eleito Nicolas Sarkozy; outras durante as greves estudantis de 2005 contra uma reforma do sistema universitário que parecia projetada por Bush; e uma única por ocasião de um mui irônico evento em que os CRS foram chamados para dar uma coça nos bombeiros em greve: não parece uma guerra de ciborgues?

Bem se vê por essas imagens que, não, a polícia não está menos disposta a dar bordoadas do que há quarenta anos. Não, não estamos mais razoáveis. Não, o mundo não se tornou mais seguro. Não, o poder não se sente mais garantido. Não, não era apenas como resposta e prevenção ao perigo soviético que a polícia (e as forças armadas, por sinal) estavam de sobreaviso para dar cascudos. Não, as contradições não estão resolvidas. Não, ainda falta muito para que as pessoas deixem de ter contra o que protestar.

Revejo a caricatura dos CRS retratados como agentes das SS e sou tomado por sentimentos contraditórios. Por um lado, o respeito que sempre se deve à História, cujos fatos merecem ser apreendidos em sua própria dimensão, sem o olhar condescendente, mas distorcido, do futuro. Por outro, a impressão de que os batalhões de choque deste início de século são infinitamente mais parecidos com a SS em termos de violência do que os engravatados de quarenta anos atrás.

Por algum motivo, e essa questão é certamente mais importante do que pode parecer, a polícia sabe ser um instrumento de dissuasão até melhor do que naquele tempo. Tem mais poder de fogo, mais proteção e, a julgar pelas imagens em que três ou quatro policiais são necessários para segurar um manifestante, tem também mais efetivo. A princípio, isso parece estranho, considerando que o inimigo, ao que sabemos, abandonou o certame. Estamos carecas de saber que as atenções de quem tem por função “manter a ordem pública” estão há muito voltadas para outra direção, não mais os jovens rebeldes do Quartier Latin, mas os filhos de imigrantes do subúrbio. Já os estudantes, que outrora corriam o risco de se deixar abater em batalhas urbanas, não têm mais a mesma disposição para a briga. Certo dia, topei com alguns que tentaram bloquear a entrada de sua faculdade, ao norte de Paris: bastou a polícia chegar para que eles mesmos desfizessem a barreira. Se algum desses garotos for filho de alguém de 68, é certamente a vergonha da família.

A pergunta passa a ser, portanto: se a polícia não mudou de postura e até a intensificou, o que aconteceu do lado dos estudantes para que eles não se disponham a arriscar o pescoço em barricadas? Por que as tensões não chegam mais às vias de fato, ou antes chegam tão raramente, como foi neste ano na Grécia, cujos estudantes revoltados mereceram os aplausos e muitas pichações de apoio nos muros da França, feitas por estudantes que gostariam muito, mas não têm a mesma força de vontade?

Não tenho resposta para nenhuma dessas perguntas, mas o mero gesto de formulá-las talvez já ajude a esclarecer que há algo de muito profundo que diferencia os jovens de hoje dos de quarenta anos atrás. Eu gostaria de saber, por exemplo, o que fez com que uns fossem de um jeito e outros, de outro. Acho que a resposta passa pela noção de indústria cultural, mas isso, como já mencionei acima, é questão para outro texto.

Para uma lista de slogans de 1968, clique aqui.

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O relato e a realidade

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Duas semanas atrás, quando escrevi sobre a Primeira Guerra, pelo menos três pessoas mencionaram o mesmo livro: Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque. Um dos poucos volumes que eu trouxe quando vim para a França, mas que aguardava com a maior paciência na estante, ainda sufocado no plástico, com etiqueta, preço e tudo. Jamais esperneou, talvez antevendo que o projeto de recuperar meu pobre alemão não iria muito longe, e a tradução brasileira não seria preterida em definitivo pelo original. De fato, sua espera foi recompensada: depois das vivas recomendações na caixa de comentários, o livro está sendo devorado, enquanto a versão alemã segue descansando numa livraria qualquer.

Pois bem, devo dizer que esta pequena obra, considerado o maior romance pacifista do último século, está arruinando minha vida. Como explicar? Poderia ser o estilo, mas… Acontece que o ex-soldado Remarque relata sua vida nas trincheiras de uma forma tal, que dignifica o próprio conceito de relato, enquanto cobre de vergonha a idéia de estilo, por assim se dizer.

