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Elogio à paciência e à sutil ironia

Foi na semana passada que entrei no blog do Catatau para comentar um texto recente, mas acabei não comentando. Fui atraído pela lista de comentários recentes, que terminava com o de um certo Pr. Thieme, num artigo publicado no longínquo, para não dizer antediluviano, mês de maio. Admirado da distância entre os argumentos originais e a contribuição listada na coluna lateral, resolvi visitar a página e acabei esquecendo da vida, sem contar o texto recente com que eu pretendia contribuir.

Fiquei pasmo ao ver a extensão da lista de comentários (para quem se interessar, ela está aqui), quase monopolizada pelo titular do blog e o Pr. Thieme. Mais ainda, deliciei-me com o desenrolar da conversa, muito embora ela manifeste algumas práticas retóricas que me enchem de apreensão quanto ao futuro. É que a irreconciliável diferença entre a lucidez argumentativa do blogueiro e o messianismo quase iletrado do comentarista produz algumas situações impagáveis, dignas de figurar em esquetes de um Monty Python da vida. (Por sinal, Eric Idle tem um vídeo no Youtube em que esfarela em derrisão alguns comentários virulentos que aparecem na lista do grupo. Merece uma visita.)

Começo com o que me preocupa. O Pr. Thieme se apresenta como um pastor evangélico defensor daquela tal psicóloga (por ter se formado na faculdade de psicologia, não por compreender a matéria, bem entendido) que prometeu “curar gays”. A defesa é baseada em uma série de testemunhos e passagens curtas da Bíblia, que, costurados de maneira aleatória e conveniente, fazem as vezes de exegese e fundamento teórico. Eventualmente, como na caixa de comentários de Catatau, esse tipo de técnica retórica esbarra em gente mais preparada. Solução? Vencer pelo cansaço, através de evasivas, repetições, argumentos ad hominem e assim por diante.

Mas vamos com calma. Vale analisar os sintomas um por um, para traçar o quadro daquilo que considero tão perturbador.

De fato, Pr. Thieme escreve com a retórica de quem foi treinado para seduzir platéias. Recorre reiteradamente a exemplos de grande apelo emocional e fácil compreensão. Intercala esses exemplos com sentenças identificativas, do tipo “A é B”, de imediata absorção, como postulado, pelo auditor (ou leitor) desatento ou despreocupado. Resultado: sem precisar expressá-lo distintamente, ele cria a falsa impressão de um silogismo. Mas, já que a conexão lógica não está explícita, a falácia passa batida e se instala no inconsciente do receptor como uma grande verdade.

Por exemplo:

Apelo emocional: “Nem a medicina resolve. Os três médicos que acharam que o Bozo estava morto converteram-se a Cristo (os três).

Postulado: “É a vantagem de ter o Poder de Deus para te iluminar sobre o problema a enfrentar e não depender somente de seus conhecimentos humanistas.

Silogismo disfarçado: Práticas de origem científica (no caso, medicina e psicologia) têm a obrigação de romper com seus fundamentos teóricos se for do interesse maior de determinada afiliação religiosa.

Observe que o truque aí acima só pode ter efeito por se aproveitar de outro silogismo escondido, que pressupõe que toda afiliação religiosa interpreta perfeitamente os textos sagrados. Isso parece contraditório, uma vez que, como todos sabemos, diferentes grupos religiosos interpretam as mesmas escrituras diferentemente. Sem contar, claro, o fato de que determinados grupos aceitam ou rejeitam tais ou tais escrituras como válidas ou não. Mas é menos contraditório do que parece. Trata-se de uma adaptação relapsa, talvez voluntariamente, dos princípios de sola fides (só a fé) e sola scriptura (só as escrituras) de Lutero.

Não sei se o pastor em questão é luterano (duvido muitíssimo), mas pouco importa. O fato é que Lutero pregava a salvação pela graça e a orientação pelo recolhimento diário para leitura e exegese dos textos sagrados cristãos, no âmbito individual e, por extensão, comunitário. Salientar o comunitário como extensão do individual é de fundamental importância para não cair no erro de determinados argumentadores, sobretudo evangélicos, como o Pr. Thieme. Dentro de uma comunidade bem delimitada, a aceitação (leia-se fé) de algumas interpretações básicas das escrituras funciona como conjunto de postulados para promover a vida religiosa comunitária, calcada sobre um desenvolvimento conjunto, no interior daquela coletividade específica e delimitada, de uma compreensão global dos textos sagrados. Não é à toa que grande parte da teologia e do pensamento político alemães partem da noção de comunidade.

