barbárie, calor, capitalismo, crime

Da série citações: cientistas perante o inconcebível

glaciers

“Há mais de trinta anos, os cientistas do clima têm vivido uma existência surreal. Um volume de estudos vasto e em constante expansão aponta que o aquecimento global tem seguido a evolução da presença de gases de efeito estufa exatamente como seus modelos previam. Os indícios físicos se tornam a cada ano mais dramáticos: o recuo de florestas, os animais que migram para o norte, as geleiras que derretem, as temporadas de incêndios florestais que se estendem, maiores taxas de secas, inundações e tempestades – cinco vezes a mais nos anos 2000 do que nos anos 1970. (…) A mudança climática induzida pelo ser humano é real – as temperaturas nos EUA subiram entre 1,3 e 1,9 graus [Farenheit, suponho], principalmente desde 1970 – e a mudança já afeta a agricultura, a água, a saúde humana, a energia, o transporte, florestas e ecossistemas. Mas isso não é o pior. As temperaturas do ar no Ártico estão subindo duas vezes mais rápido do que no resto do mundo – um estudo da marinha dos EUA diz que o Ártico pode perder por inteiro sua cobertura de gelo do verão no ano que vem, 84 anos antes do que previam os modelos – e os indícios de pouco mais de um ano atrás sugerem que a cobertura de gelo do Oeste da Antártica está condenada, o que vai acrescentar entre 20 e 25 pés ao nível do mar. Os 100 milhões de pessoas que vivem em Bangladesh precisarão de outro lugar para viver e cidades costeiras em todo o mundo serão forçadas a se deslocar, uma tarefa dificultada pela crise econômica e a fome que virão – com o interior dos continentes secando, (…) um bilhão de pessoas vão se ver passando fome dentro de 20 ou 30 anos. Ainda assim, apesar de alguns desenvolvimentos na área de energia renovável e algumas conquistas da liderança internacional, as emissões de carbono continuam aumentando regularmente, e os próprios cientistas (…) foram alvo de ataques incansáveis e bem organizados que incluíram ameaças de morte, convocações por um Congresso hostil, tentativas de conseguir suas demissões, assédio legal (…), tudo amplificado por uma propaganda incansável financiada descaradamente pelas empresas de combustíveis fósseis. Pouco antes de uma reunião de cúpula decisiva em Copenhagen em 2009, milhares de seus e-mails foram hackeados em uma operação de espionagem sofisticada que nunca foi esclarecida – embora as investigações oficiais da polícia não tenham revelado nada, uma análise de especialistas técnico-legais revelou o caminho dos ataques a partir de servidores na Turquia e em dois dois maiores produtores de petróleo do mundo, a Arábia Saudita e a Rússia.”

A citação aí acima foi retirada de uma matéria da Esquire (sugiro fortemente a leitura). Quem recomendou foi a Camila Pavanelli, que até há pouco publicava o indispensável Boletim da Falta d’Água. (Obrigado, Camila.) A extensa reportagem trata de cientistas que, vendo em primeira mão os dados sobre o desastre ambiental, ou seja, o colapso do planeta na medida em que é capaz de suportar a existência dos humanos, entram em desespero. Alguns buscam alternativas para a vida depois do colapso final, outros simplesmente abandonam o trabalho, outros entram em depressão profunda. Uma das cientistas, inclusive, começa a estudar psicologia para tentar entender como é possível que a humanidade ainda não tenha se dado conta de que é preciso mudar radicalmente de vida – caso contrário estaremos todos perdidos.

Foi esta última personagem que fez Camila lembrar-se de um texto que escrevi em janeiro, e que também trata desse estado de negação, esse verdadeiro bloqueio psíquico, que nos faz continuar vivendo como se… bom, como se houvesse amanhã, para colocar de um jeito meio musical. Escrevi em janeiro, quando São Paulo estava estorricando, faltava água, e o pessoal continuava preocupado com o PIB ou com o fim-de-semana em Bertioga. Pois bem, agora é agosto; as pessoas estão preocupadas com o PIB, o campeonato brasileiro, o impeachment e o fim-de-semana em Bertioga. E São Paulo está estorricando.

Tudo isso porque, repito: o colapso é algo que conseguimos dizer, mas não exatamente pensar. É O Inconcebível.

Bem; talvez esteja na hora de conceber.

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De alguém sem força para escrever

Sábado bendito, o mais aguardado de tempos, termo para uma semana atroz, dias de violenta fadiga, em que pareciam se derreter as estruturas fundamentais lá dentro, em que mesmo balbuciar o relato de nossos dias, à mesa do jantar, exigiu a valentia de um Leônidas, em que, por instinto, nos pusemos a perguntar de onde vem essa energia misteriosa que consumimos ao pensar, conversar, escrever.

Tem sido assim a semana, ou melhor, foi assim, porque ela já vai terminando, para nosso grande alívio. Uma série de feiras numeradas, em forma de ladeira íngreme a ser escalada, lodosa como depois de um pé d’água escabroso. Compromissos e obrigações cumpridos pela metade, sempre em marcha forçada, sempre pelo último suspiro de fôlego.

