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Moldar o homem

* Outro texto antigo, de janeiro de 2008, salvo do incêndio do Diplo. De lá pra cá, poucas coisas mudaram: o tal presidente já se casou com a tal modelo, já brigou com professores, já xingou um agricultor, já tentou colar sua imagem à de dois outros presidentes que estão muito na moda, já engrossou a voz pra cima dos vizinhos, já recorreu ao lado militar… e a popularidade continua caindo, caindo, caindo… *

A cidade já dorme, os jornais vivem a correria do último fechamento, a televisão passa programas mais ousados. Enquanto isso, uma última reunião ainda tem lugar; uma reunião de governo, mas importante demais para a indiscrição do palácio. Sendo assim, na sala de estar de um qualquer apartamento, com varandas que dão para um bulevar engarrafado, mais alto do que os postes e as copas das árvores, não é uma família que aproveita seu único momento de união para ver a novela, todos sentados no sofá; são homens e mulheres de testa franzida e braços cruzados, eles com gravatas coloridas, elas com cabelo cortado acima dos ombros. E discutem, nervosos, em torno de uma mesa de centro apinhada de papéis.

São jovens. Ninguém ali conta mais de quarenta e cinco anos. Alguns têm menos de trinta. Mesmo assim, são os assessores mais importantes do presidente. Mais, muito mais importantes do que a equipe econômica, para dar um exemplo que parece inverossímil. A economia vai bem, ora, quer dizer, mais ou menos. Isto é, vai bem para uns; para outros, vai mal. E mesmo que fosse mal para todos, no meio de uma depressão com inflação descontrolada, seriam esses os assessores que teriam a voz mais ativa na administração do Estado. Eles são basilares.

A reunião está marcada há tempos e deveria ser corriqueira. Mas começou no meio da tarde e até agora, quase madrugada, ainda vai se arrastando. O que era para ser uma mera vista de olhos sobre resultados felizes terminou como violenta lavagem de roupa suja. Desde as primeiras trocas de palavras. O tempo começara a fechar pouco antes da hora do almoço, quando chegou, via fax, a última pesquisa. Ao choque dos maus números, seguiu-se uma corrente de telefonemas e e-mails.

Você viu?

Vi. E agora?

Ou então:

Você viu?

Não. E aí?

C’est de la merde.

Os espíritos, a esta hora, já passaram da fase de exaltação, aquela em que uns e outros se acusam disso e daquilo, e é concreto o risco de passar às vias de fato. Agora, os espíritos já atingiram o ponto de suprema fadiga, em que a reunião se torna inútil, porque nada de racional poderá ser decidido. Mas ninguém quer admitir que é hora de interromper os debates. Amanhã, todos sabem, vão ouvir. Vão ouvir muito. De colegas, superiores, jornalistas e, claro, do próprio presidente, na figura de seu secretário particular.

Parece que as estratégias foram todas vãs. Os números insistem em associar a imagem do chefe de Estado a uma concepção antiquada da política: príncipe frio, distante, homem de puro cálculo e nenhum contato com a realidade do povo. Contra todos os esforços dessa equipe brilhante, formada pelas melhores cabeças das melhores escolas de marketing e recursos humanos, a população simplesmente não quer acreditar que está diante de um caso diferente. E agora?

Tudo já foi tentado. Ainda quando o hoje presidente era apenas um político ambicioso, decidiu-se voltar os canhões para o reclame de sua formação diferente. Ele não veio das mesmas escolas tradicionais de sempre, e isso é muito bom, porque significa que não terá as mesmas idéias tradicionais de sempre. Os mesmos vícios. Suas raízes não estão naqueles meios aristocráticos dos antecessores. É filho de imigrante, seu sobrenome logo o denuncia. Esse cara é novidade. Esse cara é renovação.

Deu certo. Na campanha, encarnou o jovem dinâmico e trabalhador, que entende as angústias de toda essa gente correta, que ganha a vida honestamente e não quer saber de confusão, insegurança, ameaças à humilde e digna mediocridade. Finalmente! Um candidato que torcia o nariz para aquela gente esquisita, com idéias esquisitas e ultrapassadas, aquela gente que dominava a política até então. Contra os velhos embates entre visões antagônicas do futuro, que ameaçavam arruinar a nação, apresentava-se alguém com a promessa única de construir o presente. E sobre quais bases? As da ordem a qualquer preço, da segurança em primeiro lugar, do trabalho acima de tudo. Pronto. Foi eleito.

