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Blood, toil, tears and sweat

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Das outras vezes em que passei a noite em claro desde que vivo em Paris, foi para ver futebol. Ontem, abdiquei de acordar a tempo de ir ao curso de alemão para viver a História in the making. À distância, mas em tempo real, como só nossa era de conexões pode permitir. Olhos inchados, sobre a escrivaninha uma caneca de chá, trêmulo de frio e expectativa, passei horas no portal da CNN, a clicar sobre os mapas dos Estados americanos, vendo a subida dos números, acompanhando os comentários da torcida democrata em blogs e jornais, que, em poucas horas, passaram da apreensão esperançosa a uma torrente incontida de emoção, alívio e orgulho.

Eram quase seis horas da manhã na Europa quando começou o discurso da vitória de Barack Obama, no Grant Park de Chicago. Ohio e Virginia acabavam de revelar sua definitiva mudança de lado. A Flórida estava a caminho. Enquanto esperava a subida ao palanque do presidente eleito, a cobertura da BBC exibia cenas da celebração no Quênia, terra do pai e de muitos meio-irmãos de Barack. Uma multidão cantava e dançava, em meio a declarações de que aquela era uma vitória deles, também, um pouco. E quem haverá de dizer que não era? Comecei a imaginar a expressão de algum redneck do Mississippi que estivesse assistindo àquela cobertura; não sem uma certa alegria sádica, pensei que ele talvez sofresse um enfarte. Pena que só existisse na minha cabeça.

E começou o discurso. O 44o presidente dos Estados Unidos é um pequeno milagre, para não dizer que é um grande milagre. Seu domínio da oratória é raro. Cada movimento de sua cabeça e de suas mãos, cada pausa no meio das frases, cada piadinha que quebra a gravidade da retórica, cada olhar, tudo é tão bem estudado que parece natural. A facilidade de sua expressão é tamanha que faz crer que improvisa. Certa vez, debati com meu pai um discurso de campanha do então recém-escolhido candidato democrata. Ele dizia que não empolgava, eu discordei. Sem falsa modéstia, eu tinha razão. Obama não pode imprimir a suas palavras um tom inflamado, que o associaria mais a Jesse Jackson e a Malcolm X do que a Martin Luther King Jr., cujo famoso discurso do sonho é evocado por dez entre dez comentaristas desta eleição. De quebra, ainda reduziria a percepção de sua distância do belicismo caipira dos republicanos atuais.

Obama, ao falar, inculca no ouvinte os atributos que quer: sereno, culto, preparado, forte, capaz. Sua fala é tão bem controlada que até nos momentos em que deveria perder o controle, não perde. Foi assim quando se referiu a Michelle Obama, “the love (pausa) of my life“, e a sua avó, que faleceu no final da última semana. À parte os agradecimentos, devo dizer que fiquei muito impressionado com a força e a beleza do discurso. Digno de Lincoln, King, evidentemente, e Churchill, também em versão de texto, porque a pronúncia não é nada fácil (se não tiver paciência, pule direto para o último parágrafo, que é o ápice da beleza oratória). Melhor, creio, do que Kennedy. Em política, saber falar é tão importante quanto saber costurar acordos ou administrar a economia. Também nesse aspecto, Obama começa muito bem.

Nem preciso dizer que sou fascinado pela arte da Oratória. Talvez porque eu mesmo falo muito mal: tendo a embaralhar as palavras e perder a atenção do ouvinte. Que dirá de uma multidão… A vantagem de viver no estrangeiro, aliás, é que, com o sotaque, tudo se perdoa. Admiro, até invejo, quem consegue segurar o público só com a força de sua presença e de sua voz. Mais além, a palavra é um dos fenômenos que mais me fascinam. O poder de falar é determinante. É quase irresistível. Apaixona, como se vê pelos olhares vidrados da multidão que segue a voz clara de Obama, como investidores seguem sem pensar as ondas do mercado. A persuasão das belas palavras leva às lágrimas homens feitos, grisalhos, que em teoria viveram o suficiente para não se deixar emocionar e conduzir tão facilmente. Milhares de pessoas abrem mão de sua individualidade para repetir o mantra irresistível da campanha bem-sucedida: “Yes, we can!

A oratória é uma arte perigosa, sim. Basta lembrar de Carlos Lacerda, de Joseph Goebbels, e da seqüência magistral de Júlio César, peça de Shakespeare em que Brutus e Marco Antônio discursam sobre o cadáver ainda quente do líder, e basculam as emoções da multidão romana pela simples potência de suas frases fulminantes. O bardo, com sua visão aguda, não deixa dúvidas: o erro estratégico de Brutus foi deixar o adversário falar; e por último, ainda por cima. O texto dá a entender que a história do Império Romano seria outra sem essa falha.

Mas Obama, como eu já disse, é um milagre. No ponto em que está, já realizou grande parte do que tinha de fazer como símbolo. Imagem do homem negro que supera os obstáculos e consegue unir todas as etnias do país. Encarnação do esclarecimento que esmaga o perigo crescente do obscurantismo. Um bofetão no rosto da tradição racista dos Estados do Sul. Só pelo fato de ter sido eleito, Obama já abalou as estruturas nefastas da desigualdade, embora ela não vá deixar de existir, e forte, mesmo que ele seja reeleito e conduza um governo impecável nos próximos oito anos. Obama já chegou mais longe que o doutor King. E já chegou mais longe que Bobby Kennedy, branco como a neve, mas assassinado sem ter a chance de vencer as primárias democratas.