E mesmo assim, a cada momento, a questão segue a se esgueirar por entre a massa cinzenta falida e a branca esgotada: onde estará a fonte da força ausente? Como buscá-la de volta, conclamá-la a não desertar, obrigá-la a apresentar-se em uniforme impecável, conforme o acordado e necessário? Há coisas não precisa me dizer, já estou bem ciente, obrigado que não se controlam. As vias que nos alimentam, e falo aqui de energia mental, se abrem e fecham, assim é e pronto.

Mas o entorno, essa entidade tão nebulosa, embora concreta e pesada, não parece ter tanta consciência do inviável. Pior, exerce todo seu poder para obliterar nossa própria consciência. Uma lojinha, por exemplo, não pode deixar de vender seus legumes, creio eu, com base na alegação de que o asfalto das estradas se encontra um tanto esfalfado, désolé. Sendo assim, neste universo de planilhas de horário, prazos, vencimentos, neste mundo de anos que, ao passar, levam consigo a perspectiva de fazer tais e tais coisas adoráveis, que horizonte haverá para quem pretende, ou pretenderia, respeitar as idiossincrasias daquilo que, dormindo em nós, está além do controle!

Se tudo está marcado, determinado e, dependendo do ângulo pelo qual se olha, “precificado”, vá dizer ao famigerado entorno, ao universo de planilhas, ao mundo das datas idas, aos departamentos do Estado, aos gestores do mercado (ah, que saborosa vingança, na forma do cataclismo desses dias!), vá dizer a todos esses mamutes que a energia está em falta… Vá, pois, lhes pedir um minuto! Uma pausa para beber água!

Mas quando for fazê-lo, não se esqueça de me convidar para acompanhá-lo, para que eu possa rir quando eles rirem. Não com eles, é claro, mas da expressão em seus rostos, as máscaras contorcidas e afogueadas, explodindo em jorros de saliva, içada de gargantas que ainda exalam a pestilência nauseante de almas mal digeridas…

Desculpe rir do grotesco das figuras do tempo, da ordem, do mercado, do poder, da lei. Desculpe, sei bem que são fenômenos da mais grave seriedade, para o bem e para o mal. Mas é difícil escapar aos efeitos da imagem. Gordas figuras, pálidas como trutas descamadas, sacudindo-se em suas cadeiras, com as veias do pescoço saltadas e roxas, os olhos a ponto de escapar das órbitas…

Controle o asco e o despeito, faça o favor. Ora, não sou eu que estou nesse estado? Não era eu quem estava a ponto de redigir uma petição, para remeter aos responsáveis dos céus, na tentativa de obter a graça de um dia suplementar entre a quinta e a sexta (diego-feira?), só nesta semana, que eu prometeria de empregar no remanejamento de minhas funções mentais? Quem passaria pela humilhação perante a insensível realidade, em assembléia de suas manifestações mais presentes, seria ninguém menos do que eu mesmo, pois sim. Então se me ponho a rir, não vejo por que alguém ficaria ofendido.

Gargalhar no cadafalso é o último trunfo do condenado. Confunde as impressões do carrasco e as expectativas da turba sedenta de sangue. Tomba-se, sim, mas com um pequeno triunfo entre a corda e o pescoço. No meu caso, também é uma resposta às provocações de minha própria mente, ao menos sua parte inconsciente, que insiste em ficar passando diante de meus olhos, à noite, antes dos sonhos que esquecerei em seguida, a imagem de tantas coisas que eu poderia e deveria fazer, como se me convidasse a levantar da ilha de calor que é a cama neste outono rigoroso, para me por a tentar resolver um pepino, adiantar um projeto, publicar uma crônica.

Como se fosse possível, cabeça sardônica e cruel! O dia inteiro, tudo que eu poderia pedir seriam essas imagens e, pelos céus, juro que pedi! Mas elas me vêm quando nada posso com elas, deitado, prostrado, incapaz de deslocar a ponta do mais leve de meus dedos. Pois bem, eis minha resposta a essa semana moedora de neurônios, que carregou para campos mais férteis a energia de que tanto necessitei: uma risada amarga, alaranjada, querendo-se reverberante e ameaçadora, mas mais provavelmente tímida de cansaço.

É a reação mais orgulhosa que ainda está em meu poder, enquanto se aproxima um sábado de pleno alívio, porto abrigado depois de um mar de ondas grossas e ventos que rasgaram minhas velas. Se voltar a energia na próxima semana, pensarei em algo melhor. Até lá, asseguro que é com uma sinceridade fora do comum que desejo a você, bravo leitor que chegou ao final deste texto estrambótico, um excelente final de semana.

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Lições de quem largou o vício

No primeiro dia, tudo parecia depender de nosso heroísmo e abnegação. Largar as drogas parece ao alcance da mão, ao menos para quem tem força de vontade. A desintoxicação, pensando bem, não exigiria nenhum grande gesto, no máximo um pequeno sacrifício: abster-se de dobrar o filtro, de acender o fogão, de riscar o fósforo, de meter a colher no pó, de derramar a água fervida, de acrescentar açúcar, de saborear. Se um único desses movimentos fosse evitado, a salvação estaria próxima.

Era sábado. Dia bem escolhido, sem obrigações, ideal para enfrentar a sonolência e a ofensiva germânica das dores de cabeça. Matar ou morrer. Não havia mais alternativa senão largar o vício que nos corroía por dentro, dissolvia nossos estômagos, impregnava nossas roupas, amarelava nossos dentes e, cheguei a crer, nossa pele.

