Não espero conquistar a atenção de muita gente, mas insisto em sair da toca com algumas palavras de bom senso, já pedindo desculpas por me apresentar como a voz do bom senso. O que segue é uma exortação à militância tucana, àqueles pequenos pássaros de escassa penugem que ainda piam no ninho, desejosos de voltar ao poder e colocar em prática as ideias (isto é, as sobreviventes) de um partido fundado em meados de 1988 sob a égide da democracia e da modernização. Poderia ser um apelo a todos os níveis do partido, mas temo que os tucanos de alta plumagem, os cardeais, já não tenham volta. Então vou me dirigir somente à base. Continuar lendo
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A “sensação de segurança” é um engodo
O penúltimo texto tratava de um dos aspectos mais cansativos e artificiais da forma marqueteira que assumiu a política de uns tempos para cá. (Quanto tempo? Dez, vinte anos? Difícil estabelecer um início preciso para um processo tão paulatino…) Embora o tema a perpasse sem descanso, não me refiro à política enquanto disputa de poder, embora esse aspecto tenha recoberto o termo quase inteiramente no debate público, mas ao verdadeiro quotidiano político, o esforço constante de viver em comunidade. Trata-se da questão da segurança, martelada em todos os telejornais, muitos filmes, conversas no barbeiro e no táxi, e repetida inclementemente por candidatos a qualquer coisa em seus discursos temerários.
Poderia ser uma particularidade brasileira. Afinal, nossas maiores cidades são território livre para assaltos, sequestros-relâmpago e o diabo a quatro, quando não estão em franca guerra civil, sem contar os acordos de bastidores entre governos e grupos criminosos para que estes últimos “peguem leve”. Mas não. A julgar pela prioridade que o tema recebe, o mundo inteiro deve estar à beira de centenas de guerras civis entre criminosos satânicos e os pobrezinhos dos cidadãos de bem, sempre acuados em seus cantos, tentando levar suas vidas sem serem esquartejados por bandos criminosos. Sem contar os terroristas, claro. Porque, afinal de contas, eles existem. E se existem, só podem estar por toda parte, certo? O raciocínio parece tortuoso, mas tem dado sucesso a seus proponentes em eleições mundo afora.
Muitos meses atrás, comentei aqui sobre a violência policial, comparando maio de 68 e todos os meses de 2008, na França como no mundo. Só de confrontar fotografias antigas com recentes, ficou claro que a tropa de choque (CRS na França) que trocaram cascudos com estudantes diante da Sorbonne em 68 mais parece uma fileira de guardas de trânsito, comparada à tropa de hoje. Aqueles policiais tinham capacetes, escudos e espingardas (não usaram), por certo; os de hoje parecem robôs de filmes de ficção científica, com suas armaduras, máscaras e coturnos à la Kiss. A polícia de hoje é bem mais ameaçadora. Tem um visual que intimida enormemente. Mesmo as patrulhas simples, pelo menos na França (e pelo que vi, no Rio também), vestem-se com blusas negras que lhes dão um ar de muito mais fortes, além de rasparem a cabeça como recrutas do exército. Não consegui explicar isso à época, então retomo a pergunta: por que a polícia deste início de século precisa causar tanto terror?
Para responder, volto ao penúltimo texto: a estação ferroviária, a cerveja, os soldados em uniforme camuflado exibindo suas boinas negras e seus fuzis semi-automáticos, desses que disparam sei lá quantas centenas de projéteis por segundo. Também coturnos, também cabeças raspadas, uma forma de olhar que, sem a menor fagulha de sucesso, buscava passar a impressão de investigar qualquer coisa. Um quarteto que se arrastava entre malas e bilhetes, simbolizando o mesmo programa anti-terrorismo que eliminou os bagageiros das estações de trem. Imagino o alto comando do exército a formular sua política de combate aos homens-bomba: colocar alguns rapazes sobre as plataformas, prontos para metralhar o primeiro zé-mané que pareça ter uma banana de dinamite por baixo da bata ou do turbante (sim, porque gente de paletó está acima de qualquer suspeita).