Ora, o estilo é próprio das narrativas, encaixe habilidoso de passagens e sentenças, com o fito de produzir uma obra literária. O relato, por outro lado, prescinde do estilo, na medida em que não narra, mas conta, nem quer produzir obra alguma, mas gravar na atenção do ouvinte – desculpe, do leitor – uma reprodução tão perfeita quanto possível dos fatos que ficaram gravados na carne de quem relata. É isso, no fundo, o fato. Pelo meno saquele que pode ser transmitido por um relato: uma impressão forte, indelével, gravada na carne, muito mais do que na memória.

Pois é o que me dá quando estou lendo esse livro. Os fatos relatados por Remarque ficam gravados na minha atenção como se marcados a faca, e é na carne que os sinto. Eu poderia dizer que é culpa do realismo… mas que tolice a minha! Realismo é um estilo e o relato passa ao largo dessas coisas. Remarque falando da guerra que viveu é mil vezes mais marcante que qualquer realismo, mesmo o hiperbólico de um Zola, por exemplo. E isso não é demérito algum para o mestre francês. O gênio que lhe cabe é o da narração; nesse campo, seu lugar no Panthéon está garantido.

Narrados, os fatos que Remarque despeja no papel desapareceriam, soterrados pelo estilo. Seria uma obra e, como toda obra, poderia ser amada, criticada, resenhada e assim por diante. Não é o caso. Nada de Novo no Front não se presta a resenhas e questões de Vestibular. Na realidade, só pode ser ouvido – desculpe, lido. Só é romance na medida em que o narrador [sic] se chama Paul (Bäumer) e o autor se chama Erich Maria. No mais, é o puro perpetuar daquilo que não deveria ter sido esquecido, mas foi: que as manobras e treinamentos militares, as querelas da geopolítica, as glórias nacionais, aniquilarão o humano com a facilidade de um primeiro disparo.

Justamente por ser tão simples, quase frio, o relato de Remarque tem colocado em risco meu respeito por nosso gênero e meu interesse por todas essas questões fuleiras que discutimos todo dia, nos jornais, nas universidades, nos escritórios, hélas!, na internet. Foi por isso que eu disse que ele estava arruinando minha vida. Desculpe soar como Adorno, mas como posso estudar, trabalhar, escrever; como posso me preocupar com as obras críticas de Baudelaire e coisas do gênero, depois de um trecho como os que seguem? Peço que você os leia, mesmo que não tenha estômago para “esse tipo de coisa”:

À minha frente, abriu-se uma cratera; vejo-a confusamente. É raro cair mais de uma granada no mesmo buraco, e, por isso, procuro entrar nele. De um salto, atiro-me para dentro, achatado como um peixe fora d’água. Novamente, um sibilar faz-se ouvir; encolho-me depressa; procuro abrigar-me. Sinto alguma coisa à minha esquerda, aperto-me contra ela, a coisa cede. Gemo, a terra desfaz-se, apressão do ar troveja nos meus ouvidos, arrasto-me por baixo da massa que cede, puxo-a por cima de mim, é madeira e pano, um abrigo, um miserável abrigo contra os estilhaços que caem à minha volta.

Abro os olhos. Meus dedos seguram uma manga, um braço. Um ferido? Grito-lhe, nenhuma resposta… é um morto. Minha mão esquadrinha mais longe e encontra lascas de madeira. Lembro-me então de que estamos no cemitério.

Mas o fogo é mais forte do que tudo. Destrói a consciência; arrasto-me mais profundamente sob o caixão, ele deve proteger-me mesmo que a própria Morte esteja deitada nele.

À minha frente, abre-se uma cratera. Abarco-a com os olhos como se fosse com as mãos, preciso entrar nela de um só salto. Sinto algo no rosto, uma mão que agarra meu ombro… será que o morto ressuscitou? A mão me sacode, viro a cabeça e, na luz tênue, reconheço Katczinsky: tem a boca aberta e berra. Não escuto nada, ele me sacode, aproxima-se e, num momento de menos barulho, sua voz me alcança:

– Gás… Gáas… Gáaas! Avise aos outros!…

(…)

Com um estrondo, qualquer coisa escura cai a pouca distância de nós; é um caixão que fora atirado para o alto.