Ah, líquido insidioso! Quiseste, pois, comprar nossa saúde com energia e sabor? Quiseste envenenar nossas artérias com o ardil de teu aroma? Acreditaste que, dependentes de ti para acordar, trabalhar, raciocinar, não teríamos a coragem e a disposição para expulsar de nossa casa tua perfídia indiscreta? Pois que dirás agora?

De fato, fomos heróicos e abnegados no sábado. No domingo, igualmente. Passamos o dia esparramados sobre a cama, depois sobre o sofá, incapazes de preparar refeição mais complexa que um punhado de sanduíches. Na bancada que serve de despensa, os sacos de pó seguiam intocados e nós tratávamos de não pensar neles. Víamos televisão, embasbacados, porque filmes exigiriam uma concentração inatingível. E se, dentro do crânio, os miolos pulsavam em agonia, fazíamos de conta que era enxaqueca, contra a qual nada se pode fazer.

Segunda-feira chegou, com sua rotina compulsória. Para o tormento físico, tentamos aspirina, a chave-mestra das pílulas. Tomamos logo duas cada, cientes do sofrimento que ainda haveríamos de encarar ao longo do dia. Recorremos à força de vontade para vestir as roupas, amarrar os cadarços e preencher os bolsos com chave, carteira, celular. Colocávamos em palavras nossa convicção: “É preciso ser forte, temos de vencer.”

Quando um de nós se aproximava de uma recaída, lançava um breve olhar para o outro, na tentativa de buscar forças na cumplicidade e no amor. Era nossa única esperança para vencer o empuxo do vício, a crise de abstinência, o desejo lúbrico por aquele líquido negro, ligeiramente viscoso, cuja imagem fantasmagórica parecia pairar constantemente à frente de nossos olhos. Deu certo. Sem querer desapontar o outro, nem eu, nem ela recorremos a uma xícara às escondidas.

Mas persistia a questão da dor, que não passava. E havia trabalho a fazer, muito trabalho. Impossível, debaixo das ondas que afogavam nossos cérebros. Era um impasse evidente. Não sabíamos o que fazer. Se o desempenho profissional se visse comprometido, a volta ao vício seria uma questão de tempo. Pouco tempo. De repente, uma solução possível se afigurou: não havia alternativa, senão cheirar. Fui buscar o pó na despensa. A lata que tinha passado o fim-de-semana intocada me esperava com a paciência de um monge tibetano. Recolhi-a e a levei de volta para a sala. Tínhamos, é verdade, dúvidas de que fosse a melhor atitude. Afinal, cheirar está a um passo de beber. Bem teríamos pensado duas vezes, mas a verdade é que não há motor mais possante que a falta de opção. Destampei a lata.

Soltaram-se os eflúvios, que de imediato se puseram a flutuar pelo recinto. Cheguei a ver alegres tons rosados, em contraste com a verdadeira cor do pó, madeira quase negra. Aproximei o nariz, ainda um pouco hesitante, e aspirei. Faltam palavras para expressar o prazer. Que alívio, um contato afastado, mas real, com o objeto de meu vício. A intempérie no sistema circulatório se acalmou um tanto, tornou-se brisa controlável. Eu poderia ter passado o dia todo com a cara enfiada naquela lata, sujando a ponta do nariz e sofrendo alucinações. Mas passei-a para ela, e ela reagiu de forma idêntica. Desta vez, meu prazer foi contemplar a iluminação imediata de seu rosto.

Assim levamos a semana. Acordávamos, tomávamos o chá-da-manhã, corríamos para a lata milagrosa, santuário das narinas abstêmias. Depois, tentávamos tocar a vida, na medida do possível. Fomos menos produtivos e, desconfio, mais irritadiços. Mais preguiçosos e menos tolerantes. Se, por um lado, alguém parecia nos martelar a cabeça, por outro, aos poucos sumia a fogueira do estômago. Aguentamos.

É essa a palavra. Aguentamos.

Cinco ou seis dias depois, parecia passada a crise. Podíamos levar uma vida quase normal, sem aquela agitação doentia, os olhos esbugalhados, o tremor nos dedos. Forçoso confessar que nos arrastávamos um tanto, sem o ritmo da batalha do dia-a-dia. Mas um ganho era líquido, sem trocadilho, e certo. As cabeças não doíam mais. Esse pequeno triunfo parecia coroar nosso esforço.

Acontece que nos deixamos levar pela ilusão. Sábado à noite, um bar com amigos, a lista de bebidas parecia incluir o item ideal para quem quer levar uma vida normal, como a de todo mundo, isto é, dos limpos, abstêmios, não-viciados. Um drinque que leva a maldita bebida de que tínhamos sido dependentes. Não foi por tolice que caímos na armadilha. Foi traição do inconsciente, ávido por um pouco mais daquele gostinho saudoso. Foi assim que, na manhã de domingo, muito além da ressaca, demos com a velha crise de abstinência a bater na porta.

Em arrependimento, arrancamos cabelos. Imploramos clemência aos espírito da droga. Trocamos acusações vazias, já sabendo que aquela era uma culpa compartilhada. Mais calmos, recorremos a um juramento, como os que se faziam na Idade Média. Dali por diante, seríamos mais fortes, dissemos entre nós.