A segurança é a prioridade número um da maioria dos governos ao redor do mundo. Economia, saúde, educação, meio-ambiente, tudo isso é obrigado a disputar o segundo lugar, onde ainda sobram eventuais migalhas de atenção midiática. Talvez haja duas exceções. Uma é nosso bom e velho Lula, porque também não tem muito como competir com os políticos estaduais Brasil afora, que ainda enchem as PMs de carros enquanto a criminalidade teima em não ceder. A outra é o celebérrimo Obama, que, não é nada, não é nada, prossegue com duas guerras do outro lado do mundo, uma delas justamente contra o terrorismo. Fora esses aí, há anos ouvimos falar, e vemos na prática, em aumento do efetivo policial, tolerância zero, combate à delinqüência, câmeras espalhadas pelas cidades, monitoramento de lan-häuser, atenção particular para os “subúrbios sensíveis”. O público, já apavorado, porque já escutou esses discursos todos e já viu cenas de jovens em confronto com a tropa de choque, adere. Vota, esquece todos os outros problemas, fecha os olhos para a má gestão da estrutura pública… essa ladainha, todos conhecemos.
Mas, ora, que coisa estranha: nenhuma dessas políticas de segurança tem surtido um grande efeito duradouro. A não ser, talvez, o programa de Rudolph Giuliani em Nova York, o “tolerância zero”. Mas não é a mesma coisa, porque o que se fez na Big Apple foi deixar de fechar o olho para as pequenas infrações, como avançar o sinal vermelho e encher as calçadas de cadeiras. Isso, mais um policiamento ostensivo em nada diferente do que fazem os tradicionais guardas londrinos, conseguiu um nível de paz e tranqüilidade urbana muito maior do que a paranóia policialesca que, por exemplo, levou ao assassinato de Jean Charles.
A reação do público, no entanto, parece não reverberar a contradição. Nas pesquisas, as pessoas, aquelas normais, trabalhadoras, de bem (e assim por diante), continuam manifestando um medo enorme, diante de um mundo que lhes aparece como cada vez mais perigoso, instável e coalhado de bandidos, desde criminosos comuns até terroristas religiosos. Mesmo assim, elas declaram, diante da reação governamental, isto é, diante da presença massiva de gente com uniforme futurista, cacetete, fuzil, boina, cabeça raspada, escudo, capacete, óculos de visão noturna e gás lacrimogêneo, que experimentam uma maior “sensação de segurança”.
Ora, direi, sensação de segurança! Mas se dizíeis estar a vos cagar de medo! Como é possível?
Diante de tamanho paradoxo, refleti sobre o assunto e cheguei à conclusão que segue: essa tal “sensação de segurança” é um engodo. Ela não existe. Quando alguém acredita experimentar uma “sensação de segurança”, está enganada, não porque não esteja sentindo nada, mas porque aquilo que ela toma por uma “sensação de segurança” é, na verdade, outra coisa. Logo veremos o quê. Primeiro, preciso mostrar que não faz sentido falar em “sensação de segurança”. Ora, “sensação de segurança”…
Imagine você, em sua casa, deitado em seu sofá numa tarde de sábado, depois daquela feijoada, vendo pela televisão seu time ser esculachado em rede nacional. Você está seguro? Até certo ponto, sim. Pode cair um meteoro em sua casa, claro, mas afora essas hipóteses mirabolantes, você corre pouco risco de ser vítima de algum evento traumático ou perigoso. E que sensação você tem nesse momento? Sonolência, provavelmente. Raiva do juiz, talvez. Preocupação com o aluguel, eventualmente. Azia, posso arriscar. Mas “sensação de segurança”? Duvido.