Porém, há que entender-se que o Barack Hussein Obama que conhecemos já é uma página da história. Acabou. Daqui por diante, teremos um outro Barack Hussein Obama. Um presidente não é um candidato. Não há um inimigo claro, uma chapa John McCain e Sarah Palin, que não representa absolutamente nada em termos governamentais e administrativos, mas encarna com perfeição a política do atraso, a manipulação de emoções patrióticas belicistas, a mentira de um misticismo chinfrim que se faz passar por religião, a estupidez agressiva travestida de honestidade simplória, que obteve dos eleitores do país mais rico do mundo a bagatela de cinqüenta e cinco milhões de votos. Eis o número de americanos que saíram de casa para escolher o absoluto vazio.

Isso já ficou para trás. Obama não é mais um antípoda dessa gente, ele agora é seu líder. Escolherá um ministério, enfrentará uma crise, tomará decisões difíceis. Negociará acordos comerciais com outros países, inclusive o Brasil, e será duro nas negociações, como espera seu eleitor. Será criticado por jornalistas e zombado por comediantes, como todos os presidentes de todos os países, salvo, no máximo, as piores ditaduras. Ele deixará de incorporar a esperança. Passará a representar um país. Sua oratória será fundamental nessa nova etapa de recessão e guerra, mas não será tudo. A grande, a verdadeira vitória que o novo presidente americano pode obter é outra:

Quando criança, eu vivia num subúrbio de Washington, D.C., e na minha turma da escola havia um único garotinho negro, de cujo nome já me esqueci (como, aliás, de todos os outros coleguinhas daquele tempo). Em várias aulas, a adorável professorinha, Ms. Flannery (engraçado, do nome dela, não esqueci!), se esforçava por nos fazer entender a importância da igualdade e o absurdo da discriminação racial. Certo dia, recebemos como dever de casa inventar uma história que envolvesse outros alunos da turma. Na que escrevi, todos os meus amigos eram abduzidos por alguma força inexplicável e se transformavam em pessoas más, muito cruéis. Eu seria o único a resistir e teria de salvar todos os demais. Um verdadeiro herói americano, digamos assim. Mas mudei o enredo. Achei, veja só, que estaria agindo como um racista se incluísse o colega negro na lista dos maus. No texto final, então, nós dois lutávamos lado a lado pelo triunfo do Bem. Ninguém jamais soube por que fiz a alteração. Meu colega ficou lisonjeado. Se fosse no Brasil, tenho certeza de que passariam a me olhar torto, com o tradicional “sei não”…

Contei esse episódio para chegar à vitória que Obama ainda precisa conquistar, nos quatro ou oito anos em que ocupará a Casa Branca. Ele terá triunfado se ações ingênuas como a minha se tornarem obsoletas. Se ninguém comentar uma decisão do presidente fazendo menção à sua cor. Se não pegarem mais leve, nem mais pesado, porque ele “é negro”. Se concordâncias e discordâncias passarem por cima do fato, como se fosse um detalhe. Ironicamente, o maior feito de Obama terá sido transformar sua grande diferença em qualquer coisa de corriqueiro.

É claro que não vai acontecer. Quinhentos anos de discriminação racial, escravidão, segregação, preconceito, não vão ser apagados por um ou dois mandatos. Mas já terá sido um ganho enorme se, no mundo inteiro, pessoas que sempre enxergaram a si próprias como inferiores por causa de sua pele puderem ter espaço para se impor como cidadãos plenos. Daqui por diante, todas as crianças, de todas as cores e etnias, do mundo inteiro, vão nascer e crescer com a imagem de um presidente americano que não é branco, não é W.A.S.P (OK, Kennedy era católico). Para essas crianças, a idéia de que o negro possa ser inferior ao branco não fará sentido. Eis a vitória que Obama terá de cavar enquanto estiver trabalhando no Salão Oval.

Estou convicto de que a madrugada fria que passei diante do computador e da televisão é algo que vou contar para meus netos. Valeu a pena.

PS: Sobre as eleições propriamente ditas, em português, recomendo os óbvios Biscoito Fino e Pedro Dória, além do excelente blog de Argemiro Ferreira. Para algumas frases bem escolhidas e traduzidas para nossa última flor do Lácio, recorram ao Animot. Para quem gosta de sarcasmo irrefreado, O Hermenauta.

Padrão
vida

Oito coisas e eu defunto

Cachoeira da Fumaça, Chapada Diamantina, Bahia
Enquanto estive fora, recebi um convite para um meme vindo lá do Ágora com Dazibao no Meio, do carioca Ricardo Cabral (que assina Ricardo C., talvez para esconder o parentesco com o governador. Será?). Ricardo pensa mal de mim. Acha que não vou aceitar o convite porque sou muito cabeça. Mas ele diz isso porque não me conhece. Se conhecesse, saberia que a parte do corpo que mais uso, aliás abuso mesmo, é o fígado.

