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O Senhor do Universo

Nos primeiros dias, o Senhor do Universo me cumprimentava friamente. Foi se abrindo aos poucos, mas em poucas semanas já me recebia com o sorriso desinibido. Isso era mais do que um sinal de apreço: quando ele cumprimenta alguém, é cumprimento sério. O que estiver fazendo, o Senhor do Universo interrompe, mesmo que seja uma frase, enquanto dá seu aperto de mão firme, olhos sempre nos olhos.

Certa vez, nos longos períodos de espera, ele me relatou como o incomodava a indiferença ocidental para com a saudação. Cerra-se a mão e o assunto continua. O contato da pele foi mera formalidade, como bater ponto. Depois dessa confidência, passei a reparar na má vontade com que ele osculava as moças, dobrado ao costume local mas sempre recalcitrante. O beijo, tal como ele o entende, é intimidade, deveria ser reservado para a família e os amigos muito próximos, não para colegas de trabalho.

Sendo assim, eu me policiava ao lhe estender a mão. Não queria magoá-lo se, num deslize, comentasse em hora imprópria que o tempo estava feio. Durante o cumprimento, travestia um ar sério e mirava bem nos olhos do Senhor do Universo. Penso que ele me respeitava justamente por isso. E me estimava, na condição de único que tinha consideração por seus conceitos. Certa vez, a proprietária comentou comigo, mal disfarçando o despeito, que em três anos de convivência não tinha ouvido metade do que eu sabia sobre a vida dele. Certamente era verdade. Ela nem desconfiava, por exemplo, de que ele é o Senhor do Universo.

Não era difícil perceber a razão do segredo. O Senhor do Universo, que naturalmente não suporta a desonestidade, estava convencido de que ela burlava o fisco e errava de propósito o cálculo da hora extra dos subordinados. Verifiquei, depois, que ele tinha razão, mas pouco importa. Fato é que ela lhe perguntava da família e ele dizia friamente que iam bem, a filha recém-nascida e a esposa com dificuldades de adaptação ao novo país. O diálogo avançava muito pouco, mas como ele fazia o serviço corretamente, não corria risco de perder o emprego. Comigo, falava apenas em inglês, código incompreensível para a gaulesa monoglota que pagava nosso salário.

Eis sua rotina. Chega mais cedo, corta as batatas e põe as rodelas no forno. Separa as carnes, as verduras, os temperos, veste seu avental sempre impecável, termina tudo sempre muito antes de chegarem os clientes. Eu entrava com o pão, saía com as toalhas e talheres; enquanto punha as mesas, via-o puxar a agenda e escrevinhar, muito concentrado. O Senhor do Universo, se pudesse ter escolhido, viveria da poesia, que eu ia esguelhar, mais tarde, quando tinha de anotar alguma reserva. Os versos, eu não compreendia. Meu deleite era contemplar as curvas do estranho alfabeto, que me faziam lembrar os arabescos do Taj Mahal, na caligrafia caprichada e miúda de meu colega.

Certa vez, ele me traduziu um dos poemas. Era um epigrama que dizia algo assim: “As pessoas vêem as flores do caminho e dizem: ‘que belas’! Mas logo esquecem”. No original, soava bem. Em seguida, pediu que eu traduzisse algo do português. Escolhi Fernando Pessoa, mas pareceu não tocá-lo, a não ser pelo trecho em que “Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu.” Foi uma noite poética. A centenas de quilômetros do oceano, esses versos foram repetidos diversas vezes, em inglês improvisado, para fixar.

O Senhor do Universo, na verdade, era jornalista. Com seu senso aguçado de justiça, escolheu a editoria mais arriscada para trabalhar. Num país instável como o Bangladesh, onde nasceu e por quem é fervoroso patriota, produzia matérias de política. Soube disso no meio de uma noite tediosa, em que nosso restaurante deu prejuízo, porque não apareceu um cliente sequer. Restou ao garçom brasileiro e ao cozinheiro bengali beber e falar da vida, cada um de seu lado do balcão. Ouvi todo o relato, contado com uma frieza que me pareceu insólita. Uma série de matérias sobre um partido radical islâmico, que cooptava jovens camponeses, acabou lhe rendendo um sequestro. Uma servente, arriscando a própria vida pelo jovem inocente, o libertou e lhe aconselhou a fuga. O repórter não pôde passar em casa, nem telefonar para a família aflita. Sem dinheiro ou documentos, conseguiu, nem sabe como, chegar à Índia, onde amigos o acolheram e enviaram para a Itália. De lá, passou para a França, exilado, empobrecido e desempregado.

Isso aconteceu há sete anos. Desde então, o Senhor do Universo aprendeu o francês, empregou-se primeiro como pizzaiolo, depois como cozinheiro de um restaurante típico de uma região chamada Ariège, de que eu nunca tinha ouvido falar antes de me empregar ali. Ele tampouco, evidentemente. Muçulmano, mas vagamente praticante, não se alimenta das carnes que passa a noite preparando, mas afirma que o motivo seja menos a religião e mais o paladar. Qualquer comida é intragável para ele se não leva curry, então o que o salvou da inanição foi a chegada da esposa, há dois anos, para acompanhá-lo e cozinhar seu jantar de todo dia. Assim, enquanto eu me refestelava com o pato ou o ensopado que ele preparou, o Senhor do Universo se recolhia com os potes de plástico trazidos de casa. Calado, mastigava o frango ao curry, o arroz ao curry, os legumes ao curry, o curry ao curry.