Outra situação: você está dirigindo numa estrada escura. É noite. Chove a cântaros (é uma chuva das antigas). De repente, uma enorme vaca ruminando a um palmo dos faróis. Você entra em pânico. Solta um berro de pavor. Mas não há tempo para faniquitos: no último instante, você dá uma guinada com o volante, afunda o pé no freio, depois no acelerador, e consegue se safar. Seu coração ainda está disparado, você continua sem fôlego, suas mãos tremem. Mas o medo já passou. O que você sente? Alívio, certamente. Ódio da péssima iluminação da estrada, sem dúvida. Pena da vaca que talvez não escape ao próximo carro, nem ele a ela. Mas “sensação de segurança”? Necas…
Talvez eu esteja querendo brigar com os fatos, admito. Se as pessoas garantem que têm essa tal sensação, se elas insistem que é uma experiência verdadeira, quem sou eu para contradizê-las? Mas antes que me lapidem: eu nunca disse que elas não sentem nada. Eu disse simplesmente que essa sensação não é de segurança. Então, direis, é de quê? Tentarei responder.
Metade da resposta, acredito, está nas explicações dos pesquisados. Elas sentem medo e o associam de alguma maneira à “sensação de segurança”. Essa associação é muito freqüente para ser coincidência. De fato, tudo aponta para a noção de que a “sensação de segurança” corresponde à constatação (talvez inconsciente) de uma ausência de ameaça ou, melhor ainda, da ameaça contida, afastada, superada. É o que vimos nos exemplos acima, de maneira rudimentar, mas válida. Portanto, é impossível conceber a “sensação de segurança” sem uma sensação mais fundamental e mais evidente de medo, pavor, terror, ameaça, risco, decadência, desordem, chame como quiser – escolha, por exemplo, uma palavra do repertório de analistas políticos ligados a qualquer governo ao redor do mundo.
Seguimos no campo do paradoxo: como é possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre o medo, se o medo é o oposto da segurança? Estranho, não? Falta alguma coisa nessa nossa definição…
Então voltemos aos dois textos que mencionei nos primeiros parágrafos. O que encontramos? Policiais saídos de algum videogame, desses baseados em Robocop ou Exterminador do Futuro. O temor (mal dirigido) do terrorismo islâmico, que põe soldados armados até os dentes em todas as estações de trem da França (e muitos pontos turísticos), como se aqueles rapazes recém-saídos do treinamento fossem capazes de evitar a detonação de uma bomba. As tropas de choque que, e isso eu vi com meus próprios olhos, precisam de dois ou três batalhões, camburões e jatos d’água para desbloquear escolas onde garotos e garotas de 16, 17 anos fazem seu mui ameaçador piquete.
Para que serve tudo isso? Quem está mais seguro graças a esses bravos profissionais da violência estatal? A população? A gente de bem? O nobre e honrado cidadão? Alguém realmente acredita nisso? Sim, alguém acredita nisso. Basta ver, também alguns parágrafos acima, a reação habitual dos já mencionados cidadãos. Mortos de medo, mas ainda eleitores dos Sarkozys, Berlusconis e Serras da vida, graças a essa formidável “sensação de segurança”.
Devem então ser esses os componentes da magia paradoxal de nosso tempo. Primeiro, o medo; depois, o belicismo encarnado em policiais e soldados. Mas por que o belicismo? O que ele representa, quer dizer, o que ele provoca em quem o presencia? Traduzindo, como é que ele contribui para a “sensação de segurança”? Afinal de contas, guerras são tão opostas a qualquer noção de segurança quando o próprio medo, aliá seu correlato. Será possível que a “sensação de segurança” seja fundada sobre duas coisas que se opõem tão perfeitamente a qualquer idéia de estar seguro?