E fomos mesmo. Exceção feita para um único dia. Quinta ou sexta, já esqueci. Acontece que era um momento-chave de nossas vidas. Demandava um nível de concentração invejável. Como exigir que passássemos sem uma xícara? Pelo menos foi uma só, asseguro. Era inevitável. Caso contrário, não teria como não submergir.

Pois foi aí que aconteceu o milagre. Ao primeiro gole, um enjôo, acidez na boca, discretas convulsões. Sim, um milagre: o corpo rejeitava aquela invasão ácida e quente, de um líquido sem o qual, poucos dias antes, não conseguia se manter coerente. Nesse instante, entendemos que estávamos limpos. Nosso sangue, composto até então de alguns glóbulos, umas gotas de água e um dilúvio de cafeína, já tinha voltado a ser vermelho. Uma vez na vida, havíamos vencido.

Mas não estávamos inteiramente livres de problemas. Precisávamos encontrar uma maneira de preencher a lacuna da disposição física e mental. Essa tinha sido, afinal de contas, nossa desculpa para mergulhar tão profundamente no vício, na dependência, na entrega servil a uma substância pesada. Que outra fonte poderia nos fornecer a trimetilxantina indispensável?

Pensamos primeiro naquele famoso refrigerante imperialista; mas se acidez é o problema, não pode ser essa a solução. Consideramos o chá, mas o resultado foi decepcionante. Chocolate também tem seus efeitos colaterais terríveis, queira Tim Maia ou não. Pílulas? Nada disso, nosso estado de dependência jamais chegou a níveis tão patológicos.

Finalmente, encontramos. Mais uma vez, teríamos de recorrer ao pó, a divina poeira que anima as almas. Uma loja de produtos naturais, na rua de comércio vizinha, vende guaraná em pó. Na seção, claro, de produtos exóticos, muito estranhos, vindo daquelas terras em que as plantas são verdes o ano inteiro. Eis aí a saída. Guaraná é riquíssimo em cafeína, não costuma fazer mal ao estômago e não deixa ninguém com dentes amarelos. Compramos.

Tem funcionado. A cada manhã, misturamos ao suco umas pitadas do guaraná. Com ele, podemos levar o dia inteiro como crianças num parque temático. Só tem um porém. Aliás, sempre tem algum, raios! O bendito pó tem um gosto terrível. Nada parecido com o refrigerante que era brasileiro ou o suco adocicado que se vende nas farmácias. Este que adotamos é arenoso e amargo. Terrível. Como se diz, gosto de remédio. A tal ponto que, da última vez em que o engoli, me flagrei aos suspiros:

– O café era tão gostoso…

* * *

PS: Não foi a primeira vez que tentamos limpar nossos organismos. A primeira, como deve ter ficado claro, falhou vergonhosamente. À época, também escrevi sobre o assunto. O texto pode ser encontrado aqui.

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abril

A grande transformação*

Gente Sentada No Parque
Novamente sobre o Primeiro de Abril, quando saí de casa em busca de uma mentira e não encontrei. Como já expliquei no último texto, aliás. Por outro lado, e para meu grande espanto, o que encontrei foi uma nova cidade. Absorto na minha busca infrutífera, ganhei a rua, mas antes mesmo de atingir a esquina, já me sentia deslocado. Esta não é a mesma Paris de ontem, isto é, 30 de março; estes não são os mesmos parisienses. Terei atravessado um portal místico ao empurrar as cinco toneladas da porta do edifício? Terei sido transportado para outra realidade, outro país? Meu humor anda assim tão bom, que vejo tudo de outra forma?

Rumo ao pequeno parque escondido nos fundos do bairro, percorro as ruas do quotidiano como se explorasse as veredas de Atlântida. Mesmo os mendigos, encalacrados pelos últimos meses nas soleiras e nas escadarias do metrô, têm o ar de quem toma sol. Sentados em banquinhos de três pés, pedem seus trocados com gentileza, numa subversão tão perturbadora do desespero do inverno, que chega a parecer artifício. Um motorista com vocação para Nakajima quase atropela um motociclista, mas nem por isso um xinga o outro. Ao contrário, produz-se ali a Segunda Revolução Francesa: um pede desculpas ao outro e segue sua vida.

Quanto às moças, as célebres patricinhas francesas, elas trocaram seus cachecóis felpudos e brilhantes por coques estilizados. Chego a perder um minuto observando uma dessas estruturas de melenas: parece projetado por Calder, tamanha a delicadeza do equilíbrio, sob a ameaça da primeira brisa. É abril. Adeus botas de saltos mais altos que os canos, olá saias curtas e sandálias.

Descrito assim, pode parecer caso de dia ensolarado, mais quente do que os anteriores, irreversível final do inverno. Ledo engano. Primeiro de abril não foi mais quente do que 30 de março. Talvez a média tenha ficado até um ou dois graus mais baixa. Sol, houve. Menos do que no dia anterior, mais do que no seguinte. O horário de verão já vige desde o dia 21. Oficialmente, já temos quase duas semanas de primavera. Lanço a pergunta: que raios, afinal, mudou tanto de segunda para terça-feira?