Vejo Kat mover-se na direção do objeto e rastejo até lá. O caixão caiu em cima do braço estendido do quarto homem da nossa cratera. Com a outra mão, tenta arrancar a máscara contra gás. Kropp agarra-o nesse momento, torce seu braço firmemente e o mantém assim.

Kat e eu começamos a tentar liberar o braço ferido. A tampa do caixão está solta e quebrada; é fácil arrancá-la; o morto, nós o retiramos: ele cai no chão como um saco. Depois, soltamos a parte inferior do caixão.

(…)

O bombardeio acabou. Volto na direção da cratera e faço sinal para os outros, que saem arrancando, também, as máscaras. Pegamos o ferido; um de nós segura o braço entalado. E, assim, afastamo-nos depressa aos tropeções.

O cemitério é um campo de ruínas. Caixões e cadáveres estão espalhados por toda parte. É como se tivessem sido mortos novamente, mas cada um dos que foram feitos em pedaços salvou a vida de um de nós.

Reconhecemos os rostos contraídos, os capacetes lisos: são franceses. Quando alcançam os restos das redes de arame farpado, já tiveram sensíveis perdas. Uma fileira completa foi abatida por nossas metralhadoras; depois, temos várias dificuldades com os tiros, e eles conseguem aproximar-se.

Vejo um que cai de pé num cavalo de frisa, o rosto voltado para cima. O corpo abate-se sobre si mesmo, como um saco, as mãos ficam juntas, como se quisesse rezar. Então, o tronco destaca-se inteiramente; apenas as mãos, decepadas pelos tiros da metralhadora, ficam penduradas, com uns farrapos de braços, no arame farpado.

(…)
Tornamo-nos animais selvagens. Não combatemos, defendemo-nos da destruição. Sabemos que não lançamos as granadas contra homens, mas contra a Morte, que nos persegue, com as mãos e capacetes. Pela primeira vez em três dias, conseguimos vê-la cara a cara; pela primeira vez em três dias, podemos nos defender contra ela. Uma raiva louca nos anima, não esperamos mais indefesos, impotentes, no cadafalso, mas podemos destruir e matar, para nos salvarmos… e para nos vingarmos. Escondemo-nos, abaixados atrás de cada canto, por trás de cada defesa de arame farpado, e, antes de corrermos, atiramos montes de granadas aos pés dos inimigos que avançam. O estampido das granadas de mão repercute poderosamente nos nossos braços e pernas. Corremos agachados como gatos, submersos por esta onda que nos arrasta, que nos torna cruéis, bandidos, assassinos, até demônios; esta onda que aumenta nossa força pelo medo, pela fúria e pela avidez de vida, que procura lutar apenas pela nossa salvação. Se seu próprio pai viesse com os do outro lado, você não hesitaria em atirar-lhe uma granada em pleno peito.

Quem há de dizer que esses trechos são escatológicos, se eles traduzem uma realidade pura, inquestionável? Quem há de argumentar que são apelativos, se o apelo que esses homens fariam seria, antes de qualquer coisa, para voltar ao convívio de suas famílias?

Esse relato atira por terra um dos ditos mais questionáveis que existem, aquele segundo o qual uma imagem vale por mil palavras. Pois sim… Afirmo que uma imagem é ela mesma e nada mais. Um punhado de palavras, curto que seja, ao contrário, multiplica ao infinito a possibilidade imagética do receptor. E tanto, que qualquer tentativa de reduzi-las a uma só imagem é obrigada, a fortiori, a mutilar profundamente o sentido e o poder da comunicação. A imagem é frustrante, auto-referente e muito pobre, se comparada à palavra – e olha que sou apaixonado por cinema.