Mas o blogueiro Cabral tem lá sua razão. Já fingi não ter visto uma série de memes (falando nisso, ô palavrinha detestável! Na sua aplicação bloguística, trucida o sentido que Dawkins quis lhe dar ao cunhá-la…). Mas se o fiz, foi porque aqueles eram memes “ruins”: “cinco discos que você adora”, “dez pessoas que deveriam ser empaladas” e outras listinhas que não interessam a ninguém. O meme do Cabral é um meme “bom”: apesar de girar em torno de um número, coisa inevitável em nossa época de planilhas, esse é um convite que dá o que pensar. Em outras palavras, é um convite ao diálogo entre blogueiros, entre leitores, entre blogueiro e leitor.

Chega de nariz-de-cera, vamos ao meme: seu tema são as oito coisas que tenho de fazer antes de morrer. Mas, por favor, blogueiro que quiser dar seguimento ao meme: não é uma lista banal com oito itens: “conhecer o Nepal”, “provar LSD, “ouvir Jimmy Page ao vivo”. A idéia é falar sobre o assunto. Não é trocar dados, é trocar humanidade.

Acontece que esse papo de morte é um pouco perturbador. Penso na questão e me vêm à mente várias coisas que são feitas depois dela: velório, enterro, cremação, obituário, missa de sétimo dia. Mas isso, são outras pessoas que têm de fazer pelo defunto. Mesmo que ele deixe instruções por escrito, não terá forças de obrigar os seus a segui-las. Ou seja, no meu caso, se quiserem me velar, vão velar, com a desculpa de se despedir de mim. Honestamente, tendo a crer que se quisessem se despedir, viriam abraçar meu cadáver. Me deixar deitado entre flores e moscas não é despedida, é tortura. Uma tortura tradicional, contra uma vítima indefesa e que jamais vai abrir o bico, mas ainda assim, tortura. Não estou dizendo que todas as tradições sejam más, mas essa aí me incomoda.

Sei que estou fugindo do assunto, mas não faz mal: fugir do assunto é uma delícia, gosto muito, Syd Field não manda neste blog. Agora, retorno ao mundo do meme. Oito coisas a fazer antes de morrer. Mas, puxa, é tanta coisa que quero fazer, e são todas enquanto estiver vivo! Mas só posso escolher oito, isto aqui não é uma autobiografia por antecipação. Então resolvi colocar um pouco de pimenta no assunto: vou partir de um cenário bastante assustador, mas útil. Imagino um oncologista insensível que me anuncie, na lata, meus últimos seis meses de vida. Mas é uma doença rara: meio ano vivendo normalmente e, de uma hora para outra, cair duro. Não sei como eu receberia essa notícia na vida real. Mas, nesta minha suposição, eu seria frio como Friedman: seis meses para fazer oito coisas, é isso e fim de papo. E finalmente me sinto à vontade para atacar o tema do meme.

Por mais cético que eu seja, principalmente em assuntos de vida após a morte, não consigo jogar uma banana definitiva para a posteridade. Engraçado, tenho pouca esperança no hoje, mas, bem, aos do futuro, temos de antecipar algum crédito. E creio que, para evitar a terrível desgraça de formar uma próxima geração tão medíocre quanto a atual, é preciso bagunçar as cabeças desde já; as dos bebezinhos e até as nossas. Sendo assim, sabedor da minha morte próxima, eu redigiria umas poucas páginas de uma obra cujo propósito seria resultar inacabada. E começaria assim: “Sei que as n (digamos… 10) teses que vou apresentar são horrendamente polêmicas e parecem atentar contra o bom senso e qualquer tipo de lógica. Mas estou certo de que a argumentação que as sustenta nos capítulos seguintes será suficientemente rigorosa e bem construída, e há de demonstrar com clareza a verdade do que estará exposto.” Em seguida, mais alguns parágrafos recheados de auto-elogio, mas muito bem disfarçado, para seduzir os leitores mais refratários sem passar recibo de afetação. Finalmente, as n teses (quantas eram? Dez?), enumeradas uma embaixo da outra, no melhor estilo analítico anglo-saxão. Por último, um “vamos então aos argumentos”. E acaba aí, porque o autor morreu sem poder concluir sua obra-prima, o coitado. Com isso, na minha fantasia, por gerações a fio as pessoas se ocupariam concordando e discordando, construindo provas e refutações, e teriam de sair da letargia intelectual. É presunçoso, claro, mas o cenário é meu, faço com ele o que quiser.

A segunda idéia parece coisa de gente boazinha, mas não é. Sem mais rodeios: eu devolveria meu apartamento e distribuiria minhas posses. Não é questão de ser franciscano, nada disso. “Liquidez é liberdade”. Eis aí uma divisa interessante… Quem tem posses está preso a elas. Você não é você: você é uma soma de você com sua casa, seus móveis, seus livros e discos, seu carro e suas contas a pagar. Mas quem precisa disso quando sabe que vai morrer? Com a ampulheta escorrendo, não quero passar o tempo na fila do banco.

Muito bem, liberdade conquistada, restaria fazer o óbvio: viajar bastante e torrar a tal da liquidez passeando por aí. Vamos dizer, pela América Latina, já que o mundo inteiro é demais para seis meses. Pode parecer um princípio um pouco guevaresco, talvez mesmo bolivariano, mas aí está uma leitura errada do meu projeto: quem vai morrer não tem mais tempo de revolucionar nada. Na verdade, é uma espécie de Libertadores pessoal; falando nisso, um certo número de estádios não está fora da lista de afazeres. Dar um olá para os vizinhos, pense comigo, não seria má idéia. Nada mal, terminar a vida entre os menonitas do Paraguai, os incas do Peru, folha de Coca e tudo, um daiquiri e um puro legítimo ao som de Compay numa praia do Caribe. Enfim, um pouco de prazer e cultura não fazem mal a ninguém.