Sim, é possível. E talvez exatamente como conseqüência da contradição, da mesma forma como a multiplicação de dois números negativos produz um positivo. O belicismo dos assustadores soldados faz sentido quando entendemos a impressão que ele esconde: uma percepção de força, ou seja, uma demonstração de poder. Talvez o conforto implícito de que é possível agredir de volta, ou até agredir antes. De que qualquer ameaça será contrabalançada por um efeito punitivo e multiplicador. Que sei? Só posso afirmar que essa projeção de virilidade primitiva é o segundo componente da tal “sensação de segurança”.
Com isso, acho que já temos um quadro da nossa vítima. A “sensação de segurança” nada mais é senão um núcleo de medo recoberto por uma couraça de poder. Como o medo exige alguma forma de força e a força só é necessária quando temos medo, um anula e alimenta o outro. Desse estranho equilíbrio, dessa tensão delicada e perigosa, nasce essa tal “sensação de segurança” que tanta gente afirma sentir. Ou seja, é um engodo e um engodo arriscado.
Digo arriscado porque a “sensação de segurança” só pode aumentar de duas maneiras: ou cresce o medo e, em seguida, a demonstração de força como reação que restabelece o equilíbrio, ou aumentam, forçando um pouco a barra, as demonstrações de força, que por sua vez reverberam até multiplicar também o medo original. Não é difícil perceber que estamos diante de uma bola de neve. Só lembrando que o destino de toda bola de neve é a avalanche.
Até onde conseguimos levar o discurso e a estrutura reticular que sustentam a “sensação de segurança” tão fundamental a essa política mané de nossos tempos? De onde mais podem vir as ameaças que justifiquem tropas de choque e soldados com fuzis desfilando pelas ruas e estações de trem? Que outras medidas podem ser tomadas para, como é mesmo que se diz?, garantir a tranqüilidade dos cidadãos? Respostas nos comentários, por favor.
Blood, toil, tears and sweat
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Das outras vezes em que passei a noite em claro desde que vivo em Paris, foi para ver futebol. Ontem, abdiquei de acordar a tempo de ir ao curso de alemão para viver a História in the making. À distância, mas em tempo real, como só nossa era de conexões pode permitir. Olhos inchados, sobre a escrivaninha uma caneca de chá, trêmulo de frio e expectativa, passei horas no portal da CNN, a clicar sobre os mapas dos Estados americanos, vendo a subida dos números, acompanhando os comentários da torcida democrata em blogs e jornais, que, em poucas horas, passaram da apreensão esperançosa a uma torrente incontida de emoção, alívio e orgulho.
Eram quase seis horas da manhã na Europa quando começou o discurso da vitória de Barack Obama, no Grant Park de Chicago. Ohio e Virginia acabavam de revelar sua definitiva mudança de lado. A Flórida estava a caminho. Enquanto esperava a subida ao palanque do presidente eleito, a cobertura da BBC exibia cenas da celebração no Quênia, terra do pai e de muitos meio-irmãos de Barack. Uma multidão cantava e dançava, em meio a declarações de que aquela era uma vitória deles, também, um pouco. E quem haverá de dizer que não era? Comecei a imaginar a expressão de algum redneck do Mississippi que estivesse assistindo àquela cobertura; não sem uma certa alegria sádica, pensei que ele talvez sofresse um enfarte. Pena que só existisse na minha cabeça.
E começou o discurso. O 44o presidente dos Estados Unidos é um pequeno milagre, para não dizer que é um grande milagre. Seu domínio da oratória é raro. Cada movimento de sua cabeça e de suas mãos, cada pausa no meio das frases, cada piadinha que quebra a gravidade da retórica, cada olhar, tudo é tão bem estudado que parece natural. A facilidade de sua expressão é tamanha que faz crer que improvisa. Certa vez, debati com meu pai um discurso de campanha do então recém-escolhido candidato democrata. Ele dizia que não empolgava, eu discordei. Sem falsa modéstia, eu tinha razão. Obama não pode imprimir a suas palavras um tom inflamado, que o associaria mais a Jesse Jackson e a Malcolm X do que a Martin Luther King Jr., cujo famoso discurso do sonho é evocado por dez entre dez comentaristas desta eleição. De quebra, ainda reduziria a percepção de sua distância do belicismo caipira dos republicanos atuais.