O que tenta fazer o intérprete leviano do sola scriptura e do sola fides é incinerar o conceito de comunidade. Mas, como algum tipo de formulação coletiva é necessária num universo não-autista como o nosso, o que acaba acontecendo é algo profundamente perigoso: a comunidade é engolida pelo conceito de indivíduo. Isso permite a qualquer fiel isolar um versículo, aplicá-lo a algo em que tem convicção, e alardear suas próprias conjecturas como sendo a palavra de Deus.

A armadilha não poderia ser mais clara. O raciocínio por trás dessa atitude considera como verdadeira a seguinte conseqüencial: se os textos sagrados manifestam a palavra de Deus, então tudo que pode ser tirado de um texto sagrado manifesta a palavra de Deus. É um evidente caso de premissa omitida. Mesmo admitindo que toda escritura manifesta a palavra de Deus, quem “tira” interpretações desses textos não é Deus. São homens, mesmo que eles se creiam inspirados pelo Espírito Santo.

O que, a princípio, poderia vir salvar essa leitura solipsista das escrituras é o sola fides. Ora, lembremos que o sola fides é um rumo para a salvação, quase um atestado de “adesão” ao sola gratia, considerado em geral o princípio fundamental do luteranismo e retomado pela maior parte das denominações protestantes. Portanto, ele não pode ser usado como princípio que valide argumentos de cunho social, isto é, coletivo. O motivo é muito simples: não há mecanismo individual nenhum para assegurar o fiel de que sua fé está bem encaminhada; a própria Bíblia possui mais de um trecho destinado a alertar o fiel para a projeção em Deus de suas próprias convicções. O melhor exemplo de todos é provavelmente o mesmo trecho da carta de S. Paulo aos Coríntios que Catatau invoca para espezinhar o Pr. Thieme, e que inspira o título deste meu elogio (voltarei a isso mais adiante).

Retomando o fio do raciocínio, temos uma situação em que a interação entre o indivíduo e a comunidade está rompida, tornando os princípios de sola fides, sola gratia e sola scriptura o oposto daquilo a que estavam destinados. Suplantada pela retórica e pelo marketing espetaculoso (acho que aqui um exemplo é desnecessário), a religiosidade vira instrumento de manipulação política (e social, econômica, …). Observe que esse resultado seria suficiente para fazer queimar no inferno as almas mesmas que invocam Deus (ou deuses, se for o caso) para manobrar decisões políticas e sociais.

Afinal de contas, e eis a mais temível conseqüência da armadilha já mencionada, quando alguém projeta em Deus suas próprias idéias, como descrito nos últimos parágrafos, ele está, sabendo ou sem saber, tomando a si mesmo por Deus. Repito: a subversão dos princípios de sola fides, sola gratia e sola scriptura leva o fiel, ou aquele que se considera fiel, a se tomar por Deus. O termo técnico, se ainda for necessário, é blasfêmia.

É claro que esse tomar-se por Deus é um processo inconsciente e involuntário. Mas ele não acontece à toa: é resultado da perda da noção de comunidade, aquela em cujo seio a fé e as escrituras, compartilhadas pela leitura e a interação (lembremo-nos que, para Lutero, todo fiel é um sacerdote), aproximava a coletividade de Deus. No lugar da comunidade eclesiástica, o que temos hoje é o messianismo, o marketing e o espetáculo. No lugar da interação, temos grupos cada vez mais restritos, voltados não a uma busca de iluminação pela investigação das escrituras (sola scriptura), mas uma busca da catarse pelo contato físico com o livro sagrado (já viu aquelas pessoas andando por aí com a Bíblia na mão? Vê se elas refletem comunitariamente sobre aquilo…). No lugar da fé desenvolvida pela intersubjetividade comunitária, temos a auto-afirmação através de um combate profundamente político e longe de espiritual.