Por sinal, a sétima arte e seus derivados, na tentativa desesperada de envolver e enredar seu espectador, tem se tornado cada vez mais explícita, mais frenética, mais barulhenta, mais ofuscante. Mas, mesmo se desorienta o senso de realidade do público, não adianta. O fato é que as imagens sangrentas, de gosto duvidoso, do cinema de hoje podem me causar desconforto, até medo, e me dar vontade de desviar os olhos ou mudar de canal.

Bah… Lendo o relato de Remarque, minha única preocupação é sair logo dessa maldita batalha, dessa trincheira infecta, dessa loucura interminável que não conhece artifício. Nada de Novo no Front é um dos únicos livros que jamais me fizeram estremecer, quero dizer, literalmente, fisicamente, como se as balas zunissem em volta dos meus ouvidos e eu fosse um garoto desamparado com um rifle na mão. Coisa assim nunca me aconteceu com filme algum.

Paro por aqui, embora muito ainda pudesse ser dito. Por exemplo, sobre como o livro deveria ser obrigatório nas escolas, tão obrigatório que as questões perguntassem por detalhes insignificantes, para garantir que cada um dos estudantes o leu e releu de cabo a rabo. Ou então, sobre como ele me ajudou a entender um pouco melhor por que os Partidos Comunistas foram tão fortes na Europa do pós-guerra – e, tudo bem, vai aí mais um trecho que não deixa dúvidas quanto ao que quero dizer:

Quando volto do quartel, uma voz forte me chama. Ainda perdido nos meus pensamentos, viro-me e me vejo diante de um major. Dirige-se a mim com rispidez:

– Não sabe bater continência?

– Queira desculpar, major – digo, confuso. – Não o tinha visto.

Grita mais alto ainda:

– Também não sabe falar como deve?

Gostaria de dar-lhe uma bofetada, mas controlo-me, pois, do contrário, lá se vai minha licença; eu me aprumo, na posição de sentido, bato os calcanhares, e digo:

– Não o vi, meu major.

– Então, faça o favor de prestar mais atenção – vocifera. – Como se chama?

Dou o meu nome.

Seu rosto vermelho, gordo, ainda mostra indignação.

– Qual é o regimento?

Respondo de acordo com o regulamento. Ainda não é o suficiente para ele.

– Onde se encontra a sua Companhia?

Mas, agora, não agüento mais e digo:

Entre Langemark e Bikschote.

– O quê? – pergunta perplexo.

Explico-lhe que cheguei há uma hora, de licença, e suponho que então ele vá me deixar em paz.

Mas eu me engano. Fica ainda mais furioso:

– Certamente acha que pode trazer para cá os maus costumes do front, não é? Pois está redondamente enganado. Graças a Deus, aqui domina a ordem! Vinte passos à retaguarda, marche – comanda.

Dentro de mim, ferve uma raiva surda.

Mas nada posso fazer, mandar-me-ia prender imediatamente, se quisesse. Então, recuo, avanço, e, seis metros à sua frente, contraio-me numa continência garbosa, que só relaxo quando me encontro a seis metros de distância.

Ele me chama novamente e, com benevolência, me explica que mais uma vez está colocando a piedade acima do regulamento. Mostro-me devidamente agradecido.

– Pode retirar-se – comanda.

Dou meia-volta e vou embora.

Foi o suficiente para estragar-me a noite. Apresso-me a ir para casa e jogo a farda a um canto; aliás, era o que já deveria ter feito.

Mas fica um último comentário sobre o título. No original, é Im Westen nichts neues, ou seja, Nada de Novo no Front Ocidental.Essas famosas trincheiras da Primeira Guerra ficavam justamente na França, “conhecida” pelo Estado-Maior prussiano como “frente ocidental”. Imagino que o tradutor brasileiro tenha riscado de nossa versão a menção a de qual frente se está falando porque não se pressupõe que o leitor brasileiro saiba que a Alemanha lutou a guerra em duas frentes, a Rússia contando como frente oriental. A propósito, como será o nome do livro em Portugal, onde os leitores têm, provavelmente, um conhecimento maior da situação alemã nessa guerra?

PS: Minha edição é da L&PM Pocket, Porto Alegre, 2004. Tradução de Helen Rumjaneck.