Obama, ao falar, inculca no ouvinte os atributos que quer: sereno, culto, preparado, forte, capaz. Sua fala é tão bem controlada que até nos momentos em que deveria perder o controle, não perde. Foi assim quando se referiu a Michelle Obama, “the love (pausa) of my life“, e a sua avó, que faleceu no final da última semana. À parte os agradecimentos, devo dizer que fiquei muito impressionado com a força e a beleza do discurso. Digno de Lincoln, King, evidentemente, e Churchill, também em versão de texto, porque a pronúncia não é nada fácil (se não tiver paciência, pule direto para o último parágrafo, que é o ápice da beleza oratória). Melhor, creio, do que Kennedy. Em política, saber falar é tão importante quanto saber costurar acordos ou administrar a economia. Também nesse aspecto, Obama começa muito bem.
Nem preciso dizer que sou fascinado pela arte da Oratória. Talvez porque eu mesmo falo muito mal: tendo a embaralhar as palavras e perder a atenção do ouvinte. Que dirá de uma multidão… A vantagem de viver no estrangeiro, aliás, é que, com o sotaque, tudo se perdoa. Admiro, até invejo, quem consegue segurar o público só com a força de sua presença e de sua voz. Mais além, a palavra é um dos fenômenos que mais me fascinam. O poder de falar é determinante. É quase irresistível. Apaixona, como se vê pelos olhares vidrados da multidão que segue a voz clara de Obama, como investidores seguem sem pensar as ondas do mercado. A persuasão das belas palavras leva às lágrimas homens feitos, grisalhos, que em teoria viveram o suficiente para não se deixar emocionar e conduzir tão facilmente. Milhares de pessoas abrem mão de sua individualidade para repetir o mantra irresistível da campanha bem-sucedida: “Yes, we can!“
A oratória é uma arte perigosa, sim. Basta lembrar de Carlos Lacerda, de Joseph Goebbels, e da seqüência magistral de Júlio César, peça de Shakespeare em que Brutus e Marco Antônio discursam sobre o cadáver ainda quente do líder, e basculam as emoções da multidão romana pela simples potência de suas frases fulminantes. O bardo, com sua visão aguda, não deixa dúvidas: o erro estratégico de Brutus foi deixar o adversário falar; e por último, ainda por cima. O texto dá a entender que a história do Império Romano seria outra sem essa falha.
Mas Obama, como eu já disse, é um milagre. No ponto em que está, já realizou grande parte do que tinha de fazer como símbolo. Imagem do homem negro que supera os obstáculos e consegue unir todas as etnias do país. Encarnação do esclarecimento que esmaga o perigo crescente do obscurantismo. Um bofetão no rosto da tradição racista dos Estados do Sul. Só pelo fato de ter sido eleito, Obama já abalou as estruturas nefastas da desigualdade, embora ela não vá deixar de existir, e forte, mesmo que ele seja reeleito e conduza um governo impecável nos próximos oito anos. Obama já chegou mais longe que o doutor King. E já chegou mais longe que Bobby Kennedy, branco como a neve, mas assassinado sem ter a chance de vencer as primárias democratas.
Porém, há que entender-se que o Barack Hussein Obama que conhecemos já é uma página da história. Acabou. Daqui por diante, teremos um outro Barack Hussein Obama. Um presidente não é um candidato. Não há um inimigo claro, uma chapa John McCain e Sarah Palin, que não representa absolutamente nada em termos governamentais e administrativos, mas encarna com perfeição a política do atraso, a manipulação de emoções patrióticas belicistas, a mentira de um misticismo chinfrim que se faz passar por religião, a estupidez agressiva travestida de honestidade simplória, que obteve dos eleitores do país mais rico do mundo a bagatela de cinqüenta e cinco milhões de votos. Eis o número de americanos que saíram de casa para escolher o absoluto vazio.