Resposta singela, mas verdadeira: o mês. Nada mais. Não há ato psicológico mais forte que arrancar uma página de calendário. Abril é quando se fica mais alegre e se vestem roupas mais leves, certo? Pois bem: alcançamos abril, então é hora de inverter o guarda-roupa. Se eu disser que o francês deixa a condução de sua vida, em muito vasta medida, a cargo de datas, horas e outras funções matemáticas, vai certamente parecer exagero. Mas afirmo que, se for, é por muito pouco. A metamorfose está aí que não me deixa mentir. A mudança do vestuário não aconteceu gradualmente, tampouco a do humor. Foi, literalmente, de um dia para o outro.

É a regra. O mesmo acontece, por exemplo, no início do inverno. Os imóveis que têm aquecimento central automático o ativam, todos, quase sem exceção, em 15 de outubro. Eis o dia em que se começa a sentir frio. E, de fato, é o dia em que os casacos aparecem. Pouco importa que esteja muito mais quente que no dia 14. O dia 14 não é o dia em que se começa a sentir frio. É o dia 15, esse sim. Eis o dia, repito. Ponto final.

Cheguei a desenvolver uma teoria sobre o Primeiro de Abril. Assim como é a data em que as roupas se tornam leves (sob o risco de tiritar, não nos esqueçamos), é também o momento de começar a demonstrar alguma alegria, de vez em quando. Os sorrisos guardados no fundo do armário podem sair, empoeirados e cobertos de um ligeiro bolor. Daí a idéia de instituir a data de zombaria sobre os outros, de ser maldoso, mentir, pregar peças. É mais um pretexto para dar risadas; afinal de contas, os europeus precisam de fortes incentivos para gargalhar e, quando o fazem, normalmente exageram. Ainda hei de publicar uma tese a respeito.

Quanto ao que há de extraordinário e acintosamente belo na primavera de Paris, especificamente em abril, prefiro me ater ao texto do ano passado e à música que, naquele momento, embalou meus dias.

Na semana que vem, os plátanos prometidos!

* Título plagiado da obra magistral de Karl Polanyi.

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Brasil, descoberta, economia, história, ironia, opinião, reflexão, São Paulo, trânsito, tristeza

Se um estoura, estouram todos (ou O Sapo de La Fontaine)

Sapo gordo prestes a estourar (La Fontaine)
É feio dizer “eu avisei” ou “eu já sabia”; mas acontece que, bem, eu avisei. E eu já sabia. Com as ferramentas rudimentares do raciocínio econômico que tinha aprendido a manusear ao final de uma formação quase involuntária, consegui provar por A+B que, não importa em que direção aponte o gráfico de crescimento do PIB brasileiro, a cidade de São Paulo caminhava com destino certo para o colapso definitivo. Isso, perdoe reiterar, é o que eu dizia há coisa de cinco anos. Mas só hoje, ao tentar discutir soluções para o problema do trânsito, a sociedade e seus governantes percebem o óbvio.

Bem que tento conter o impulso de me vangloriar. Mas lembro dos fins-de-tarde nos botecos da Augusta, contemplando a guerra entre carros, motos e ônibus, tomando cerveja gelada enquanto os afoitos profissionais derretiam na tentativa de voltar a casa; lembro dos amigos a rir, já altos, da exposição detalhada de minha teoria. Lembro que eles consideravam impossível duas tendências opostas darem o mesmo resultado. Enfim, só quero lembrar a eles que estava tudo previsto.

Aqueles meus cálculos contemplavam duas possibilidades, ou seja, um Brasil em franco crescimento econômico, digamos, quase um novo milagre; ou um Brasil estagnado, irremediavelmente estagnado, pior ainda do que foi nos anos 80 e 90. Em ambos os casos, a própria concentração pantagruélica de riqueza na terra que um dia teve garoa se encarregaria de sufocá-la. Vejamos, em primeiro lugar, o que aconteceria se o país não conseguisse retomar o crescimento:

À primeira vista, a idéia não parece má para a vida paulistana. Sem crescimento econômico, vendem-se menos carros, constroem-se menos arranha-céus, menos pessoas se espremem nas plataformas do metrô, menos aviões chegam e partem de Congonhas. Olhando assim, não parece terrível, para a cidade de São Paulo, que o país siga estagnado. Acontece que, como de hábito, a coisa não é tão simples. Mesmo estagnado, o país produz novas pessoas; é gente que precisa encontrar trabalho e, como já se viu durante décadas em nosso país, vai atrás dele onde ele está. Conseqüência: o fluxo de gente em desespero, fugindo da miséria, que chegaria em São Paulo em busca de emprego não deixaria de aumentar. A cidade ficaria ainda mais apinhada, mais favelizada, mais desigual e, bem provavelmente, mais violenta. Em duas palavras, ela sufocaria.

E se o país enriquecesse, (sem redistribuir a economia pelo território)? Nesse caso, o crescimento dos investimentos, o aumento da renda, a queda do desemprego, a pressão por novos empreendimentos – em resumo, tudo que acompanha o crescimento econômico vigoroso – tornaria a cidade intransitável em dois segundos. E irrespirável, naturalmente. O horizonte sumiria de vez, as aeronaves se chocariam, tentando pousar no meio da cidade, o barulho de helicópteros ficaria insuportável; no metrô, um grito de “fogo”, “rato” ou “tarado” causaria uma onda de choque que atiraria os cidadãos mais próximos da linha sobre os trilhos eletrificados (já é assim). O caos, que estava evidente para qualquer um com o mínimo senso de civilização, ficaria patente.