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A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

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O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

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Língua, etnia, origem, cor

Acho que ainda encarava com inocência as armadilhas da língua, quando reagi com naturalidade: “Você não vai ter problemas para renovar o visto”, disse o rapaz do guichê, em tom da mais natural constatação, “porque, bom, você é ocidental”. E eu assenti com a cabeça, querendo indicar que entendia o que ele queria dizer, mesmo que não concordasse. Só têm problemas com a polícia e o visto, traduzi mentalmente, as pessoas que vêm de países islâmicos, interpretados logo de cara como terroristas em potência. Aqueles que, por aqui, são chamados de “orientais” (esse termo designa os oriundos do Islã, grosso modo. Nossos “orientais”, aqui, são “asiáticos”.) Brasileiro pode ficar tranqüilo nesse ponto. Povo bacana, pacífico, alegre, fonte inesgotável de sorrisos, mulheres, dribles e gols. E, na minha cabeça, também ocidental, a julgar pelo que eu tinha entendido da afirmação do rapaz do guichê.

Mas, que o quê, eu não tinha entendido era nada. Primeiro, fui entender que o conceito de Ocidente passa longe, muito longe do Brasil. Quando ouvir um europeu se referir ao “Ocidente”, esteja certo de que os países em questão são os da Europa, ora, ocidental, a que se somam os Estados Unidos e o Canadá; em certas circunstâncias, até um australiano pode receber o título, embora seu país esteja cravado no outro hemisfério. Em outras palavras, aquela velha idéia de dividir o mundo em dois hemisférios é conversa fiada. O mundo, para o europeu, é segmentado numa meia-dúzia de compartimentos: Ocidente, Oriente, África, Ásia, russos e quetais. O brasileiro, nesse esquema, tem de se contentar com o carimbo de latino-americano. Mas é importante frisar que esta não é uma identificação cultural ou geográfica. Para o europeu, ela resulta da mais autêntica ontologia.

Agora, se é assim, como se explica o fato de que, para o digníssimo sujeito do outro lado do guichê, eu seja um ocidental, se ele sabia perfeitamente que sou brasileiro, “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes” (TM Belchior)? Tenho certeza de que pelo menos um de vocês dois que estão lendo o texto já tem a resposta na ponta da língua, mas vou enrolar um pouquinho mais.

Um último episódio (último nada, quem dera) veio confirmar minhas suspeitas. Um lauto jantar, bem à francesa, de gastronomia refinada e a nata do vinho nacional (piada velha). À mesa, um cândido rapaz, quase diáfano, contava sua traumática experiência de visitar uma periferia bem ao norte de Paris. Deve ter sido terrível caminhar por ruas desconhecidas e numeradas, em vez de nomeadas. Tantas janelas, tantas crianças, tantos olhares desconfiados. E o mais assustador, ele concluiu: “para qualquer lado que eu olhasse, não encontraria um único ocidental”.

Eis aquela palavra, mais uma vez. E agora entendemos o que ela quer dizer, na boca de um indivíduo civilizado e de mente aberta da Europa. “Ocidental”, afinal de contas, nada mais é do que um sinônimo para “branco”. O que me disse o funcionário público que comigo conversou no guichê, afinal de contas, foi que a polícia francesa não colocaria empecilhos à minha permanência em seu território porque sou branco. Tenho a pele, a cabeleira e o par de olhos ideais do Ocidente.

Ou seja, a língua não é nada inocente. Inocente era eu. A justaposição da classificação geográfica sobre a étnica (ou racial, para dar um tom mais agressivo ao contexto) alivia a carga pesada e negativa de sentir-se um discriminador. O europeu não quer mais ser racista. A lembrança de crimes como a “Solução Final” (que é como os nazistas chamavam o extermínio de judeus), a escravidão e a guerra da Argélia ainda é muito próxima no inconsciente coletivo. É preciso ser civilizado, pois esses são os ditos “valores ocidentais” – e eis que reaparece a fatídica palavra. Não se deve julgar e, na seqüência, rejeitar alguém pela etnia. Um indivíduo democrático, justo e civilizado da Europa não faz esse tipo de coisa. Certo?