Isso já ficou para trás. Obama não é mais um antípoda dessa gente, ele agora é seu líder. Escolherá um ministério, enfrentará uma crise, tomará decisões difíceis. Negociará acordos comerciais com outros países, inclusive o Brasil, e será duro nas negociações, como espera seu eleitor. Será criticado por jornalistas e zombado por comediantes, como todos os presidentes de todos os países, salvo, no máximo, as piores ditaduras. Ele deixará de incorporar a esperança. Passará a representar um país. Sua oratória será fundamental nessa nova etapa de recessão e guerra, mas não será tudo. A grande, a verdadeira vitória que o novo presidente americano pode obter é outra:
Quando criança, eu vivia num subúrbio de Washington, D.C., e na minha turma da escola havia um único garotinho negro, de cujo nome já me esqueci (como, aliás, de todos os outros coleguinhas daquele tempo). Em várias aulas, a adorável professorinha, Ms. Flannery (engraçado, do nome dela, não esqueci!), se esforçava por nos fazer entender a importância da igualdade e o absurdo da discriminação racial. Certo dia, recebemos como dever de casa inventar uma história que envolvesse outros alunos da turma. Na que escrevi, todos os meus amigos eram abduzidos por alguma força inexplicável e se transformavam em pessoas más, muito cruéis. Eu seria o único a resistir e teria de salvar todos os demais. Um verdadeiro herói americano, digamos assim. Mas mudei o enredo. Achei, veja só, que estaria agindo como um racista se incluísse o colega negro na lista dos maus. No texto final, então, nós dois lutávamos lado a lado pelo triunfo do Bem. Ninguém jamais soube por que fiz a alteração. Meu colega ficou lisonjeado. Se fosse no Brasil, tenho certeza de que passariam a me olhar torto, com o tradicional “sei não”…
Contei esse episódio para chegar à vitória que Obama ainda precisa conquistar, nos quatro ou oito anos em que ocupará a Casa Branca. Ele terá triunfado se ações ingênuas como a minha se tornarem obsoletas. Se ninguém comentar uma decisão do presidente fazendo menção à sua cor. Se não pegarem mais leve, nem mais pesado, porque ele “é negro”. Se concordâncias e discordâncias passarem por cima do fato, como se fosse um detalhe. Ironicamente, o maior feito de Obama terá sido transformar sua grande diferença em qualquer coisa de corriqueiro.
É claro que não vai acontecer. Quinhentos anos de discriminação racial, escravidão, segregação, preconceito, não vão ser apagados por um ou dois mandatos. Mas já terá sido um ganho enorme se, no mundo inteiro, pessoas que sempre enxergaram a si próprias como inferiores por causa de sua pele puderem ter espaço para se impor como cidadãos plenos. Daqui por diante, todas as crianças, de todas as cores e etnias, do mundo inteiro, vão nascer e crescer com a imagem de um presidente americano que não é branco, não é W.A.S.P (OK, Kennedy era católico). Para essas crianças, a idéia de que o negro possa ser inferior ao branco não fará sentido. Eis a vitória que Obama terá de cavar enquanto estiver trabalhando no Salão Oval.
Estou convicto de que a madrugada fria que passei diante do computador e da televisão é algo que vou contar para meus netos. Valeu a pena.
PS: Sobre as eleições propriamente ditas, em português, recomendo os óbvios Biscoito Fino e Pedro Dória, além do excelente blog de Argemiro Ferreira. Para algumas frases bem escolhidas e traduzidas para nossa última flor do Lácio, recorram ao Animot. Para quem gosta de sarcasmo irrefreado, O Hermenauta.
A política mané e o pauvre con
Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.
A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).
Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)
Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.
A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.
Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.
Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.
Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.
PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con…