Na última semana, li diversos comentários sobre os recordes de engarrafamento em São Paulo. 180 quilômetros, 190, 200, 220. O metrô teria sido uma solução, mas é tarde, não dá tempo. Tampouco bastaria a proposta de pedágio urbano: por falta de opções, os carros pagariam, mas continuariam circulando quase tanto quanto hoje. Há mais de dez anos, li que o prejuízo com o trânsito, só em São Paulo, passava da casa do bilhão e meio de dólares por ano. Hoje, deve ser o triplo disso. Já era uma cidade em que eu não conseguia trabalhar direito, porque já chegava “no serviço” (como se diz) esgotado. Hoje, tremo de lembrar.

A única solução para São Paulo e, de maneira geral, para o Brasil e suas metrópoles, é repensar nossa lógica econômica. Precisamos tomar consciência de nossa dificuldade em romper com a tradição do Convênio de Taubaté. Eis o ponto-chave nefasto de nossa história, que escancarou, em papel passado, nossa escolha pelo latifúndio. Passamos dos cafeicultores aos industriais, depois aos bancos, mas ainda somos os mesmos. Queremos concentrar a lavoura (em sentido metafórico), queremos crescer com a energia que sugamos dos vizinhos, e ainda acreditamos demais em superlativos: de que vale termos o maior estádio, a segunda maior frota de automóveis e terceira de helicópteros, a maior sala de concertos, as maiores cidades? Do outro lado, o país ainda produz miséria, ignorância e barbárie em profusão. Voltando à realidade de São Paulo, temos uma Berrini que vai se verticalizando, enquanto, ao nível do solo, a vida é, há tempos, insuportável. Má escolha.

Sem desconcentrar a economia, integrar o país e desenvolver as regiões, ou seja, o território como um todo, o país e sua maior cidade estão condenados. É o anátema da cobiça. Mas isso é apenas o evidente. São Paulo, primeiro, cresceu como centro industrial e era um modelo para o resto do país; locomotiva, dizia-se. No meio do caminho, o maquinista parece ter exagerado no carvão; achacado pelo espírito do Convênio de Taubaté, depenou das tábuas os demais vagões, para continuar acelerando. A cidade se pôs a concentrar o setor financeiro, o cultural, o varejista, o esportivo, o editorial, o aéreo…

Faz lembrar o sapo da fábula de La Fontaine, que queria ficar do tamanho de um boi. Foi se enchendo de ar, cresceu, cresceu, até que estourou. No caso de Sampa, o maior problema é que tem um país em volta. Se um sapo estoura, estouram todos. Parece que a barriga do bicho já apresenta algumas rachaduras preocupantes. E as perspectivas de crescimento para o PIB brasileiro em 2008 vão além dos 5% de 2007. Não tem metrô, pedágio ou rodízio que sirva de esparadrapo para um sapo tão inchado.

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Nos jardins, as cerejeiras

Três cerejeiras
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…

Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.

Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.

Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.

Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.

Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.

Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.

Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.

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barbárie, Brasil, calor, crônica, descoberta, desespero, doença, férias, frança, ironia, passeio, prosa, tempo, verão, viagem

O mal que vem dos Trópicos

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Quase uma confusão terrível. Por pouco, não sou tomado por um risco à saúde pública. Do jeito que a turma anda neurótica por estas bandas, uma quarentena seguida de deportação não estaria inteiramente fora de questão. Durante alguns momentos, estive na berlinda, confundido com uma aberração doentia; lepra, micose, varíola, sei lá o que pensaram que eu tinha. Mas é profundamente desconfortável a sensação que dá quando as pessoas, no máximo de discrição de que são capazes, afastam suas cadeiras de você. O isolamento é doloroso, eu digo. E não passava, claro, de um pequeno mal-entendido.

Melhor começar pelo princípio, manda a prudência. Pois bem. Uma sala de aula ocupada por inteiro, três dezenas de pessoas espremidas em algo como 15 metros quadrados. Lá fora, a temperatura oscila entre frações de grau negativo e uns quebrados positivos. Dentro, a calefação automática exala seu ar pesado e mal-cheiroso, relegado à redundância pelas quase trinta respirações simultâneas. Alguém sugere abrir as janelas, mas os outros recusam. Medo do vento gelado e da chuva fina que às vezes cai.

O professor discorre sobre fenômenos, númens e coisas em si. É bom prestar atenção, para não perder o raciocínio. Difícil, com as alfinetadas do calor debaixo das três ou quatro camadas de roupa; entre a primeira e a pele, o suor se dissemina, desconfortável. Nada pior do que suar no inverno. Tentando não incomodar os demais, liberto-me do paletó opressor. Poucos minutos mais tarde, também parte o colete. É pena, mas tirar a camisa seria passar do limite. O máximo permitido é arregaçar – ou melhor, enrolar – as mangas. Eis o erro.

