Acho que ainda encarava com inocência as armadilhas da língua, quando reagi com naturalidade: “Você não vai ter problemas para renovar o visto”, disse o rapaz do guichê, em tom da mais natural constatação, “porque, bom, você é ocidental”. E eu assenti com a cabeça, querendo indicar que entendia o que ele queria dizer, mesmo que não concordasse. Só têm problemas com a polícia e o visto, traduzi mentalmente, as pessoas que vêm de países islâmicos, interpretados logo de cara como terroristas em potência. Aqueles que, por aqui, são chamados de “orientais” (esse termo designa os oriundos do Islã, grosso modo. Nossos “orientais”, aqui, são “asiáticos”.) Brasileiro pode ficar tranqüilo nesse ponto. Povo bacana, pacífico, alegre, fonte inesgotável de sorrisos, mulheres, dribles e gols. E, na minha cabeça, também ocidental, a julgar pelo que eu tinha entendido da afirmação do rapaz do guichê.
Mas, que o quê, eu não tinha entendido era nada. Primeiro, fui entender que o conceito de Ocidente passa longe, muito longe do Brasil. Quando ouvir um europeu se referir ao “Ocidente”, esteja certo de que os países em questão são os da Europa, ora, ocidental, a que se somam os Estados Unidos e o Canadá; em certas circunstâncias, até um australiano pode receber o título, embora seu país esteja cravado no outro hemisfério. Em outras palavras, aquela velha idéia de dividir o mundo em dois hemisférios é conversa fiada. O mundo, para o europeu, é segmentado numa meia-dúzia de compartimentos: Ocidente, Oriente, África, Ásia, russos e quetais. O brasileiro, nesse esquema, tem de se contentar com o carimbo de latino-americano. Mas é importante frisar que esta não é uma identificação cultural ou geográfica. Para o europeu, ela resulta da mais autêntica ontologia.
Agora, se é assim, como se explica o fato de que, para o digníssimo sujeito do outro lado do guichê, eu seja um ocidental, se ele sabia perfeitamente que sou brasileiro, “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes” (TM Belchior)? Tenho certeza de que pelo menos um de vocês dois que estão lendo o texto já tem a resposta na ponta da língua, mas vou enrolar um pouquinho mais.
Um último episódio (último nada, quem dera) veio confirmar minhas suspeitas. Um lauto jantar, bem à francesa, de gastronomia refinada e a nata do vinho nacional (piada velha). À mesa, um cândido rapaz, quase diáfano, contava sua traumática experiência de visitar uma periferia bem ao norte de Paris. Deve ter sido terrível caminhar por ruas desconhecidas e numeradas, em vez de nomeadas. Tantas janelas, tantas crianças, tantos olhares desconfiados. E o mais assustador, ele concluiu: “para qualquer lado que eu olhasse, não encontraria um único ocidental”.
Eis aquela palavra, mais uma vez. E agora entendemos o que ela quer dizer, na boca de um indivíduo civilizado e de mente aberta da Europa. “Ocidental”, afinal de contas, nada mais é do que um sinônimo para “branco”. O que me disse o funcionário público que comigo conversou no guichê, afinal de contas, foi que a polícia francesa não colocaria empecilhos à minha permanência em seu território porque sou branco. Tenho a pele, a cabeleira e o par de olhos ideais do Ocidente.
Ou seja, a língua não é nada inocente. Inocente era eu. A justaposição da classificação geográfica sobre a étnica (ou racial, para dar um tom mais agressivo ao contexto) alivia a carga pesada e negativa de sentir-se um discriminador. O europeu não quer mais ser racista. A lembrança de crimes como a “Solução Final” (que é como os nazistas chamavam o extermínio de judeus), a escravidão e a guerra da Argélia ainda é muito próxima no inconsciente coletivo. É preciso ser civilizado, pois esses são os ditos “valores ocidentais” – e eis que reaparece a fatídica palavra. Não se deve julgar e, na seqüência, rejeitar alguém pela etnia. Um indivíduo democrático, justo e civilizado da Europa não faz esse tipo de coisa. Certo?