Como foi acontecer algo assim? Escolho, como explicação, usar dois autores que vão deixar muita gente ignara com os cabelos em pé. Isso mesmo: Nietzsche (cruz credo!) e Marx (te esconjuro!). O primeiro é autor da famosa sentença: “Deus está morto”, que todo mundo conhece e muita gente entende como uma provocação aos fiéis. Mas quem a lê assim o faz porque prefere não espiar o resto da passagem do louco com a lanterna: “Fomos nós que o matamos”, ele diz.

A interpretação mais imediata dessas duas frases é a preferida de quem se aproveita da religiosidade em proveito próprio. Ela consiste em crer que, no lugar desse Deus que considera morto, o homem coloca a si próprio. Afinal, parece difícil imaginar que o homem possa não colocar nada no lugar de princípio absoluto, para se orientar neste mundo de contingência em que tudo é fugidio. Como organizar uma interpretação da realidade sem pontos de apoio? Resultado: o homem se colocaria na condição de parâmetro para essa interpretação, tomando-se por absoluto e, por que não extrapolar, tomando-se por Deus. Quem nunca ouviu essa análise?

Ela não é tão errada quanto parece, na verdade. Mas ela se interrompe onde lhe interessa, sem chegar ao ponto verdadeiramente problemático da questão. Um tal “assassinato de Deus” não poderia ir adiante sem a corrosão do espírito comunitário que sustentava, para Lutero, os três “solae” e, para S. Paulo, a ecclesia (igreja; veja essa explicação em mais detalhe nos comentários do blog do Catatau). Trata-se, portanto, de uma decorrência da modernidade, tanto quanto as ferrovias, a metralhadora, a Coca-Cola e o Edir Macedo. De súbito, a estrutura onto-teológica que sustentava a espiritualidade ruiu, primeiro na Europa cristã, depois no mundo todo – e as perturbações do mundo islâmico que perduram até hoje são outra faceta do mesmíssimo fenômeno.

Mas o tema deste texto não é o Islã, e sim o discurso pseudo-religioso que toma suas próprias máximas como sendo palavra de Deus. E aqui é que vou recorrer a Marx (tire as crianças da sala). O barbudo alemão comedor de criancinhas abre seu 18 de Brumário de Luiz Napoleão com uma de suas passagens mais brilhantes. Diz ele, citando Hegel, que a história acontece duas vezes, “a primeira como tragédia; a segunda como farsa”. Mas o mais interessante é o que vem logo em seguida e merece uma citação integral (tirada do site marxists.org):

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada.

Proust, que não sei se leu Marx, escreveu um romance de umas boas 4000 páginas (uma tal Busca do Tempo Perdido) em que demonstra, por exemplo, como a burguesia fin-de-siècle se comportava como imitação farsesca da aristocracia dos séculos passados. Pois é o mesmo que acontece hoje, com aqueles que se pretendem os ressuscitadores do Deus cujo necrológio Nietzsche escreveu no século XIX.

Como vimos, o que essas pessoas promovem não é ressurreição de nenhuma sorte. Ao contrário, aproveitando-se da morte (autêntica ou não, pouco importa) de Deus, eles embalsamam o cadáver exposto por Nietzsche, como os soviéticos embalsamaram Lênin na Praça Vermelha, e falam através dele, como os soviéticos falavam através dos despojos do pai da Revolução, incapaz de se defender. O resultado é o que vemos: uma imitação, como farsa, da religiosidade histórica, baseada ela sim em um verdadeiro sistema exegético. E essa imitação se manifesta nessas lamentáveis lideranças, auto-intituladas religiosas, que se aproveitam da necessidade natural humana de alívio espiritual, apenas para adquirir peso num jogo político que tomou dimensões inimagináveis em épocas anteriores à “morte de Deus” que Nietzsche apontou, com sua habitual argúcia e verve.