Quando não discorria sobre poesia ou a política de seu país, ele reclamava da sujeira de Paris e da preguiça dos fornecedores, com quem não raro discutia ao telefone, em seu francês agudo e quase incompreensível. Sonhava, aliás ainda sonha, em se transferir para a Inglaterra, onde espera conseguir retomar a carreira jornalística no idioma ocidental que melhor conhece. Acaba de obter a cidadania francesa, pode circular pela Europa o quanto quiser, mas não é tão fácil mudar de país, com a família dependente de seu salário.

Enquanto trabalhei com ele, eu não sabia que se tratava do Senhor do Universo. Para mim, era um sujeito de valor, castigado pela injustiça do mundo, mas orgulhoso demais para se queixar. Eu ficava inconformado, vendo-o arear as panelas antes de partir, de madrugada, um poeta que atravessou o mundo para escapar da perseguição política, um profissional honesto e idealista reduzido a imigrante, um espírito mal aproveitado por um espécie humana incapaz. Tentei convencê-lo a publicar suas memórias, já escritas. Ofereci ajuda na tradução e na procura por uma editora ou um agente.

A idéia fez brilharem seus olhos, mas ele estava cansado demais para perseguir a glória literária. Uma vez, findo o expediente, reparei nos esgares que ele produzia na tentativa de se calçar, sentado ao lado da porta. Conseguiu, mas suspirou. À luz amarelada que entrava pela janela, pude notar o desânimo em seu rosto. Por algum motivo, guardei silêncio. Ao contrário, foi ele que comentou, quase suspirando, que trabalho em restaurante é para gente jovem e forte. Antes que eu respondesse, ele soltou uma risada breve e amarga, emendada numa pergunta: se meu nome tinha algum significado. Respondi dando de ombros, incerto. Oliveira é uma árvore; Viana, não sei, mas é uma cidade portuguesa; Diego é uma das infinitas variações de um nome bíblico pouco lisonjeiro, o gêmeo invejoso.

Antes de me explicar seu próprio nome, ele alçou a cabeça como se fosse olhar em volta. Mas não seria preciso examinar aquele restaurante de vinte e poucos lugares, que tão pouca importância dava às exigências da higiene. O clima já se bastava em melancolia, com a penumbra, a chuva manhosa, o vento frio. Então ele traduziu seu próprio nome, rindo da minha reação de surpresa. Apesar de sorrir e me fazer de incrédulo, eu me enchi de tristeza. Que mundo sarcástico, que mundo cruel, pensei, este em que pode estar oculto num recanto ignóbil o Senhor do Universo.

* * *

PS: A propósito, ele tem um blog (um pouco desatualizado, porém). Para quem conseguir decifrar o alfabeto e a língua, eis o endereço: http://sarwarealam.blogspot.com

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Língua, etnia, origem, cor

Acho que ainda encarava com inocência as armadilhas da língua, quando reagi com naturalidade: “Você não vai ter problemas para renovar o visto”, disse o rapaz do guichê, em tom da mais natural constatação, “porque, bom, você é ocidental”. E eu assenti com a cabeça, querendo indicar que entendia o que ele queria dizer, mesmo que não concordasse. Só têm problemas com a polícia e o visto, traduzi mentalmente, as pessoas que vêm de países islâmicos, interpretados logo de cara como terroristas em potência. Aqueles que, por aqui, são chamados de “orientais” (esse termo designa os oriundos do Islã, grosso modo. Nossos “orientais”, aqui, são “asiáticos”.) Brasileiro pode ficar tranqüilo nesse ponto. Povo bacana, pacífico, alegre, fonte inesgotável de sorrisos, mulheres, dribles e gols. E, na minha cabeça, também ocidental, a julgar pelo que eu tinha entendido da afirmação do rapaz do guichê.

Mas, que o quê, eu não tinha entendido era nada. Primeiro, fui entender que o conceito de Ocidente passa longe, muito longe do Brasil. Quando ouvir um europeu se referir ao “Ocidente”, esteja certo de que os países em questão são os da Europa, ora, ocidental, a que se somam os Estados Unidos e o Canadá; em certas circunstâncias, até um australiano pode receber o título, embora seu país esteja cravado no outro hemisfério. Em outras palavras, aquela velha idéia de dividir o mundo em dois hemisférios é conversa fiada. O mundo, para o europeu, é segmentado numa meia-dúzia de compartimentos: Ocidente, Oriente, África, Ásia, russos e quetais. O brasileiro, nesse esquema, tem de se contentar com o carimbo de latino-americano. Mas é importante frisar que esta não é uma identificação cultural ou geográfica. Para o europeu, ela resulta da mais autêntica ontologia.