Mas nem só de hedonismo vivem os moribundos, é claro. E os deslocamentos cansam, mais cedo ou mais tarde. Já mencionei a questão da posteridade, não? Pois bem: enquanto estamos vivos, deixamos sempre, talvez por preguiça, ou então por crueldade, ou ainda orgulho, uma infinidade de arestas por aparar. Muitas delas fáceis, rusgas desnecessárias, que não precisariam ter durado mais do que alguns instantes. Mas nós, em nossa estupidez perfeitamente natural, deixamos que cresçam até nos sufocar. Sou tão orgulhoso quanto qualquer um e não estou particularmente interessado em deixar um rastro de paz e alegria como legado, mas suponho que a proximidade da morte seja algo que amolece o coração. Para amainar os ódios e rancores, inventarei versões para todos os fatos dolorosos do passado, de forma a deixar em boa situação o antagonista. Mesmo que eu esteja seguro de ter razão, morto, ela não me fará nenhum bem. O que custa aliviar a consciência alheia? Puxando pela memória, só consigo pensar em duas exceções para este terceiro ponto. Gente que, por mim, pode carregar a culpa para a tumba (a deles, não a minha).

Quebrei a cabeça feito um louco e só agora cheguei à metade dos itens que quer o meme do Cabral. Oito é um número alto… puxa. Mas é preciso louvar o criador da série por não ter escolhido um daqueles números de sempre: três… cinco… sete… dez… A gente se acostuma a enquadrar o pensamento nas categorias mais banais e desnecessárias. Uma atitude simples, como essa de escapar aos algarismos cabalísticos, já é heróica. Um verdadeiro exemplo para o resto da nossa existência. O lado um pouco desconfortável é ter de inventar mais quatro coisas para fazer nos últimos meses da vida.

E, como acho que já soltei demais as rédeas da bondade (fui franciscano, fui agregador…), me sinto no direito de abrir espaço para a minha maldade. Quer dizer, maldade bem entre aspas. Trata-se muito mais de subverter algumas aberrações que se cristalizaram no inconsciente coletivo de todo mundo e, na seqüência, foram atacar a consciência individual de cada um, a ponto de muita gente desenvolver justificativas de muita complexidade para crenças que, cá entre nós, são umas enormes tolices. A essa altura, com só mais dois meses de vida a viver, sem precisar fazer planos para meu próprio futuro, sei que vou estar livre para me dedicar à atividade cruel e deliciosa de derrubar, ou pelo menos tentar derrubar, um certo número de ícones que me sobem à cabeça. Isso que venho de dizer pode parecer enigmático, e a idéia é essa mesmo. Estamos tratando de um futuro hipotético, em que não me desviaria de nada mais importante o trabalho de apontar charlatães, escarnecer de conceitos, sabotar monumentos e assim por diante. Não pense, por favor, que sem a perspectiva da morte eu seja um conformista, preguiçoso conservador. Simplesmente sou obrigado a expor meus argumentos com parcimônia e prudência, tentando trazer as opiniões e espíritos para o meu lado sem assustá-los e pô-los em fuga, conforme ensinou o velho Sun Tzu. Se hoje preciso ser sedicioso o quanto der, à beira da morte poderei escancarar meus propósitos mais disfarçados.

Muito bem, eis cinco coisas. A sexta será um escorregão na fraqueza. Nosso mundo nos oferece todo tipo de opções imediatas que, se somos preocupados com o longo prazo, evitamos, recusamos, tentamos ao máximo escapar. Longo prazo? Não para alguém que já prepara as malas para o encontro com a morte. Conclusão: limites para quê? Nas poucas semanas em que meu sangue ainda circularia, teria de aceitar ser transformado em laboratório. E se acaso, certa vez, eu passasse dos limites, problema nenhum: o pior que poderia me acontecer seria a morte. Mas, convenhamos, isso não representaria nada em termos de trade-off. Ainda algum cretino poderia me acusar de eutanásia, mas que então me denunciasse e mandasse atirar no xadrez meu cadáver. Irônico, não? Pergunte a algum cronista sóbrio como quer terminar a vida e ele responderá: doidão!

Muito bem, das oito coisas que me pediu o sobrinho do governador, faltam só duas. Para me livrar da tarefa de maneira cretina, mas eficaz, eu poderia dizer, não inteiramente desprovido de razão, que a última seria morrer, e a penúltima, preparar a morte. Se eu fizesse isso, quem chegou tão longe na leitura me lincharia com certeza. Mas o que vou fazer, afinal, não chega a ser muito diferente. Minha sétima atitude pré-“bater as botas”, a ser tomada poucos dias antes da hora fatídica, seria voltar ao médico, fazer novos exames e me certificar de que é isso mesmo, ele tinha razão, mais alguns dias e acabou para mim. Imagine o pandemônio que seria descobrir uma cura milagrosa à beira do fim, depois de me desfazer dos meus bens, prometer argumentos que não posso expor, dissipar os últimos fundos numa viagem interminável, oferecer em presente a meus desafetos uma consciência tranqüila imerecida, fazer novos inimigos lá onde só havia quietude e estragar o que restava do meu organismo condenado?