Mas peço desculpas por essa longa digressão que foge absurdamente do título. É que eu queria demonstrar como o individualismo que gente como o Pr. Thieme denuncia nos “humanistas” e “relativistas” (ver seus comentários no blog do Catatau) está na origem da própria religiosidade ersatz que sustenta tantas denominações que aparecem muito mais no noticiário político do que em verdadeiros estudos teológicos. Pois é isso que, no começo do texto, eu considerava perturbador e perigoso. Utilizar-se de um subterfúgio religioso para fazer política não pode ter boas conseqüências. Logo me vem à cabeça gente como Savonarola e Torquemada. Fé cega e poder estatal são uma mistura explosiva, porque a certeza absoluta de encarnar o Bem (com letra maiúscula, e não nos esqueçamos que estamos falando de gente que confunde seus próprios instintos com a palavra de Deus) surrupia à ação qualquer possibilidade de limites. Assustador, sim, por esse motivo.

Agora, finalmente, chego ao elogio à paciência e à fina ironia. Nos comentários do blog do Catatau, o Pr. Thieme tenta, de toda forma, exaurir o gosto argumentativo do blogueiro. Se fosse comigo, ele conseguiria, porque eu não consigo exercitar essa divina virtude que é a paciência. Enquanto o comentarista insiste em repetir o mesmo discurso sentimental e confuso, que certamente passa por muito sábio para quem está predisposto a segui-lo se necessário até o inferno, o blogueiro perde horas de sua vida para responder. Privado do “chega, cansei” com que ele espera a vitória por pontos, o que resta ao comentarista? Expor-se ao ridículo e cansar não mais o blogueiro, mas o leitor.

E eu pergunto: como Catatau consegue ter tanta paciência? Acho que a resposta está na fina ironia. Apesar da enorme empulhação que deve ser ficar dando respostas, durante meses, à tortuosa linha argumentativa de seu oponente, imagino que deve ser muito divertido levá-lo a tornar suas próprias frases uma grande piada. Catatau chega ao ponto de, na maior cara-de-pau, chamar o sujeito de idiota, e ter como réplica apenas a queixa molenga de que a palavra é grega.

Se eu for pedir algo a Deus (e digo isso sem nenhuma intenção provocativa), será uma infinita paciência como a do Catatau, temperada com a mesma sabedoria de usar da ironia sem dar a perceber a ofensa numa primeira e ligeira leitura. Acontece que, sempre que sou irônico, e isso acontece com freqüência, a hostilidade fica logo patente. Não consigo disfarçar. Ao contrário, com sua proverbial fineza, Catatau é muito mais eficiente, como demonstra deu desmonte dos delírios do comentarista em seu blog. Simplesmente brilhante.

Como eu já disse, vale a leitura.

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É ruim o rio, se arfa?

Viver fora, muitas vezes, é como olhar no espelho. Nós nos vemos como se fôssemos algum outro, poucos passos à nossa frente. Mas sempre com o olhar fixo e direto, nunca deixamos de ser nós mesmos a encarar. Isso é verdade para tudo: a política, os costumes, as cidades. Como eu disse, tudo. O mundo estrangeiro é como os animais de laboratório que estudamos, querendo, na verdade, entender nossas próprias existências.

No meio desse tudo, o campo em que minha lógica mais se aplica é a língua. Pelo menos, para mim. A primeira coisa que alguém precisa conseguir quando mora fora é ficar acostumado com a fala dos outros. Mas então, logo em seguida, perdemos um pouco o costume da nossa. Quero dizer, de escutá-la pelas ruas, naturalmente, em seu habitat. Vivendo, em suma.

Com isso, quando damos com ela, inesperadamente, atrás de alguma esquina, ela parece alguma coisa outra. Alguém que não vemos há anos, digamos. Então, descobrimos nossa melodia, que soa aos outros tão particular quanto a deles para nós. Aquilo que nem valia nossa atenção acaba metamorfoseado em tesouro, porque sentimos saudade daquele nosso jeitinho, nosso som, tão mais gostoso que o deles – para nós, é claro, mas ironicamente também para eles.

Mais importante ainda talvez seja o que sucede com as palavras. Tanto é o esforço para enfiar no crânio todos os vocabulários do outro mundo – as gírias, os jargões, os nomes das verduras no supermercado –, que acabamos fechando o acesso a alguns dos nossos próprios nomes. Esquecemos que eles existem. Estão lá, mas, por falta de uso, é como se tivessem morrido.