Acontece que lutar contra as próprias inclinações impõe algumas dificuldades. Quando os netos de quem outrora oprimiu vêm viver em seu país e pedir para compartilhar de sua nacionalidade; pior, quando já nascem no solo da antiga metrópole, do antigo império, e têm direito imediato a se considerar um cidadão; ou ainda, quando a pronúncia, a música e a indumentária se alteram radicalmente em plena capital do país, haja força de vontade para o ocidental não se sentir acuado, ameaçado e, falemos abertamente, ofendido. Para reerguer a barreira, mas sutilmente, sem recaída fascista, nada mais adequado que a terminologia bem escolhida.

Resultado, consegue-se estabelecer a fronteira entre o “nós”, que se refere aos que, a pele denuncia, descendem dos bárbaros que colonizaram esta terra, e o “eles”, todo mundo mais, com uma preferência acentuada pelos magrebinos e árabes em geral, além dos negros (desculpe, africanos). Só que, como toda estratégia, essa também tem seus furos, por onde esguicha com violência uma água corrosiva. Concebida para afastar os povos menos nobres do banquete da riqueza européia, corre o risco de funcionar bem demais. Seria como se, vamos supor, os serviçais desaparecessem da saturnal levando a comida, os talheres, a louça e a toalha da mesa.

Há coisa de duas semanas, a seleção da Tunísia veio jogar na França. Começou a tocar a Marselhesa e, suprema surpresa, supremo acinte, milhares de adolescentes começaram a assoviar e vaiar. Foi o caos. A imprensa se rasgou nos editoriais. O onipresente Sarkozy ameaçou: da próxima vez, não vai ter jogo. Os intelectuais, sempre atentos, aproveitaram para encher laudas e laudas de perguntas sobre o significado do evento. Nas escolas dos subúrbios, os professores foram instruídos a verificar com a garotada se eles se sentiam franceses. Muitos disseram que não. Preferem se identificar com o país dos pais, mesmo sem jamais terem posto o pé por lá.

Esse é o grande furo da estratégia lingüística de discriminar sem segregar. Há um mundo para além da língua, ao contrário do que pode crer uma parcela bastante significativa das correntes de pensamento do último século. Ao criar, no coração da região que escolheu chamar a si própria de Ocidente, uma legião de cidadãos que não são ocidentais, o ocidental que se considera herdeiro dessa cidadania corre o sério risco de berçar um contingente incontável de ocidentais que nem aspiram a ser cidadãos. E, como nós, brasileiros, sabemos muito bem, quem se vê privado em definitivo da cidadania sente que não tem obrigação nenhuma para com a sociedade.

PS: Eu pretendia continuar com uma comparação com o problema da discriminação social e racial no Brasil, porque, afinal de contas, meu país me interessa muito mais do que os dos outros. Mas ia ficar grande demais, então prefiro continuar em outro artigo, que deve chegar nos próximos dias. Se você tiver um bom coração, me diga que o aguarda com ansiedade. Nem que seja só para me agradar…

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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Panela de pressão apitando em desespero

Guerre
A Europa carrega nas costas o peso dos crimes da História; senão todos, pelo menos quase. Isto pode ser verificado em todas as catedrais e castelos, bulevares e cafés. A beleza das árvores no outono pode emocionar, mas sussurra constantemente no ouvido a memória do colonialismo, do fascismo e da Inquisição. O Louvre, além da Vênus e da Gioconda, ainda tem nas paredes, mesmo fenecidas, as manchas de sangue da noite de São Bartolomeu. O Duomo de Florença é no fundo um compêndio da ganância dos Medici, assim como a Praça de São Pedro reflete a história para lá de profana do papado. E o museu do Prado, para não esquecer a Península Ibérica, acima de todas as suas telas de Velásquez e El Greco tem penduradas as vítimas hereges e judaicas, como os espectros que rondam o Tiergarten de Berlim.

Mesmo os crimes cometidos na África, na América e na Ásia são reflexo da crueldade dos europeus, esses seres pálidos de terras frias e escuras, que venderam, geração após geração, suas almas em troca de ouro e glória. Os crimes dos americanos no México, no Caribe, na Coréia, no Vietnã, no Iraque, também ecoam, ainda hoje, a sede de sangue dos conquistadores europeus. É a ação do chamado Ocidente (um conceito obscuro capaz de incluir todos os habitantes de países ricos que não têm pele escura ou olho puxado).