Acontece que lutar contra as próprias inclinações impõe algumas dificuldades. Quando os netos de quem outrora oprimiu vêm viver em seu país e pedir para compartilhar de sua nacionalidade; pior, quando já nascem no solo da antiga metrópole, do antigo império, e têm direito imediato a se considerar um cidadão; ou ainda, quando a pronúncia, a música e a indumentária se alteram radicalmente em plena capital do país, haja força de vontade para o ocidental não se sentir acuado, ameaçado e, falemos abertamente, ofendido. Para reerguer a barreira, mas sutilmente, sem recaída fascista, nada mais adequado que a terminologia bem escolhida.
Resultado, consegue-se estabelecer a fronteira entre o “nós”, que se refere aos que, a pele denuncia, descendem dos bárbaros que colonizaram esta terra, e o “eles”, todo mundo mais, com uma preferência acentuada pelos magrebinos e árabes em geral, além dos negros (desculpe, africanos). Só que, como toda estratégia, essa também tem seus furos, por onde esguicha com violência uma água corrosiva. Concebida para afastar os povos menos nobres do banquete da riqueza européia, corre o risco de funcionar bem demais. Seria como se, vamos supor, os serviçais desaparecessem da saturnal levando a comida, os talheres, a louça e a toalha da mesa.
Há coisa de duas semanas, a seleção da Tunísia veio jogar na França. Começou a tocar a Marselhesa e, suprema surpresa, supremo acinte, milhares de adolescentes começaram a assoviar e vaiar. Foi o caos. A imprensa se rasgou nos editoriais. O onipresente Sarkozy ameaçou: da próxima vez, não vai ter jogo. Os intelectuais, sempre atentos, aproveitaram para encher laudas e laudas de perguntas sobre o significado do evento. Nas escolas dos subúrbios, os professores foram instruídos a verificar com a garotada se eles se sentiam franceses. Muitos disseram que não. Preferem se identificar com o país dos pais, mesmo sem jamais terem posto o pé por lá.
Esse é o grande furo da estratégia lingüística de discriminar sem segregar. Há um mundo para além da língua, ao contrário do que pode crer uma parcela bastante significativa das correntes de pensamento do último século. Ao criar, no coração da região que escolheu chamar a si própria de Ocidente, uma legião de cidadãos que não são ocidentais, o ocidental que se considera herdeiro dessa cidadania corre o sério risco de berçar um contingente incontável de ocidentais que nem aspiram a ser cidadãos. E, como nós, brasileiros, sabemos muito bem, quem se vê privado em definitivo da cidadania sente que não tem obrigação nenhuma para com a sociedade.
PS: Eu pretendia continuar com uma comparação com o problema da discriminação social e racial no Brasil, porque, afinal de contas, meu país me interessa muito mais do que os dos outros. Mas ia ficar grande demais, então prefiro continuar em outro artigo, que deve chegar nos próximos dias. Se você tiver um bom coração, me diga que o aguarda com ansiedade. Nem que seja só para me agradar…
Respondendo à pergunta: os gaúchos estão no outro blog, o sopa no mel!
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Creio que não preciso parabenizá-lo pelo texto que, como sempre, é muito bom. E, sim, aguardo esperançoso e curioso pela tal comparação!
Forte abraço
Bruno Alvaro
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rotular é simplificar a consciência, tem o bom, o mal, o feio, faroeste ocidental, os da minha descendência são judeus com apendes adjetivado tipo vc é judeu diferente, tantas vezes ouvido quando um conhecido é pego desprevenido na sua intolerância, o que diabo significa ser judeu diferente?
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Oi, Diego,
Caramba, depois das considerações que você fez sobre os meus comentários à matéria da bunda, senti-me na obrigação de voltar à carga.