Nessa hora, talvez eu preferisse ouvir do doutor a confirmação da morte próxima. Ainda assim, muito me atrai a idéia de recomeçar a vida em bases inteiramente diferentes. Para além das implicações filosóficas que representaria uma experiência radical desse jeito, seria, na prática, um sopro de vida tão forte que só mesmo a morte sabe dar. Mas não posso aventurar essa hipótese neste texto: na falta de seu elemento unificador, ou seja, a própria morte, tudo que venho escrevendo perderia inteiramente o sentido. Conclusão: vou ao médico, apreensivo, mas ele balança a cabeça e diz, se fazendo de desolado: “É… isso mesmo. Seu quadro não deixa dúvidas. Dois dias e já era”. Deixo o consultório num misto de apreensão e determinação. Sei que, num dia como esse, eu suaria frio e o mundo de minha visão estaria borrado, como se eu fosse desfalecer a qualquer instante. Eu tentaria me agarrar à consciência e ao sangue frio, embora, nas veias, o sangue de verdade estivesse a um grau da ebulição. Eu tentaria me concentrar nos dois dias, não como o que me separa do aniquilamento, o nada definitivo, mas como o prazo que me concedeu a enfermidade para cumprir minha última tarefa, a já famigerada “oitava coisa”…

Dois dias é tempo suficiente para chegar à Cachoeira da Fumaça, Bahia (salve, meu pai!). Mas antes de terminar esta saga dos meus últimos dias, que já nem agüento mais escrever, e imagino que você também não suporte mais ler, preciso alertar que, como todo mundo, sou contra o suicídio. Conforme a nosso código moral, considero-o crime mais hediondo do que a covardia e a tirania. Tirar a própria vida não é justificado nem quando as convicções de nosso inconsciente, ou a mera lógica, parecem justificá-lo. Antes definhar, passar as últimas horas na dependência da morfina e ser reduzido à aparência de uma múmia anoréxica a cometer o supremo absurdo de abandonar este mundo num ato de livre arbítrio.

Por outro lado, também me parece que a morte é o momento mais importante de uma vida. É uma espécie de fecit, poioumenós, de parla, sei lá eu. Sem a morte, toda vida é uma história incompleta. Não soa injusto que passemos toda a vida buscando a dignidade, o estilo, e na hora da morte aceitemos qualquer coisa, mesmo uma bobagem como ter um piripaque no meio da rua? Acho irônico. Os bravos guerreiros do passado, afinal, não eram assim tão irracionais, ao preferir perecer no campo de batalha, jovens, mil vezes a fenecer enfraquecidos num leito de morte mal-cheiroso. É uma estranha dicotomia. De um lado, o pecaminoso; de outro, o indigno.

Eis onde entra a cachoeira da fumaça: na tentativa de conciliar o que duas partes tão diferentes de mim consideram mais apropriado. É mais do que simplesmente encontrar a morte no meio de uma beleza fantástica como a da Chapada Diamantina. É incorporar a beleza à morte de uma maneira que mesmo em vida não seria possível. Quando estive no alto desse despenhadeiro, anos atrás, veio sem ser chamado um pensamento geométrico. Tanto espaço, tanto ar, entre as escarpas em que se agarram arbustos cegos! Uma multidão de pontos de vista ocupados só com partículas de água invisíveis, tão insidiosamente densas que desencorajam até o vôo turístico dos pássaros. Um volume de ar sem olhos. Um crime.

Não digo que seja sem sentido. É que não consigo me livrar de uma certa tendência hegeliana a achar que o espírito precisa superar as mistificações da pura natureza, virgem, violenta, perigosa. Hegel poderia até estar certo, não fosse o fato de que o espírito pode muito pouco quando o corpo é tomado de vertigem. Seguindo as instruções dos guias, o espírito só pode se aproximar do abismo para espiar a maravilha se for se arrastando, o ventre contra a pedra fria e áspera. Uma humilhação para o espírito, talvez? Creio que não chegue a tanto. Ainda é o espírito que se dispõe a pôr-se na horizontal para um momento de concentração que aos irracionais não é possível. De pé, nem o mais inabalável dos brutos conseguiria evitar a tonteira e a queda. Então o espírito saudável, o que faz? Não tem pudores de meter-se de joelhos em busca da beleza que cobiça.

Entre as oito coisas a fazer antes de morrer, faço questão de incluir a própria morte. Conhecendo o destino inevitável, adquirimos um controle tão magnífico sobre a própria vida! Quantas vezes não sabotamos nossas volições mais brilhantes por medo da cortina que nos esconde o futuro e, no futuro, a idéia vaga que nutrimos da morte, única face assegurada da existência! Será que o melhor exercício do bem viver não seria convencer-se de que a morte está próxima, muito próxima? Deixo a questão aos autores de auto-ajuda. Quanto a mim, imagino algumas despedidas, dois ou três goles de cachaça para dar coragem, uma longa inspiração profunda de ar puro, impregnado de pólen e, quando o guia não estivesse olhando e não pudesse me impedir, o salto, tão distante quanto desse, naquele vazio cheio de atmosfera e paisagem. Seria uma queda louca, alucinante, infelizmente curta. Eu veria coisas que ninguém viu, de uma maneira que ninguém imaginou.