Área perigosa. Segunda fileira, posição central, bem diante dos olhos do professor. Enquanto transcrevo suas explicações intrincadas, ele lança um olhar involuntário para meu braço. Faz uma pausa, engole em seco, titubeia para voltar ao discurso. Mas é experiente e recupera o fio. À direita, um arrastar de cadeira. À esquerda, outro, um pouco mais violento. Buchichos; o mestre se irrita um pouco. Demoro a entender que a culpa é minha, mesmo quando dá a hora e todos se levantam.

Enquanto visto de volta as peças que arrancara em desespero, aproxima-se meu velho amigo Germain. Com a delicadeza que lhe é particular, tenta sorrir. Ofereço-lhe a mão para um cumprimento, mas ele, embaraçado, faz de conta que tem as suas ocupadas. Um ato desajeitado, que só fez sentido mais tarde. Tento não demonstrar que entendi. Germain, esforçando-se por não se aproximar demais, acompanha meus gestos com os olhos esbugalhados. Confesso-lhe minhas dificuldades com a aula. Ele não ouve; ao contrário, emenda uma questão envergonhada, em seu estilo pouco natural de falar, cheio de volteios literários e eufemismos estilísticos.

– Caro amigo, desculpe perguntar; quando você visitou seu país [ele sempre chama o Brasil de “meu país”], parece que cometeu uma pequena imprudência…

Nem preciso dizer que fiquei surpreso.

– Que imprudência, Germain?

– Estou certo de que existem avisos nas praias, para informar quando estiverem impróprias para o banho… Sua saudade era tão grande assim, a ponto de mergulhar em águas poluídas?

Só pude sorrir. Contei-lhe que não mergulhei em praia nenhuma. Nem própria, nem imprópria. Passei ao largo do fato de que os avisos aos banhistas só vêm pelos jornais e, mesmo assim, sem grande clareza. Expliquei que choveu o tempo inteiro nessas duas semanas, não deu praia, para meu desespero. Aliás, não me lembro que expressão usei para “dar praia”. Deve ter sido algo como “as condições não eram propícias”.

Germain alçou as sobrancelhas. Duvidava de mim. Sua incredulidade foi mais surpreendente do que ofensiva. Jamais ele havia colocado restrições a alguma declaração minha. Parecia absurdo que, de repente, ele resolvesse descrer assim. Percebi um movimento em seus lábios. De bem conhecê-lo, soube, desde o primeiro momento, que ele ruminava uma maneira de abordar o assunto incômodo sem causar ferimentos em minha sensibilidade.

– Desculpe, erro meu; pensei isso por causa da doença que te aflige…

Não há doença alguma que me aflija neste momento. Germain percebeu a interrogação desenhada entre meus olhos e se embaraçou. Gaguejou acintosamente e enrubesceu. Jamais eu o vira nesse estado. Quando, condoído, resolvi partir em seu socorro, ele se adiantou, inspirou profundamente e retomou o prumo. Delicadamente, admitiu a origem de sua idéia.

– Quando você enrolou a manga, pude ver o estado da pele… É terrível, quero que você saiba o quanto sou solidário!

Não foi de imediato que liguei os fatos. Quando o fiz, caí na risada. O professor, ainda na sala, me encarou, assustado, e escorregou para fora num instante. A expressão de Germain era toda enigma. Nas duas semanas em que estive no Brasil, de fato não deu praia; houve um único dia de sol. Nesse dia, eu estava nas montanhas. Sol de montanha, bem se sabe, é terrível. Fiquei vermelho, meus ombros ardiam, o peito do pé doía enormemente.

E como explicar para Germain que eu estava apenas descascando? Nem conheço a palavra francesa para “descascar”, nem, pelo visto, o sol da Côte d’Azur, do país basco e da Bretanha são capazes de fazer um banhista trocar de pele no dia seguinte. Tentei lhe explicar o princípio do descascamento: o sol bate, a gente esqueceu a loção 30, a pele vai escurecendo, às vezes fica vermelha, não passamos hidratante (bom, alguns passam…). Dá uns dias, a pele forma umas bolhas, pronto: descasca. Perfeitamente natural.

As sobrancelhas de meu amigo seguiam arqueadas; em sinal de dúvida, sim, mas sobretudo de asco. Esse papo de pele que descasca é coisa de bárbaros tropicais. As epidermes européias podem ficar encardidas, ásperas ou transparentes, mas, pelos céus!, jamais descascam. Nada disso ele formulou explicitamente, claro, mas pude ler por trás de seus olhos cinzentos. Era algo que ele preferia jamais ter aprendido. A esse ponto, eu já me divertia como uma criança; como uma criança, decidi torturá-lo.

Arregacei a manga novamente e anunciei: “vou te mostrar…” Germain é ágil, não me deu nem sequer o tempo de puxar a primeira pontinha de pele morta. Agradeceu, lembrou-se de algum compromisso e projetou-se porta afora, deixando-me de pé, sozinho na sala, brincando de descascar e rindo até cair no chão. Só consegui me controlar muito tempo depois, quando lembrei do professor: a essa hora, o sinistro filósofo poderia estar ao telefone, denunciando um aluno contaminado para o Ministério da Saúde.

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Um vício é um vício

Caneca
Ouvi dizer que parar de fumar é muito difícil. Não sei, jamais fui fumante. Comprar cigarro, observe, nada mais é do que transformar dinheiro em fumaça. Sem falar no cheiro que impregna as roupas e os ambientes, a tosse, o câncer. Fico imaginando o desespero de tantos colegas durante uma longa palestra da qual não se pode sair para aliviar o vício, e a idéia me parece, menos que triste, engraçada.