Até que, um dia, reaparecem. Ou brotam da boca no meio de um papo, ou ouvimos alguém dizê-las, ou as lemos em algum canto. Milagre indescritível, quando as palavras se reencantam. Voltam a ser o que foram para os primitivos, os primeiros hominídeos a dizer alguma coisa. Reencontramos sua sonoridade, que no mais das vezes não passa de um encontro um tanto fortuito de sílabas, mas tem de vez em quando algo de muito sobrenatural. Faz-se evidente, sem mais, o que aquela palavra serve para expressar e o que está além dela. Resumindo, não deixa de ser um aprendizado em poesia, e acho que é por isso que gosto cada vez mais de Manoel de Barros.

Talvez nada disso tenha muito sentido para quem está no dia-a-dia do próprio idioma. Então é melhor partir para os exemplos.

Assistindo a um documentário sobre letras da MPB, eis que me deparo com uma palavrinha extraordinária, pronunciada por um cantor pernambucano: “arfa”. O verso dizia algo como “o peito que arfa”. Pois esse verbo, assim declinado, me encantou, a mim que há anos não o usava nem para dizer que alguma donzela arfava. Aliás, creia-me: “arfava”, “arfante” (eca!) e “arfar” não soam nem de longe tão bem quanto “arfa”. Talvez seja mesmo o acento na primeira sílaba, que, na pronúncia carnal e telúrica de cariocas e nordestinos, parece traduzir na emissão a própria ideia do ar que falta. A quem? A quem arfa, ora. Arfa, arfa, arfa. A palavra, por si só, é quase uma onomatopeia.

Depois, tive um choque diante de uma das palavras mais banais, só porque resolvi pensar nela. Coisa mais besta, fiquei fascinado com “ruim”. Ruim! Nem parece palavra do português, pense bem, a tal ponto que ainda não se decidiram se é monossílaba (rúim) ou dissílaba (ruím). Pessoalmente, mesmo que em teoria esteja errado, prefiro “rúim”. É mais áspera, logo agressiva, logo pior. “Ruím” não parece se referir a coisas ruins, mas a alguma espécie de passarinho que pode aparecer no quintal de vez em quando. “Olha lá um ruím! Que gracinha…” Estou dizendo besteira? É ruim.

Outra linda banalidade que reencontrei: “rio”. Estou tão acostumado a ouvir pessoas dizendo que vêm do Rio (de Janeiro), que corro o risco de perder de vista o sentido original da palavra, o fluxo quase invisível de água que corta nossas cidades e justifica que elas estejam onde estão. Falamos tão naturalmente do Sena, do Tâmisa, do Capibaribe, do Tietê, do Tejo, com seus artigos tão minuciosamente definidos, que esquecemos da verdade que se impõe: esses são todos rios, rios com seu “i” alongado de caminho perene.

Sem esse “i”, caímos num monossílabo que é a terceira pessoa do pretérito perfeito (como um idioma tão lindo pode ter uma expressão tão feia?) do verbo rir: riu. Que é, aliás, como os paulistanos chamam os rios, eles que tratam os seus como depósito de lixo e dejetos menos nobres. Honestamente, não vejo a menor graça nisso. Aliás, a vogal comprida faz falta também a outras línguas, que não conseguem manifestar oralmente o fato de que um rio é um rio, não é uma poça d’água. River, fleuve, Fluß… bah.

Eu teria exemplos bastantes para abrir um novo dicionário; mas é melhor parar por aqui. Afinal, todos sabemos que o caminho da verdade é ser sucinto, não? Provavelmente vou passar o resto da noite pensando em gente que arfa, em coisas ruins, em rios que fluem como uma conversa na minha língua. Nesse meio-tempo, talvez eu me lembre de outras palavras sumidas, que me surpreendem e deliciam.

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Herculano, o que escondes de nós?

Ainda há quem se preocupe com o que diziam, pensavam e escreviam os sábios de povos extintos, adoradores de deuses incontáveis, bebedores de vinho doce, guerreiros sangüinários que dizimavam povos em nome da glória, como se a esse estranho conceito coubesse mais valor que à vida humana. Sim, há ainda quem sonhe com o que diziam tantos volumes perdidos na queda dos grandes impérios da Antiguidade, e salive ao supor os tesouros ainda escondidos abaixo de nossos pés.