E aí, terminaria tudo. O ideal seria ter a crise que de qualquer jeito me mataria, o mais próximo possível do fim do percurso. Que frustrante, não, tombar logo depois do impulso? Minha queda pela Chapada seria como a de um saco de beterrabas. Mas o mais provável seria nem sofrer o ataque: morrer quando o corpo desse com o chão, pesado e moído. Aí sim, podemos dizer que houve um suicídio, uma eutanásia, um ato ilícito, um horror. Mas se forem buscar meus restos, teriam dificuldade em determinar o momento do sinistro, então seriam obrigados a me sepultar direitinho, de preferência por ali mesmo. A morte pela queda, dizem, é instantânea. A vítima não sente nada. Os ossos são feitos em pedaços de repente e acabou. É um pensamento terrível, mas nem tanto para o morto ele mesmo. Afinal, quando minha carne estiver espalhada, molenga, sobre as rochas cobertas de limo aos pés da cachoeira, que me importarão meus ossos? Não haverá mais ninguém ali para se importar, eis uma subjetividade a ser riscada da agenda.

Fim deste texto desordenado, cheio de digressões, quase sem unidade, às vezes enfadonho, às vezes simplesmente tolo. A rigor, eu deveria ter vergonha de submeter o distinto internauta a uma provação dessas. Mas estou tranqüilo, primeiro porque sei que o internauta não se submete a nada e eu não tenho o poder de ofendê-lo; depois, porque me diverti pensando todas essas tolices sobre minha própria morte. Pois é, isso me basta. Agora, para obedecer às prescrições do Cabral, sobrinho do governador, deixo aqui minhas indicações:

Anny
Diego
Marcão
Naty
Nelson
Olívia
Rafael
Sandro

Padrão
arte, Clara Nunes, crônica, música, prosa

A vida emoldurada

Torres Azuis Bizarras Noite San Giminiano
Ia andando pela rua dos fundos, atrás de um qualquer coisa que pudesse passar por jantar. Descia uma chuva de alfinete, vagarosa e desagradável. Ainda não era bem noite, mas já fazia escuro e parecia que a cidade se escondia. Todo mundo foge da temperatura que cai bruscamente; em vez de visitar os amigos ou a família, vale mais terminar o domingo com um filme da televisão. No meu caso, foi a necessidade que deu a última palavra. Comer é preciso. Saí. Para me proteger da água e das lâminas do ar, a manta grossa e, principalmente, a música que os fones de ouvido sussurravam.

Quando fiz a curva e embiquei pela rua maior, a faixa mudou. Os acordes em staccato de um cavaco e a voz de Clara Nunes fazendo um aperto de saudade no seu tamborim: Tristeza e Pé no Chão. No mesmo instante, deu-se alguma coisa. Fui invadido por um desconforto que não podia explicar, como se minha cabeça entrasse em conflito consigo mesma. Ou melhor, como se meu corpo visse o mundo à sua frente, mas se reconhecesse em outro canto, outro plano, outro universo. Estranha sensação, caminhar tremendo de frio por uma rua deserta e brilhosa, com tantãs e ganzás como trilha sonora, gingando na celebração de uma voz divina.

Culpa do aparelhinho que me atirava a música direto nos tímpanos. Quem segue seus caminhos ao som da pura realidade, buzinas, berros e motores desregulados, talvez não me entenda. Mas, palavra, é assim. Quando inventaram o walkman, o diskman, o celular que capta FM, o toca-fitas de carro e o famigerado iPod, inventaram ao mesmo tempo a vida com trilha sonora. Para muita gente, o próprio fato de existir passou a ser pontuado pelas emoções que melodias transmitem e batidas impõem.

Tanta gente no metrô com cabos pendurados, caindo pelos lados do pescoço como madeixas de plástico! São garotos, não têm a habilidade de controlar o volume. Um vagão inteiro submetido ao bate-estaca. Seus olhares se perdem no desprezo pelo universo, nem consigo supor que imagem podem ter do mundo, da cidade, das pessoas, enquadrados pela batida agressiva das pistas de dança. Não pode ser a mesma face que eu vejo, por trás de minha música diferente.

Meu caso começou como fuga. Tinha pânico dos vendilhões da Paulista, precisava de um pretexto para não escutar suas vozes, não precisar grunhir um “não” a cada passo. Certo dia, captei a Rádio Cultura pelo celular; examinar os rostos suados e sérios ao som do Stabat Mater de Pergolesi me incutiu a certeza de que todos à minha volta eram infelizes. Compreendi a profunda desgraça de todo aquele ambiente e quis escapar. Claro, a culpa não cabe inteira à música, mas ela tem parte.

Onde foi que li? Um ensaio sobre como mudou nossa relação com a música no último século. Pode ter sido Adorno, o do contra, ou Nikolaus Harnoncourt, ou qualquer outro. Primeiro foi o fonógrafo, que deu à humanidade o controle sobre as harmonias. Qualquer caixinha poderia tocar como uma orquestra. Depois, o rádio espalhou pelo mundo as mensagens sonoras determinadas por alguém em algum lugar, seja lá quem for. Pois era um certo encanto que se quebrava. Tirar melodias de um objeto inanimado perdeu seu verniz de mágica. A música, daí por diante, seria outra.