O prestígio da equipe de mídia chegou ao ápice. A partir dali, eles teriam plenos poderes para decidir o que o presidente diria e faria; mas, principalmente, estava a cargo deles a definição de como o presidente diria e faria o que dissesse e fizesse. Anunciar maus resultados do consumo interno, por exemplo, nem pensar. Caberia ao velho ministro, ao jovem porta-voz, a qualquer um. Menos ao líder intocável. Este deveria trajar uma carapaça moral, para o bem da nação.

Logo após o feliz decreto das urnas, parecia uma boa idéia enviá-lo em férias – merecidas, diga-se – para uma ilha, em companhia de um grande empresário, admirado e invejado através do país. Parecia coisa que gente jovem, dinâmica, com a cabeça aberta, faz. Mas a população não entendeu assim. Pegou mal. Os jornais reclamaram muito. Vai saber, insinuavam, qual é o teor das conversas entre o novo presidente e uma raposa que investe em energia, transportes, mídia…

Passaram à tática seguinte para reforçar a imagem de saudável novidade que tentavam colar ao chefe. Quer dizer que o homem gosta de um jogging pela manhã? Pois então, vai correr diante das câmeras, vai discutir orçamento com a ministra da Cultura enquanto corre, vai convidar os presidentes de países vizinhos para acompanhá-lo na corrida, vai dar entrevistas entre um pique e outro. O importante é aparecer bastante no jornal do horário nobre, em roupas de ginástica e ao ar livre. Nada de se exercitar na academia do palácio, recluso, como faziam os outros!

Mais uma vez, face à desconfiança persistente do público, foi necessário alterar a estratégia. Um divórcio. Assim, escancarado. Quantos daqueles políticos tradicionais teriam coragem de se separar enquanto estivessem no cargo, arriscando o pescoço diante da opinião pública conservadora? Ora, nenhum. Pois um processo traumático desses ocuparia as manchetes, com certeza, por mais de um mês. Os índices de desemprego seriam relegados a uma nota de página par! Imagine, quanta identificação, quanta empatia, quando o povo soubesse que o presidente é tão normal, “como todo mundo”, que foi até traído pela mulher! Mas, estranhamente, houve pouco mais do que alguns comentários chistosos, nos botecos e nos cartuns, sobre o “reizinho corno”. E o assunto morreu.

Com poucos meses de governo, o presidente já foi visto comentando jogo de futebol, ensinando receita de batata assada, fazendo compras em supermercado. Cantou ao lado de seu ídolo, perdeu no tênis para o presidente do Congresso, pediu a um ditador africano, com educação, para que respeitasse os direitos humanos. Tudo detalhadamente noticiado, nos jornais, nas rádios, na televisão, na internet.

A última grande jogada, de que muito se orgulha o mais jovem dos membros da equipe, mentor da idéia, foi a manhã de domingo no parque de diversões. Quantas vezes um chefe de Estado, categoria humana grave e rígida, foi fotografado despencando em montanhas-russas ou abraçando o Pato Donald? Brilhante! Melhor do que isso, só mesmo aproveitar a ocasião para tornar público, como se sem querer, o namoro com uma manequim famosa-famosíssima. Genial. O mais indiferente dos públicos não escaparia.

Mas, como indica essa última pesquisa, nem o algodão-doce com a amada deu resultado. Para o cidadão médio, esse aí é igual a todos os presidentes anteriores. A mesmíssima coisa. Só um pouco mais saidinho. Não se sentem mais próximos de seu líder, nem sentem o líder mais próximo. E os brilhantes assessores se vêem sem resposta. Já passada a meia-noite, ninguém consegue pensar em nada. Sumiram as ideias. Todos estão exaustos. Olhos pesados, respiração curta. Ainda tentaram discutir mais uma resposta agressiva ao problema. Algo sobre um casamento. Com a modelo, é claro. Mas é impossível saber se a idéia é boa. Todas as outras pareciam ótimas, foram testadas no mercado internacional… enfim.

É tarde. Desistem. Os profissionais, cabisbaixos, tomam suas pastas e vão partindo. Um a um. Estão desanimados, nem procuram disfarçar as olheiras e os ombros encurvados. O que dizer desses consumidores? Ah, francamente! São imprevisíveis.

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A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

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O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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