Essas pessoas passam por loucas. Cada vez mais, à medida em que o turbilhão de opiniões e leituras apressadas vai sugando o interesse das gentes pelo argumento alheio. Que dizer de outros paradigmas? Línguas mortas? O que poderia nos ensinar a leitura de um estóico do tempo de Cristo como Sêneca, forçado ao suicídio por um pupilo que calhava ser Nero, o imperador ensandecido, mas que cortou os pulsos durante um banquete, diante dos convivas, alegre, em altiva sujeição? A nós, mergulhados até o pescoço nas traições que movimentam cada mercado, nos impasses éticos que travam o quotidiano das ações, o que teria para dizer o jovem Sêneca?

Teríamos de mudar algo em nosso conhecimento da natureza, se encontrássemos os trechos perdidos de Empédocles? Não creio que isso nos obrigaria a abandonar o atomismo e reconduzir à luz os quatro elementos. Tampouco imagino que a obra integral de Demócrito invalidaria a mecânica quântica, com seus átomos indivisíveis e imprevisíveis. E no entanto, estranhamente, os velhos gregos e latinos, com seus fragmentos e tratados apócrifos, ainda são interessantes para certas pessoas, que se debruçam sobre diálogos muitas vezes incompreensíveis em busca de um conhecimento que cabia a outro mundo, com seus próprios problemas, critérios, aspirações e formas de expressão.

Poderíamos perguntar que recompensa tiram essas pessoas de uma leitura tão penosa. Talvez algumas frases espirituosas, para soltar durante o aperitivo, nas festas do grand monde. Mas isso se obtém, tanto quanto, à leitura das compilações de aforismos mais recentes, como as de Ruy Castro.

Mas parece que também se pode ganhar algo por outros lados. Algo até pessoal, já que o acúmulo individual de ativos há tempos é o único chamariz de interesse. Gente de outros tempos e outros lugares tende a enxergar as mesmas coisas que nós de ângulos inusitados, às vezes opostos aos nossos, mas nem por isso menos corretos. Os antigos, já que é deles que estamos falando, tinham seus próprios vícios e manias, o que significa que não tinham os nossos, o que faz com que suas idéias pareçam milagrosamente frescas e potentes.

Assim, sabemos bem que Platão, com toda sua dialética, defendia uma organização social plenamente estratificada. Pior ainda, em sua escala de cinco níveis para a degradação dos sistemas políticos, a democracia cai num vexatório quarto lugar, à frente apenas da tirania mais ímpia. Acontece que, hoje, todos amamos a democracia. Não podemos ouvir um pio contra ela. Matamos por ela, censuramos por ela, damos golpes de Estado e dissolvemos congressos em nome da democracia. Mas quando tentamos entender de que se trata, não demora a ficar claro que transformamos essa palavra num grande vácuo, que designa pouco mais do que o fato de que eventualmente as pessoas saem de casa para deixar seu voto numa urna. Ao passo que os antigos textos de Platão fazem críticas até hoje tão pertinentes ao sistema democrático, que chegamos a balançar. Tendo escrito há 2300 anos, parece que seu discurso é sobre o processo político que sentimos na pele. Quem se dedica a essas leituras, portanto, não se contenta em matraquear os lugares-comuns de um amor à democracia que já justificou tantas ditaduras ao redor do mundo.

O mesmo vale para o rame-rame interminável que contrapõe razão e emoção. Ora, mas essa oposição nunca existiu! A razão, como componente da psique humana, simplesmente não há. Como diria Hume, se há alguma oposição, é entre emoções calmas e intempestivas, ponto final. O logos dos gregos e a ratio dos escolásticos, sabe quem leu, exprime a capacidade de formular suas impressões, seus pensamentos e, por que não, suas emoções, de forma encadeada, consequente, argumentada. Ou seja: racional, lógica. Mas imperfeita: mesmo essa razão discursiva está sujeita aos deslizes da linguagem e às confusões do pensamento. Não é uma faculdade do entendimento oposta à carga sensível. É um gênero de discurso. Mesmo assim, continuamos a opor o uso da razão a uma sujeição às emoções. Isso não faz o menor sentido, é um vício de linguagem.

