As armas da tirania também podem ser as armas da arte, é o que diz. Em sua guerra, ele nunca mostra o rosto e assina com iniciais: JR. Esconde os olhos debaixo do capuz, porque sua visão foi trocada por uma lente de 28 milímetros, projetada a partir da câmera que ele empunha como um fuzil. Como uma sentinela de fronteira, o fotógrafo aponta seu aparelho para o rosto da vítima, à queima-roupa. Mas, em vez de lhe estilhaçar o crânio, ele registra sua vida. E, por que não uma licença poética, duplica sua alma.
O princípio é muito simples. Não há forma tão magnética para os olhos humanos quanto outro par de olhos humanos. Corresponder a um olhar é um gesto reflexo, o mais forte de todos. O consciente pode obrigar a mão a não escapar de uma fogueira, mas é impotente contra o empuxo das pupilas atentas. Os artistas sabem disso. Já o sabia muito bem o primeiro que aprendeu a desenhar um rosto humano. Hoje, na infinita cobiça pelas almas e bolsos, os publicitários abusam do efeito arrasador do contato visual. Em seu tempo, os deuses é que foram representados com olhos imensos. O próprio sol era entendido como olho faiscante e implacável, divindade flamejante. Já a lua se lia como um olho de mãe, aquele que apascenta, tão tranqüilo que leva um mês em piscar e reabrir.
Quando dois rostos se fitam, abre-se um canal definitivo que qualquer mensagem pode atravessar. Os sinceros, os sedutores, os carismáticos, são seres que dominam a potência do próprio olhar. Os tíbios, ao contrário, só têm pupilas a oferecer. Naturalmente, a política e a propaganda compreenderam logo o canhão semiótico que tinham entre os dedos. Com as técnicas de impressão do último século, não foi difícil levar ao paroxismo o mais insidioso estratagema de comunicação. Nas ditaduras, nas democracias, nos cartazes publicitários, grandes efígies fotográficas impuseram pensamentos e concepções de mundo, sugeriram atitudes e escolhas, exigiram sacrifícios e gastos. Diante do busto gigantesco do líder e da estrela, até o espírito mais indócil baixa os olhos e se curva em assentimento. Ao risco de asfixiar a civilização.
Por outro lado, quando há cegueira, quando as palavras são incapazes de provar sua verdade e as mãos que poderiam construir só se empregam em estraçalhar, algum caminho para a trégua deve ser escavado. A qualquer custo, a visão precisa ser restabelecida, a lógica tem de assumir seu trono, os dedos devem aprender a suturar e dar consolo. Felizmente, a humanidade é a prova maior de que para cada força há uma outra, proporcional e inversa, como aprendemos com Isaac Newton. E a força mais poderosa que temos, creia-me, é a arte.
Eis a missão que JR estipulou para si próprio, com seu fuzil fotográfico. Restabelecer a lucidez no mundo: o rapaz é ambicioso. Começou como todo artista engajado, retratava a juventude da periferia de Paris, as cités habitadas por franceses negros, morenos, asiáticos, muçulmanos, filhos de brava gente que veio para ceder sua força à economia da metrópole. E vieram de longe, em geral países que já passaram pela humilhação de ser colônias. Os retratados são uma geração que muda a cara e a tez do país.
E nada aconteceu. Que resposta ele poderia esperar? O centro conhece bem as figuras de suas periferias. Vigia-os, contrata-os, gosta até de ouvir e dançar à sua música com temas de revolta, gravadas em estúdios de última geração à beira do Sena. Fotografias de jovens suburbanos são muito valorizadas nas galerias da Rive Gauche, a cujos vernissages comparecem madames e mademoiselles encantadas pelas feições hostis, calças largas e bonés de basquete. Excelente forma de se ver reconhecido pelo circuito, mas não é provável que mude o mundo.
Até que ele entendeu o princípio. O magnetismo do olhar, a empatia do rosto, a reprodução quase infinita de imagens digitais. E, principalmente, o poder de imprimir cópias enormes, gigantescas, que interditem ao espectador a hipótese de evitar o contato. Seu museu, ou antes sua galeria, seria a rua, que ele mesmo define como “a maior do mundo”. Esse foi o estilo que o artista escolheu para trabalhar e lutar.
As primeiras ofensivas de sua objetiva de 28 milímetros tiveram lugar aqui mesmo em Paris. Os mesmos jovens já fotografados nas poses tradicionais apareceram em esgares e grimaças, registradas de uma distância que não chegava a meio palmo. Ampliadas, as imagens foram afixadas em muros, lixeiras, paredes, calçadas. A reação do público foi imediata. Casais e executivos interrompiam suas marchas diante dos olhos enormes, escancarados em preto-e-branco, em posições em geral engraçadas, muitas vezes ridículas. Olhos que não expressavam ódio, nem humilhação. Expressavam quotidiano, algo em princípio idêntico ao que todas aquelas pessoas viviam naquele mesmo instante, mas tornado diferente por alguma causa que, de repente, perdeu o sentido.
O mais curioso, e que poderia levantar um debate interminável, mas ainda assim interessante, foi a intervenção da polícia. Os zelosos protetores da ordem, fiéis a seu dever, fizeram cumprir uma lei de 1888 que proíbe qualquer fixação de cartazes nas vias públicas. Foi uma medida para evitar os manifestos políticos que se multiplicavam à época. Em qualquer parede mais propícia, lê-se o aviso de proibição, com a data e tudo. O artista, bem se vê, infringiu a lei. O que, aliás, explica o pseudônimo. Assim, em poucas horas os serviços de limpeza pública haviam esfregado dali os faces distorcidas dos adolescentes vizinhos.