Toda essa sanha destrutiva custou caro ao continente. Eles chegaram à beira do abismo mais de uma vez, a última delas há pouco mais de meio século. Perderam grande parte de sua riqueza, suas colônias, sua predominância internacional. Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Áustria, Portugal. Todos eles, países que chegaram a se considerar donos de um belo naco do mundo – ou de todo ele. Centros de cultura, comércio e poder. Todos submetidos ao jugo de sua ex-colônia norte-americana e, por algum tempo, a seu antigo patinho feio, a Rússia.

* * *

O que restou do banho de sangue foi um continente fascinante, pelo que tem de cruel e pelo que tem de admirável. Ao contrário do que disse o Otto Lara Resende (ou será que foi o Nelson Rodrigues, se fazendo passar pelo Otto? Isso acontecia…), não é uma burrice aparelhada de museus, mas o museu vivo das burrices e dos brilhantismos que nem sempre se distinguem claramente. É o continente que inventou o humanismo com as ferramentas do Terror e da retórica esnobe. Foi a primeira parte do planeta a romper aristocraticamente com a aristocracia, a disseminar tiranicamente os valores democráticos, a abrir a sociedade às mulheres, sem abrir mão do patriarcalismo. Neste rabicho da Eurásia surgiu a idéia de que todo indivíduo tem direito à educação: os ricos e os pobres, os brancos e os imigrantes; educados, os trabalhadores puderam render melhor nos momentos da espoliação. A Europa investiu mais do que ninguém em transporte de massa, que leva seus subjugados para subúrbios desumanos como os nossos – bom, talvez não como os nossos.

A amplitude das contradições chega a ser fantástica. Se for para comparar com o Brasil, eu diria que nossas contradições são mais comportadas, reproduzindo na ponta dominada uma imagem de tamanha incompatibilidade. Note-se a civilidade, e quão brutal essa civilidade pode ser: quando há um problema, e Deus sabe que há muitos, eles sentam, discutem e resolvem como der. Nem que isso envolva ameaças de aniquilação e fantasmas de guerras passadas. A cultura européia, com toda sua arrogância e xenofobia, e talvez até mesmo por causa dela, é mais aberta do que a nossa. Como pode? Apesar de uma infinidade de atitudes de segregação e desrespeito que se vêem quotidianamente nas ruas de Paris, ainda assim os franceses se dedicam a iniciativas de aproximação com outras culturas, religiões, civilizações, bem mais que os brasileiros.

No Brasil, quando se discute qualquer assunto, a comparação é inevitável: “no Brasil é X, na Europa (ou nos EUA), é Y”. Já o europeu discute assim: “Aqui X, no Egito é Y, em Madagascar, Z, no Japão W, no México…”. O mais notável é que na verdade eles estudam geografia mais ou menos como nós, mas não acham que seja perda de tempo. É um exercício pelo qual reafirmam para si próprios, e para os periféricos deste mundo, sua superioridade moral (já que a econômica e a bélica, não dá mais). Assim, absorvem aquilo que é útil para eles e elevam à categoria de descrição fiel do universo. É autoritário e, ao mesmo tempo, aberto.

Mesmo assim, parece que o momento atual está fazendo transbordar isso tudo. Devo dizer que estou assustado, sem querer soar sensacionalista. Há um ódio latente que é difícil não notar, e que tem justificado um desejo de retornar a narrativas bem mais fechadas (e tão autoritárias quanto). Aqui há olhares de desprezo, acolá de agressividade. De um lado há sobrenomes tradicionais da Provença ou de Champagne, do outro filhos do Maghreb e da Costa do Marfim. Houve por algum tempo uma ilusão de integração e assimilação que exala uma certa beleza. Por sinal, chegou a ser verdade alguns casos. Por exemplo, durante um curso da faculdade, estudantes de origem islâmica debatem com o professor no tom mais aberto e intelectualmente honesto possível.