O golpe de misericórdia foi dado, com certeza, pelo cinema falado. “O grande culpado da transformação”, já dizia Noel Rosa, filósofo malgré soi. Na tela, a música enquadrou a vida real. O herói enlaça a mocinha ao som dos violinos, o assassino dá suas estocadas com um fundo de trítonos secos. O público se deixa envolver. O público somos nós. Nós acreditamos. E transferimos a necessidade de trilha sonora para nossa própria existência. Sem querer.

Daí meu estranhamento, na noite de domingo, enfrentando o frio e a chuva embalado pelo surdo, a cuíca e a voz de Clara Nunes. A máquina que eu trazia no bolso não entende nada. Não sabe escolher o fundo que se adequa por natureza a cada ocasião. Era momento para o quase silêncio de Eric Satie, as lamentações de Robert Johnson ou a cantilena da quinta Bachiana Brasileira de Villa-Lobos. Lágrimas na avenida, um desfile marcado para a quarta-feira? Impossível.

Só fui capaz de retornar ao corpo quando abandonei toda pretensão a uma trilha sonora. O mundo se recompôs, terrível como é: um silêncio de cripta gótica, motores à distância, o eterno chiado urbano que nunca sei de onde vem. Crueza e crueldade do ar que não vibra segundo o acordo das vozes. O ar desobediente que existe além dos meus fones.

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Panela de pressão apitando em desespero

Guerre
A Europa carrega nas costas o peso dos crimes da História; senão todos, pelo menos quase. Isto pode ser verificado em todas as catedrais e castelos, bulevares e cafés. A beleza das árvores no outono pode emocionar, mas sussurra constantemente no ouvido a memória do colonialismo, do fascismo e da Inquisição. O Louvre, além da Vênus e da Gioconda, ainda tem nas paredes, mesmo fenecidas, as manchas de sangue da noite de São Bartolomeu. O Duomo de Florença é no fundo um compêndio da ganância dos Medici, assim como a Praça de São Pedro reflete a história para lá de profana do papado. E o museu do Prado, para não esquecer a Península Ibérica, acima de todas as suas telas de Velásquez e El Greco tem penduradas as vítimas hereges e judaicas, como os espectros que rondam o Tiergarten de Berlim.

Mesmo os crimes cometidos na África, na América e na Ásia são reflexo da crueldade dos europeus, esses seres pálidos de terras frias e escuras, que venderam, geração após geração, suas almas em troca de ouro e glória. Os crimes dos americanos no México, no Caribe, na Coréia, no Vietnã, no Iraque, também ecoam, ainda hoje, a sede de sangue dos conquistadores europeus. É a ação do chamado Ocidente (um conceito obscuro capaz de incluir todos os habitantes de países ricos que não têm pele escura ou olho puxado).

Toda essa sanha destrutiva custou caro ao continente. Eles chegaram à beira do abismo mais de uma vez, a última delas há pouco mais de meio século. Perderam grande parte de sua riqueza, suas colônias, sua predominância internacional. Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Áustria, Portugal. Todos eles, países que chegaram a se considerar donos de um belo naco do mundo – ou de todo ele. Centros de cultura, comércio e poder. Todos submetidos ao jugo de sua ex-colônia norte-americana e, por algum tempo, a seu antigo patinho feio, a Rússia.

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O que restou do banho de sangue foi um continente fascinante, pelo que tem de cruel e pelo que tem de admirável. Ao contrário do que disse o Otto Lara Resende (ou será que foi o Nelson Rodrigues, se fazendo passar pelo Otto? Isso acontecia…), não é uma burrice aparelhada de museus, mas o museu vivo das burrices e dos brilhantismos que nem sempre se distinguem claramente. É o continente que inventou o humanismo com as ferramentas do Terror e da retórica esnobe. Foi a primeira parte do planeta a romper aristocraticamente com a aristocracia, a disseminar tiranicamente os valores democráticos, a abrir a sociedade às mulheres, sem abrir mão do patriarcalismo. Neste rabicho da Eurásia surgiu a idéia de que todo indivíduo tem direito à educação: os ricos e os pobres, os brancos e os imigrantes; educados, os trabalhadores puderam render melhor nos momentos da espoliação. A Europa investiu mais do que ninguém em transporte de massa, que leva seus subjugados para subúrbios desumanos como os nossos – bom, talvez não como os nossos.

A amplitude das contradições chega a ser fantástica. Se for para comparar com o Brasil, eu diria que nossas contradições são mais comportadas, reproduzindo na ponta dominada uma imagem de tamanha incompatibilidade. Note-se a civilidade, e quão brutal essa civilidade pode ser: quando há um problema, e Deus sabe que há muitos, eles sentam, discutem e resolvem como der. Nem que isso envolva ameaças de aniquilação e fantasmas de guerras passadas. A cultura européia, com toda sua arrogância e xenofobia, e talvez até mesmo por causa dela, é mais aberta do que a nossa. Como pode? Apesar de uma infinidade de atitudes de segregação e desrespeito que se vêem quotidianamente nas ruas de Paris, ainda assim os franceses se dedicam a iniciativas de aproximação com outras culturas, religiões, civilizações, bem mais que os brasileiros.