Não faz mal, o recado foi ouvido. O passo seguinte foi o maior investimento do artista até então. Na companhia de um outro fotógrafo, de nome “Marco”, JR decidiu que deveria se dedicar a nada menos do que a paz entre palestinos e israelenses. Descambaram-se os dois para a Faixa de Gaza, conversaram com gente de ambos os lados, de várias profissões, todas as idades. Convenceram-nos a se deixar fotografar. De ambos os lados do muro vergonhoso que divide os povos que, no sangue, praticamente são o mesmo, fizeram colar centenas de reproduções, algumas com alguns metros de altura.
A idéia era obrigar os dois campos a encarar um ao outro. Promover a descoberta do dia-a-dia, abaixo dos helicópteros e acima dos fuzis, composto de cabeleireiros, taxistas e garis, em cada lado da parede de concreto. Revelou-se, nesse segundo laboratório, a verdade perturbadora de que é ali, nesses endereços quase idênticos, e não nos palácios, casernas e quartéis-generais, que reinam o medo, a miséria, as mortes, as famílias destruídas. Uma intenção nobre, sem dúvida, mesmo se é expressa no vídeo no mais peculiar discurso vazio francês.
Vídeo do projeto Face2Face, de JR e Marco
O êxito foi ainda maior do que a iniciativa parisiense. Não derrubou, ainda pelo menos, o muro em que os cartazes foram colados, mas atravessou fronteiras mesmo assim. Outro dia, topei com um gigantesco rabino rechonchudo e estrábico em Genebra, recostado na parede lateral de uma casa de ópera. Também sei de cartazes que foram transplantados para cidades americanas e asiáticas. Seja como for, o fotógrafo foi incentivado a prosseguir, e prosseguiu. Foi como se tivesse aberto um mapa-múndi e espetado alfinetes nos recantos da pobreza e do conflito. Não deve ser surpresa para ninguém que um dos primeiros lugares escolhidos foi o Brasil.
O artista esteve nas duas maiores cidades do país. Em São Paulo, não sei por que razão, realizou imagens bastante convencionais, embora boas, nas bocadas do centro, no alto dos arranha-céus e nas comunidades do Capão Redondo. No Rio, em compensação, ele compôs também uma obra de arte descomunal, que já figura entre as que mais me causaram impacto.
Um parêntese: tento ao máximo ler os jornais brasileiros, isto é, suas versões em linha. Tanto os do Rio quanto os de São Paulo, sendo que o JB, esse que há tempos deixou de ser ele mesmo, é o único que publica gratuitamente os fac-símiles de suas páginas do papel. São páginas, aliás, muito mal redigidas, coalhadas de erros de informação e de português, mas vou fazer o quê, é minha única maneira de ter a perspectiva de uma folha diagramada. Em resumo, posso ter passado por cima de alguma nota sobre a instalação, mas é improvável. Triste foi ter de ler sobre o assunto no blog de um filósofo americano.
As imagens dispensam comentários. Grandes pares de olhos que recobrem fachadas inteiras do morro da Providência. Figuras em preto-e-branco que espiam as centenas de milhares de pessoas a circular pela presidente Vargas, pela Central, pela Gamboa, numa poesia agressiva do contato involuntário. A uma distância que vai da avenida ao cume, aparecem as rugas, as expressões, os vincos de cansaço e dor de indivíduos anônimos e até então invisíveis. Nos poucos retratos de rostos inteiros, é fácil notar a tensão dos músculos que não sabem se podem abrir um sorriso ou se deveriam manter o siso. Centenas de moradores da Providência cederam suas casas para o fotógrafo. Dezenas cederam suas faces. Na maioria, mulheres que perderam parentes nas disputas do tráfico.
Como são belas as reproduções da paisagem, o morro tomado por barracos antigos, em geral tão opacos, cinzentos e tristes, agora salpicado de rostos humanos, olhos abertos, lábios, dentes, mãos. Uma prova intuitiva de que tudo poderia ser diferente, a cidade poderia ser uma, não existe razão para que uma metade seja invisível e a outra tente tornar-se invisível, escondida atrás das proteções estéreis. Os rancores, bem se vê, são uma tolice nossa, herdada de outros tempos. Não cabem mais numa sociedade que pretende enriquecer por inteiro e ter uma posição significativa no mundo. Há que superá-los.
Mas algo assim exigiria sacrifícios que talvez não estejamos dispostos a fazer. O trabalho de JR foi realizado no início deste mês, é provável que ainda esteja exposto, mas as poucas matérias que encontrei sobre o assunto nos jornais são retrancas secundárias das reportagens sobre o caso “Cimento Social” e a confusão que envolve Marcelo Crivella, exército e os traficantes de sempre. Posso estar enganado, mas não tenho forças para chegar a outra conclusão: mais vale comentar o mesmo de sempre; por que não fazer o mesmo de sempre!; vamos então manter o mesmo de sempre.
Enquanto isso, o anônimo e encapuzado JR segue com seu trabalho ao redor do mundo. No projeto “Mulheres são heroínas”, já passou por Serra Leoa, África do Sul (Soweto, em Johannesburg), Libéria, Sudão, Quênia. Sempre com a câmera à queima-roupa, fuzilando a sensibilidade dos passantes com a arte. E sempre, claro, rebentando a timidez no contato dos olhos humanos.