Existem outros vícios, sim. Eu não poderia escapar de todos. Está para nascer o homem que vive sem obedecer a alguma substância, impulso ou idéia. Mas estou livre dos principais, acredito. Ao menos, dos mais perigosos. Não consumo químicos ilegais. Minha relação com o álcool é plenamente gustatória. Que culpa tenho, se há uma variedade tão grande de bebidas com valor gastronômico? Sói prová-las o mais rápido possível. E eu as provo. Não a ponto de ser alcoólatra, por favor.

Há um vício, porém, de que não consigo me libertar, e sei que é mortal para o organismo. Uma substância cheirosa, líquida, negra e quente. Uma frutinha vermelha que enriqueceu muito latifundiário brasileiro. Vendida para o mundo inteiro, torrada e moída, fervida e coada, servida no desjejum ou após as refeições. Pelos céus, eu admito, não consigo passar o dia sem tomar café.

Começou quando decidi que deveria escrever sem parar. Foi, digamos, uma decisão leviana de juventude. Acreditei que pudesse ser um desses autores que se debruçam sobre o teclado na hora do almoço e só se levantam para o café-da-manhã (com trocadilho). Horários definidos por e para outras pessoas, porque, com esses artistas geniais e incompreendidos, a comida serve apenas para não cair doente sobre uma página incompleta. Esses abnegados não dão importância às coisas boas da vida. Não buscam prazeres, nem glórias. Querem apenas fazer sua literatura… e assim por diante.

Jamais consegui. Tentei por alguns dias, mas sempre ocorria uma dessas três coisas: 1) Algo me puxava de volta para o mundo exterior, um jogo de futebol, uma morena passando na janela, uma goteira pingando na cozinha. Qualquer coisa. 2) Eu me via sem assunto. Queria escrever, mas, bolas, sobre o quê? Com que palavras? Tentava escrever apenas frases, até que delas saísse algum tema. Não funcionava. Ou as frases eram ruins, ou o assunto era banal. 3) Eu tinha sono. Dormia na escrivaninha, acordava, dormia de novo. Escrever é algo muito chato, já aviso a quem quer começar. Ver televisão é mais interessante e, se dormimos, não sentimos culpa.

O café, insumo insidioso, ofereceu-se como solução. Prometia mil maravilhas. Que me deixaria acordado, alerta, esperto. Que faria de meu cérebro uma máquina incansável, sempre produzindo idéias, frases e imagens. Que eu me tornaria o mais produtivo dos homens, preenchendo laudas e laudas com letra miúda e nervosa. O café, mais do que as drogas, o álcool ou o tabaco, é o segredo dos grandes autores. Acreditei nessa história, caí no conto.

Não demorou para que ele se tornasse minha fonte principal de alimentação. No trabalho, eu afundava o dedo no botão da garrafa térmica. Duas, três vezes por dia. E todos comentavam. Cada colega preparava para si uma pequena xícara a cada manhã. Quanto a mim, era um copo cheio até a borda. Mais de uma vez, vi meu chefe meneando a cabeça, em negativa ressentida. À tarde, quando a garrafa estava vazia, eu quase me recusava a continuar prestando meus serviços. O que me impedia era o medo de ser mandado embora. Sabe como é a situação, a coisa não está fácil para ninguém.

Há anos, eu me arrasto para fora da cama, esbarro em todos os móveis, vou até a cozinha e, em gestos de cágado, preparo a cafeteira. Espalho-me no sofá, à espera, ainda sonhando, os olhos bem atados. Quando ouço o chiado da bebida pronta, não sei explicar o que se produz em mim. Desperto imediatamente e pulo sobre ela. Bebo tudo de uma vez, e só daí parte o dia. Minhas roupas cheiram a café. Meus lençóis, idem. Minha mulher, às vezes, tem insônia, apenas da essência que a roupa de cama exala. E olha que ela também é viciada, e já o era antes de nos conhecermos.

Parar parece impossível. Um dia sem café corresponde a um dia como morto-vivo preguiçoso, mais morto do que vivo. Não quero conversar, mal cumprimento as pessoas, a luz do sol me incomoda. Arrisco dizer que é como se nesse dia eu simplesmente não tenha sido. É um vão na minha existência, a negação da continuidade do tempo.

Pois bem. Há coisa de uma semana, decidimos, juntos, reduzir o consumo da bebida. No lugar das duas canecas diárias, uma xícara. Pois bem. Funcionou no primeiro dia. No segundo, fui acometido da dor de cabeça típica dos dias de pouco café. Resisti bravamente. Depois, vieram os dias cheios de aulas e trabalhos por entregar. Tomamos duas xícaras, cada um. Uma escorregadela, certamente. Mas nada que se compare às canecas transbordando de outrora.

Tenho suado. Tenho tido pesadelos. Não tenho conseguido manter o ritmo de leitura e estudos. Um vício é um vício. Mas hei de resistir. Mesmo se, hoje, algo tenha dado errado. Escrevo com a caneca amarela ao lado do computador, oferecendo-se como prova de meu fracasso. Mas hei de resistir. Parar de fumar, dizem, é bem mais difícil. E tem muita gente que consegue.

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