Antes, devo dizer que tive vontade de polemizar com você sobre as medidas da Bündchen. Afinal, 88 cm de quadril contra os 100 cm da Martha Rocha não chegam a ser pouca bunda, não!
Mas deixemos as divagações (isto é, as viagens motivadas por divas) e voltemos ao tema de hoje, o racismo.
Rapaz, parece que os franceses já foram mais tolerantes nessa questão. No século 16, o Michel de Montaigne, por exemplo, achava que os Tupinambá eram bem mais civilizados que seus conterrâneos, a despeito do canibalismo daqueles. Para Montaigne, comer uma pessoa morta, como faziam os índios, era algo moralmente superior a massacrá-la em carne viva, como faziam seus compatriotas.
No capítulo 31 dos Ensaios, há uma observação curiosa de Montaigne a respeito do conceito que os Tupinambá tinham do Ocidente:
“Eles acreditam nas almas eternas, e aquelas que foram escolhidas pelos deuses encontram-se no lugar do céu onde o sol se levanta; as condenadas, na banda do Ocidente”. (Ils croyent les ames eternelles, et celles qui ont bien merité des dieux, estre logées à l’endroit du ciel où le soleil se leve; les maudites, du costé de l’Occident).
Almas penadas eram, claro, as dos peró (os portugueses) ou dos maí (os franceses), que vinham do Leste.
No mesmo capítulo dos Ensaios, Montaigne observa que os Tupinambá ficaram horrorizados com a desigualdade social entre os franceses:
(Há um modo na língua deles pelo qual dizem que os homens são a metade uns dos outros), de maneira que perceberam que entre nós havia homens gordos, entupidos com toda espécie de comodidades, e que as metades deles mendigavam em suas portas, consumidos pela fome e a pobreza; e acharam estranho que essas metades tão necessitadas pudessem sofrer tal injustiça, sem agarrar os outros pelo gorgomilho, ou atear fogo nas casas deles” ((ils ont une façon de leur langage telle, qu’ils nomment les hommes moitié les uns des autres) qu’ils avoyent aperçeu qu’il y avoit parmy nous des hommes pleins et gorgez de toutes sortes de commoditez, et que leurs moitiez estoient mendians à leurs portes, décharnez de faim et de pauvreté; et trouvoient estrange comme ces moitiez icy necessiteuses pouvoient souffrir une telle injustice, qu’ils ne prinsent les autres à la gorge, ou missent le feu à leurs maisons.)
O que será que o Montaigne diria dos jovens de origem magrebina (“voyous et racailles”, nas palavras de Sarkozy) que começaram a tacar fogo nos carros em Clichy-sous-Bois e depois incendiaram a França em 2005?
Que que você acha?
Um abraço,
Antônio Carlos
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@iosif, boa pergunta. Aliás, você ainda passa por situações desse tipo?
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@Diego Viana,
já passei algumas vezes e ainda passarei, sou umcar que não descrimina, ouço até os chatos, burros, sou “amigo” de todos que que comigo simpatizam, nãlardeo minhas origens e um bom amigo, daqueles que é papo gostoso, faz sorrir e rir sem eu ser prevenido iniciou um”discurso” agressivo contra os judeus, me surpreendeu, o conhecia fazia tempo e nada percebara nada parecido, o interrompi: Carlos, pára com isso! eu sou judeu ele me olhou sem se perturbar, falou : você é judeu diferente, e continuou com aquela conversa, afastei – me, eu queria bater nele mas apenas entristeci
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Mais uma vez, magistral.
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Antes de mais nada parabéns pelo texto, muito bom. Meus parentes nordestinos têm um eufemismo mais suave para este branco, tão pouco conveniente, diriam que você é alvo.
Grande abraço
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@Antônio Carlos, bem-vindo de volta. Aliás, volte sempre à carga; debates na caixa de comentários fazem falta a este blog.