No Brasil, quando se discute qualquer assunto, a comparação é inevitável: “no Brasil é X, na Europa (ou nos EUA), é Y”. Já o europeu discute assim: “Aqui X, no Egito é Y, em Madagascar, Z, no Japão W, no México…”. O mais notável é que na verdade eles estudam geografia mais ou menos como nós, mas não acham que seja perda de tempo. É um exercício pelo qual reafirmam para si próprios, e para os periféricos deste mundo, sua superioridade moral (já que a econômica e a bélica, não dá mais). Assim, absorvem aquilo que é útil para eles e elevam à categoria de descrição fiel do universo. É autoritário e, ao mesmo tempo, aberto.

Mesmo assim, parece que o momento atual está fazendo transbordar isso tudo. Devo dizer que estou assustado, sem querer soar sensacionalista. Há um ódio latente que é difícil não notar, e que tem justificado um desejo de retornar a narrativas bem mais fechadas (e tão autoritárias quanto). Aqui há olhares de desprezo, acolá de agressividade. De um lado há sobrenomes tradicionais da Provença ou de Champagne, do outro filhos do Maghreb e da Costa do Marfim. Houve por algum tempo uma ilusão de integração e assimilação que exala uma certa beleza. Por sinal, chegou a ser verdade alguns casos. Por exemplo, durante um curso da faculdade, estudantes de origem islâmica debatem com o professor no tom mais aberto e intelectualmente honesto possível.

Fora da sala de aula, isso não acontece dessa maneira. Os grupos islâmicos estão se tornando mais herméticos e muito se fala em ressentimento. Há famílias que recusam a entrada de médicos e bombeiros em seus enclaves, sentindo-os como se fossem imposição de um império colonial. Não admitem estudantes não-islâmicos em suas escolas, e chegam a expulsar famílias que colocam seus filhos em escolas públicas, e portanto laicas. Afastam-se de todo contato com o país em torno. A descrição é desagradável, mas o mais desagradável é perceber que por muito tempo não acontecia assim… e agora está acontecendo.

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A explicação pode estar no lado inverso, e é por isso que ele me assusta mais. É mais ou menos normal que populações imigrantes procurem buscar segurança no próprio seio (claro, com um certo bom senso), principalmente quando são grupos excluídos socialmente e economicamente desfavorecidos. O que observo, porém, é um recrudescimento do ódio nos europeus, esses mesmos que há algumas gerações desenvolveram os conceitos de tolerância, humanismo, igualdade e assim por diante, pincelados acima. As comunidades muçulmanas se fecham sobre si próprias e os próprios europeus se fecham também, não só para os muçulmanos, mas para os próprios conceitos que formam o, digamos assim, lado mais admirável dessas contradições européias. Andam ressuscitando ideais de pureza e violência que se acreditavam sepultados e superados. A presença de um “outro”, na verdade um semi-outro, já que sua história é intimamente vinculada à história dos europeus nos últimos séculos, justifica a a firmação de uma identidade que também é mutilada e grosseira. Nada de bom pode sair daí.

Vê-se a tensão em cada canto, como uma panela de pressão que apita em desespero. Muçulmanas com véus tão apertados quanto possam, coloridos, de frente para moçoilas de mini-saia e maquiagem, que as encaram com ar de desdém. Rapazes de barba e pele escura olhando como quem quer briga para colegas pálidos que se barbeiam provavelmente duas vezes por dia, e não retornam o olhar de maneira menos agressiva. As posturas estão cada vez mais demarcadas, distantes, herméticas. Os cursos universitários de cultura islâmica têm pouquíssimos interessados, a grande maioria de estudantes muçulmanos, quase nenhum não-islâmicom querendo se aprofundar em outras formas de pensar e enxergar o mundo. Quando o provável próximo presidente chama uma parcela da população de escória, não é à toa. Não há diálogo, senão marginalmente, entre pessoas “de boa vontade” mas um pouco sonhadoras.

Não há como deixar de ver um certo risco de uma guerra civil, quiçá religiosa, na Europa. Nada, claro, como o que se passa no Brasil. Não é questão de ser assaltado na frente de um policial que finge nada ver. É algo um pouco mais, digamos, sério. Seria a concretização do “choque de civilizações” de Samuel Huntington? Talvez, mas o que se choca são, na verdade, vizinhos que têm o mesmo passaporte, votam nos mesmos candidatos, usam a mesma linha de metrô.

Os valores que salvaram o continente, infelizmente, não são tão fortes quanto chegaram a se afirmar (e não poderiam se firmar sem afirmar-se como tais, talvez até mesmo sabendo que era blefe). Não será de estranhar se esses antigos monumentos forem testemunhas de mais um banho de sangue. Talvez o que falte a esses valores seja nutrir-se da própria dialética e entender o quanto há de contraditório neles. Afinal, se havia o ideal de uma integração, que integração é essa que necessariamente apaga quem vem a se integrar? Se de fato a imigração enriquece a cultura que a recebe, qual é o nome que se dá a um enriquecimento que relega a subúrbios esquecidos a fonte dessa mesma riqueza?

Há uma falha trágica, pelo visto, na própria integração, e que vem completar as falhas dramáticas do integrismo dos brancos e do comunitarismo dos árabes. Muito de criação poderia passar no meio desses buracos, desses vórtices supersaturados de energia. Mas caminhando pela cidade e por alguns de seus subúrbios, conversando com jovens e velhos, franceses “de souche” e filhos de magrebinos, o termo que flutua por entre as frases, quando o interlocutor faz a pausa para retomar a respiração, é ressentimento, como o apito da panela de pressão.

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