Agora, se é assim, como se explica o fato de que, para o digníssimo sujeito do outro lado do guichê, eu seja um ocidental, se ele sabia perfeitamente que sou brasileiro, “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes” (TM Belchior)? Tenho certeza de que pelo menos um de vocês dois que estão lendo o texto já tem a resposta na ponta da língua, mas vou enrolar um pouquinho mais.

Um último episódio (último nada, quem dera) veio confirmar minhas suspeitas. Um lauto jantar, bem à francesa, de gastronomia refinada e a nata do vinho nacional (piada velha). À mesa, um cândido rapaz, quase diáfano, contava sua traumática experiência de visitar uma periferia bem ao norte de Paris. Deve ter sido terrível caminhar por ruas desconhecidas e numeradas, em vez de nomeadas. Tantas janelas, tantas crianças, tantos olhares desconfiados. E o mais assustador, ele concluiu: “para qualquer lado que eu olhasse, não encontraria um único ocidental”.

Eis aquela palavra, mais uma vez. E agora entendemos o que ela quer dizer, na boca de um indivíduo civilizado e de mente aberta da Europa. “Ocidental”, afinal de contas, nada mais é do que um sinônimo para “branco”. O que me disse o funcionário público que comigo conversou no guichê, afinal de contas, foi que a polícia francesa não colocaria empecilhos à minha permanência em seu território porque sou branco. Tenho a pele, a cabeleira e o par de olhos ideais do Ocidente.

Ou seja, a língua não é nada inocente. Inocente era eu. A justaposição da classificação geográfica sobre a étnica (ou racial, para dar um tom mais agressivo ao contexto) alivia a carga pesada e negativa de sentir-se um discriminador. O europeu não quer mais ser racista. A lembrança de crimes como a “Solução Final” (que é como os nazistas chamavam o extermínio de judeus), a escravidão e a guerra da Argélia ainda é muito próxima no inconsciente coletivo. É preciso ser civilizado, pois esses são os ditos “valores ocidentais” – e eis que reaparece a fatídica palavra. Não se deve julgar e, na seqüência, rejeitar alguém pela etnia. Um indivíduo democrático, justo e civilizado da Europa não faz esse tipo de coisa. Certo?

Acontece que lutar contra as próprias inclinações impõe algumas dificuldades. Quando os netos de quem outrora oprimiu vêm viver em seu país e pedir para compartilhar de sua nacionalidade; pior, quando já nascem no solo da antiga metrópole, do antigo império, e têm direito imediato a se considerar um cidadão; ou ainda, quando a pronúncia, a música e a indumentária se alteram radicalmente em plena capital do país, haja força de vontade para o ocidental não se sentir acuado, ameaçado e, falemos abertamente, ofendido. Para reerguer a barreira, mas sutilmente, sem recaída fascista, nada mais adequado que a terminologia bem escolhida.

Resultado, consegue-se estabelecer a fronteira entre o “nós”, que se refere aos que, a pele denuncia, descendem dos bárbaros que colonizaram esta terra, e o “eles”, todo mundo mais, com uma preferência acentuada pelos magrebinos e árabes em geral, além dos negros (desculpe, africanos). Só que, como toda estratégia, essa também tem seus furos, por onde esguicha com violência uma água corrosiva. Concebida para afastar os povos menos nobres do banquete da riqueza européia, corre o risco de funcionar bem demais. Seria como se, vamos supor, os serviçais desaparecessem da saturnal levando a comida, os talheres, a louça e a toalha da mesa.

Há coisa de duas semanas, a seleção da Tunísia veio jogar na França. Começou a tocar a Marselhesa e, suprema surpresa, supremo acinte, milhares de adolescentes começaram a assoviar e vaiar. Foi o caos. A imprensa se rasgou nos editoriais. O onipresente Sarkozy ameaçou: da próxima vez, não vai ter jogo. Os intelectuais, sempre atentos, aproveitaram para encher laudas e laudas de perguntas sobre o significado do evento. Nas escolas dos subúrbios, os professores foram instruídos a verificar com a garotada se eles se sentiam franceses. Muitos disseram que não. Preferem se identificar com o país dos pais, mesmo sem jamais terem posto o pé por lá.

Esse é o grande furo da estratégia lingüística de discriminar sem segregar. Há um mundo para além da língua, ao contrário do que pode crer uma parcela bastante significativa das correntes de pensamento do último século. Ao criar, no coração da região que escolheu chamar a si própria de Ocidente, uma legião de cidadãos que não são ocidentais, o ocidental que se considera herdeiro dessa cidadania corre o sério risco de berçar um contingente incontável de ocidentais que nem aspiram a ser cidadãos. E, como nós, brasileiros, sabemos muito bem, quem se vê privado em definitivo da cidadania sente que não tem obrigação nenhuma para com a sociedade.

PS: Eu pretendia continuar com uma comparação com o problema da discriminação social e racial no Brasil, porque, afinal de contas, meu país me interessa muito mais do que os dos outros. Mas ia ficar grande demais, então prefiro continuar em outro artigo, que deve chegar nos próximos dias. Se você tiver um bom coração, me diga que o aguarda com ansiedade. Nem que seja só para me agradar…

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