É por isso que ainda há quem trema de alegria ao saber que foram encontrados novos trechos de obras antigas. É difícil precisar o quanto essas frases soltas em grego antigo enriquecem nossa visão do universo ainda hoje. Mas o fato é que enriquecem. Reconstruindo os mundos que se perderam, de alguma forma aprendemos sobre como mudamos e sobre como continuamos os mesmos. E conseguimos escapar a formas condicionadas de lidar com a realidade.

Li recentemente em algum canto que existem boas chances de voltarem a escavar a biblioteca da Villa dei Papiri em Herculano, a vizinha menos célebre, mas mais interessante, de Pompéia. No que já se investigou, foram encontradas as obras de Filodemo, um dos principais epicuristas de Roma. Mas ainda há três andares provavelmente apinhados de obras ancestrais, carbonizadas mas ainda legíveis. Como saber o que pode ser descoberto, ou seja, recuperado de um silêncio de vinte séculos? Os tratados exotéricos de Aristóteles? A segunda parte de sua Poética? Centenas de tragédias de Sófocles, Ésquilo e Agaton? O poema de Parmênides? Os tratados logográficos dos sofistas, aqueles pobres professores malhados pela filosofia posterior como Judas em sábado de aleluia? Depois das escavações de Herculano, talvez o cânone da sabedoria ocidental tenha de ser reescrito.

Quando garoto, uma de minhas fantasias era ser arqueólogo. Um pouco por influência de meus gostos cinematográficos, mas principalmente porque eu adorava decifrar códigos, sonhava desencavar monumentos, encontrar manuscritos, reconstituir obras de arte. Fui demovido da idéia pelo argumento de que não há mais nada a tirar do chão. Tudo já teria sido descoberto após as grandes expedições de outros tempos. Isso é falso, claro. Grande parte da humanidade ainda está escondida no subsolo. Recuperá-la, asseguro, não é interessante só para curadores de museus e aficionados em geral. Pode ser fundamental para recobrar nossa habilidade de olhar além do horizonte imediato.

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Se um estoura, estouram todos (ou O Sapo de La Fontaine)

Sapo gordo prestes a estourar (La Fontaine)
É feio dizer “eu avisei” ou “eu já sabia”; mas acontece que, bem, eu avisei. E eu já sabia. Com as ferramentas rudimentares do raciocínio econômico que tinha aprendido a manusear ao final de uma formação quase involuntária, consegui provar por A+B que, não importa em que direção aponte o gráfico de crescimento do PIB brasileiro, a cidade de São Paulo caminhava com destino certo para o colapso definitivo. Isso, perdoe reiterar, é o que eu dizia há coisa de cinco anos. Mas só hoje, ao tentar discutir soluções para o problema do trânsito, a sociedade e seus governantes percebem o óbvio.

Bem que tento conter o impulso de me vangloriar. Mas lembro dos fins-de-tarde nos botecos da Augusta, contemplando a guerra entre carros, motos e ônibus, tomando cerveja gelada enquanto os afoitos profissionais derretiam na tentativa de voltar a casa; lembro dos amigos a rir, já altos, da exposição detalhada de minha teoria. Lembro que eles consideravam impossível duas tendências opostas darem o mesmo resultado. Enfim, só quero lembrar a eles que estava tudo previsto.

Aqueles meus cálculos contemplavam duas possibilidades, ou seja, um Brasil em franco crescimento econômico, digamos, quase um novo milagre; ou um Brasil estagnado, irremediavelmente estagnado, pior ainda do que foi nos anos 80 e 90. Em ambos os casos, a própria concentração pantagruélica de riqueza na terra que um dia teve garoa se encarregaria de sufocá-la. Vejamos, em primeiro lugar, o que aconteceria se o país não conseguisse retomar o crescimento:

À primeira vista, a idéia não parece má para a vida paulistana. Sem crescimento econômico, vendem-se menos carros, constroem-se menos arranha-céus, menos pessoas se espremem nas plataformas do metrô, menos aviões chegam e partem de Congonhas. Olhando assim, não parece terrível, para a cidade de São Paulo, que o país siga estagnado. Acontece que, como de hábito, a coisa não é tão simples. Mesmo estagnado, o país produz novas pessoas; é gente que precisa encontrar trabalho e, como já se viu durante décadas em nosso país, vai atrás dele onde ele está. Conseqüência: o fluxo de gente em desespero, fugindo da miséria, que chegaria em São Paulo em busca de emprego não deixaria de aumentar. A cidade ficaria ainda mais apinhada, mais favelizada, mais desigual e, bem provavelmente, mais violenta. Em duas palavras, ela sufocaria.