Quanto à polêmica da bunda, confesso que não tenho a menor idéia das medidas da Gisele. Como eu sempre preferi a abordagem fenomenológica em detrimento da cartesiana, prefiro observar o fenômeno, em vez de buscar a evidência geométrica. Por isso, meu parâmetro para avaliar os atributos da Gisele são fotográficos, e seguem:
Pouca bunda:

Muita bunda:

Não que nada disso seja muito relevante, é claro…
Vamos ao que interessa: Montaigne. Se me permite um comentário preliminar, eu já desconfiava que você fosse leitor do mais famoso prefeito de Bordéus. Pelos parágrafos que deixou aqui, vejo que você cultiva o modo de vida do “homme de qualité”, a universalidade, a miríade de referências. Aliás, uma leitura fundamental.
Sobre o texto, não podemos perder de vista o tempo em que ele foi escrito e as referências que ele evoca. A França não era ainda um império colonial; a Europa como um todo ainda não era o centro do universo, basta ver que Viena só foi se ver definitivamente livre dos turcos em 1683. Montaigne, a esse ponto, já estava morto fazia quase um século.
Mais importante ainda é lembrar a fantasia que os europeus faziam dos povos que vinham encontrando no novo mundo. Gente que não estava envolvida nas querelas do tempo, questões de fé e impérios. Chegou-se a pensar que a América era o jardim do Éden e que os nativos não tinham a estigma do pecado original. A propósito, no começo discutia-se mesmo se eles teriam alma (controvérsia de Valladolid). Resumindo, a partir da experiência da descoberta da América, criou-se toda uma literatura derivada do assombro europeu com a descoberta dos “selvagens”. A idéia do “bom selvagem” de Rousseau é um eco dessa tradição, ainda no século XVIII. Os primeiros economistas falavam em termos de trocas entre “primitivos” e por aí vai.
Acredito que é sob esse prisma que devemos entender o que diz Montaigne, cujo primeiro exemplo nesse ensaio (Pirro na Itália) é interessantíssimo justamente por colocar o exército romano na condição de “bárbaro”, o que mostra a que ponto a tendência humana a se colocar como centro do mundo pode nos cegar para os movimentos do tempo.
Sendo assim, sobre sua pergunta: a perspectiva é outra. A França se tornou um ex-império assaz decadente, estagnado e em crise de identidade. Perdido na lembrança da importância que teve sua cultura e seu idioma. Incapaz de assumir uma posição na modernidade que não seja nem de confrontação explícita, nem de subsunção irresponsável. Congelada no impasse de seu próprio enriquecimento genético-étnico-cultural, que tem como contrapartida a renúncia a uma parte da herança comum. Montaigne era um universalista, conhecia os meandros da política, mas se inspirava fortemente de um estoicismo reflexivo que faz muita falta aos gestores de hoje. Se fosse falar da juventude enfurecida das banlieues, talvez, em referência à França como um todo, reescrevesse o quarto ensaio, aquele sobre “comme l’âme descharge ses passions sur des objects faux, quand les vrais luy défaillent”. Porque, afinal, o problema do país não é a imigração, como eles gostam de fingir que crêem; e o problema dos jovens não são os carros que eles destróem na própria vizinhança. Mas é mais fácil crer que é assim, purgar a raiva e fim de papo…
Desculpe não ter respondido mais cedo, mas esta última semana foi particularmente trabalhosa.
Abraço,
Diego
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Aguardo seu próximo artigo com ansiedade (e não é só p/ te agradar) e apesar do tema predominante aqui nas caixas de comentários, que absolutamente não me interessa at all.
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Como sempre, chego atrasado às discussões, mon ami. Mas o fato é que gostei demais desse seu ótimo texto e do seguinte, que também discute a questão racial. Eu os citei e os “linkei” no último texto que escrevi para o Terceira Margem. Acho que nossas opiniões são bem convergentes… Se quiser opinar, a casa é sua, como sempre.
Abraço,
Léo
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