Fora da sala de aula, isso não acontece dessa maneira. Os grupos islâmicos estão se tornando mais herméticos e muito se fala em ressentimento. Há famílias que recusam a entrada de médicos e bombeiros em seus enclaves, sentindo-os como se fossem imposição de um império colonial. Não admitem estudantes não-islâmicos em suas escolas, e chegam a expulsar famílias que colocam seus filhos em escolas públicas, e portanto laicas. Afastam-se de todo contato com o país em torno. A descrição é desagradável, mas o mais desagradável é perceber que por muito tempo não acontecia assim… e agora está acontecendo.

* * *

A explicação pode estar no lado inverso, e é por isso que ele me assusta mais. É mais ou menos normal que populações imigrantes procurem buscar segurança no próprio seio (claro, com um certo bom senso), principalmente quando são grupos excluídos socialmente e economicamente desfavorecidos. O que observo, porém, é um recrudescimento do ódio nos europeus, esses mesmos que há algumas gerações desenvolveram os conceitos de tolerância, humanismo, igualdade e assim por diante, pincelados acima. As comunidades muçulmanas se fecham sobre si próprias e os próprios europeus se fecham também, não só para os muçulmanos, mas para os próprios conceitos que formam o, digamos assim, lado mais admirável dessas contradições européias. Andam ressuscitando ideais de pureza e violência que se acreditavam sepultados e superados. A presença de um “outro”, na verdade um semi-outro, já que sua história é intimamente vinculada à história dos europeus nos últimos séculos, justifica a a firmação de uma identidade que também é mutilada e grosseira. Nada de bom pode sair daí.

Vê-se a tensão em cada canto, como uma panela de pressão que apita em desespero. Muçulmanas com véus tão apertados quanto possam, coloridos, de frente para moçoilas de mini-saia e maquiagem, que as encaram com ar de desdém. Rapazes de barba e pele escura olhando como quem quer briga para colegas pálidos que se barbeiam provavelmente duas vezes por dia, e não retornam o olhar de maneira menos agressiva. As posturas estão cada vez mais demarcadas, distantes, herméticas. Os cursos universitários de cultura islâmica têm pouquíssimos interessados, a grande maioria de estudantes muçulmanos, quase nenhum não-islâmicom querendo se aprofundar em outras formas de pensar e enxergar o mundo. Quando o provável próximo presidente chama uma parcela da população de escória, não é à toa. Não há diálogo, senão marginalmente, entre pessoas “de boa vontade” mas um pouco sonhadoras.

Não há como deixar de ver um certo risco de uma guerra civil, quiçá religiosa, na Europa. Nada, claro, como o que se passa no Brasil. Não é questão de ser assaltado na frente de um policial que finge nada ver. É algo um pouco mais, digamos, sério. Seria a concretização do “choque de civilizações” de Samuel Huntington? Talvez, mas o que se choca são, na verdade, vizinhos que têm o mesmo passaporte, votam nos mesmos candidatos, usam a mesma linha de metrô.

Os valores que salvaram o continente, infelizmente, não são tão fortes quanto chegaram a se afirmar (e não poderiam se firmar sem afirmar-se como tais, talvez até mesmo sabendo que era blefe). Não será de estranhar se esses antigos monumentos forem testemunhas de mais um banho de sangue. Talvez o que falte a esses valores seja nutrir-se da própria dialética e entender o quanto há de contraditório neles. Afinal, se havia o ideal de uma integração, que integração é essa que necessariamente apaga quem vem a se integrar? Se de fato a imigração enriquece a cultura que a recebe, qual é o nome que se dá a um enriquecimento que relega a subúrbios esquecidos a fonte dessa mesma riqueza?

Há uma falha trágica, pelo visto, na própria integração, e que vem completar as falhas dramáticas do integrismo dos brancos e do comunitarismo dos árabes. Muito de criação poderia passar no meio desses buracos, desses vórtices supersaturados de energia. Mas caminhando pela cidade e por alguns de seus subúrbios, conversando com jovens e velhos, franceses “de souche” e filhos de magrebinos, o termo que flutua por entre as frases, quando o interlocutor faz a pausa para retomar a respiração, é ressentimento, como o apito da panela de pressão.

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