E se o país enriquecesse, (sem redistribuir a economia pelo território)? Nesse caso, o crescimento dos investimentos, o aumento da renda, a queda do desemprego, a pressão por novos empreendimentos – em resumo, tudo que acompanha o crescimento econômico vigoroso – tornaria a cidade intransitável em dois segundos. E irrespirável, naturalmente. O horizonte sumiria de vez, as aeronaves se chocariam, tentando pousar no meio da cidade, o barulho de helicópteros ficaria insuportável; no metrô, um grito de “fogo”, “rato” ou “tarado” causaria uma onda de choque que atiraria os cidadãos mais próximos da linha sobre os trilhos eletrificados (já é assim). O caos, que estava evidente para qualquer um com o mínimo senso de civilização, ficaria patente.

Na última semana, li diversos comentários sobre os recordes de engarrafamento em São Paulo. 180 quilômetros, 190, 200, 220. O metrô teria sido uma solução, mas é tarde, não dá tempo. Tampouco bastaria a proposta de pedágio urbano: por falta de opções, os carros pagariam, mas continuariam circulando quase tanto quanto hoje. Há mais de dez anos, li que o prejuízo com o trânsito, só em São Paulo, passava da casa do bilhão e meio de dólares por ano. Hoje, deve ser o triplo disso. Já era uma cidade em que eu não conseguia trabalhar direito, porque já chegava “no serviço” (como se diz) esgotado. Hoje, tremo de lembrar.

A única solução para São Paulo e, de maneira geral, para o Brasil e suas metrópoles, é repensar nossa lógica econômica. Precisamos tomar consciência de nossa dificuldade em romper com a tradição do Convênio de Taubaté. Eis o ponto-chave nefasto de nossa história, que escancarou, em papel passado, nossa escolha pelo latifúndio. Passamos dos cafeicultores aos industriais, depois aos bancos, mas ainda somos os mesmos. Queremos concentrar a lavoura (em sentido metafórico), queremos crescer com a energia que sugamos dos vizinhos, e ainda acreditamos demais em superlativos: de que vale termos o maior estádio, a segunda maior frota de automóveis e terceira de helicópteros, a maior sala de concertos, as maiores cidades? Do outro lado, o país ainda produz miséria, ignorância e barbárie em profusão. Voltando à realidade de São Paulo, temos uma Berrini que vai se verticalizando, enquanto, ao nível do solo, a vida é, há tempos, insuportável. Má escolha.

Sem desconcentrar a economia, integrar o país e desenvolver as regiões, ou seja, o território como um todo, o país e sua maior cidade estão condenados. É o anátema da cobiça. Mas isso é apenas o evidente. São Paulo, primeiro, cresceu como centro industrial e era um modelo para o resto do país; locomotiva, dizia-se. No meio do caminho, o maquinista parece ter exagerado no carvão; achacado pelo espírito do Convênio de Taubaté, depenou das tábuas os demais vagões, para continuar acelerando. A cidade se pôs a concentrar o setor financeiro, o cultural, o varejista, o esportivo, o editorial, o aéreo…

Faz lembrar o sapo da fábula de La Fontaine, que queria ficar do tamanho de um boi. Foi se enchendo de ar, cresceu, cresceu, até que estourou. No caso de Sampa, o maior problema é que tem um país em volta. Se um sapo estoura, estouram todos. Parece que a barriga do bicho já apresenta algumas rachaduras preocupantes. E as perspectivas de crescimento para o PIB brasileiro em 2008 vão além dos 5% de 2007. Não tem metrô, pedágio ou rodízio que sirva de esparadrapo para um sapo tão inchado.

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