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Quem disse que sou VIP?

Quando surgiram essas listas do Twitter1, começou a aparecer na minha página, ops, na minha “Home”, uma breve mensagem que, graças a Deus, já sumiu. O mesmo aconteceu, mais recentemente, com a invenção desse tão chatinho “RT automático”. Dizia a mensagem que eu fazia parte de um grupo destacado para testar o serviço; e esse grupo vinha acompanhado de um adjetivo que minha memória relapsa não guardou: seleto, restrito, exclusivo, sei lá eu. Enfim, querendo me convencer de que sou alguma espécie de VIP2, o Twitter me convidou a experimentar o novo serviço, leia-se, me convidou a servir de cobaia para verificar se um balão-de-ensaio estava funcionando. Dois, aliás.

Eu teria até me esquecido de tudo isso3, se não tivesse sido convidado para almoçar outro dia com meu amigo Germain, aquela figura infinitamente culta, mas que se atira de peito aberto em qualquer idéia, proposta ou projeto que lhe pareça absurda a contento. Estranhei o restaurante escolhido e a oferta de pagar a conta inteira. O homem, afinal, vive do salário melancólico de revisor editorial. Desconfiado, achei melhor pedir um prato menos proibitivo, mas ele meteu o indicador diretamente sobre um salmão com trufas. Diante do pasmo irradiado em meu rosto, ele se riu, mas explicou:

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– Consegui pagar minhas dívidas, mas sobraram uns trocados4 e resolvi te convidar para almoçar. Em sinal de gratidão, porque você não me deixou cair em depressão quando eu estava na merda5.

– Imagine… Mas o dinheiro veio de onde?

– Você não vai acreditar. Recebi o panfleto de um laboratório que oferecia entre 30€ e 3000€ para testes de novas drogas. Adivinhe! Me inscrevi e ganhei o valor máximo, porque testei o remédio menos seguro…

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Tentei chamar sua atenção para o risco que ele tinha corrido, mas o sujeito deu de ombros simplesmente, explicando que teve tremores inabituais na primeira semana, mas que agora já estava bom. E riu. No mais, foi uma tarde em que comemos e bebemos maravilhosamente.

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Unindo as duas novidades, e não posso negar que a experiência de Germain me pareceu sobremaneira assustadora, concluí que havia aí um grande aprendizado retórico, para não dizer político e mercadológico. Já dizia Henry Ford6 que apelar para o racional das pessoas não está com nada, o negócio é atacar as emoções mais básicas, aquelas mesmas do Roberto Jefferson, lá onde somos mais frágeis e desprotegidos. Nessa, a tal “nova economia” está em enorme vantagem sobre a antiga. O mencionado laboratório teve de desembolsar 3000€ para fazer o pobre e endividado Germain de cobaia. O Twitter conseguiu o mesmo efeito sobre mim simplesmente massageando meu ego. Ponto para eles.

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Sei que estou sendo injusto com o célebre miniblog, grande onda do momento. Testar listas e retweets não vai me causar tremores. Vai consumir, no máximo, meu tempo, além de fornecer dados meus para maquiavélicos publicitários e spammers7 obscuros me espezinharem. Mas é que não deu nem tempo de sentir orgulho por fazer parte do tal grupo+adjetivo (alguém lembra o que era?). A verdade é que nem mesmo nesse mini-universo micro-comunicativo do Twitter posso me considerar VIP no sentido em que eles entendem. Entrei no jogo tarde; “sigo” poucos e sou “seguido” por menos ainda; só uso o brinquedo, praticamente, para divulgar linques de coisas que escrevo ou alheias que me agradem (a não ser quando há uma boa piada envolvendo 22 marmanjos atrás de uma bola), e ainda de vez em quando dou umas alfinetadas, como agora. Então, ‘gradecido, mas a que devo tamanha honra? Boa pergunta.

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Sem contar que a própria noção de “escolhido” ou “seleto” me causa, embora não tanto, espero, quanto as injeções de Germain, tremores terríveis. Por dois motivos.

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O primeiro é que tudo aquilo que é verdadeiramente exclusivo, paradoxalmente, gostaria de ser inclusivo. Não, atenção!, a ponto de alardear as próprias qualidades em cartazes e placares mundo afora: uma tal atitude publicitária existe somente para estabelecer uma fachada MMC8 para todas as coisas, enquanto objetos, de forma a esconder as coisas, em si, do mercado que por elas pagará, crendo que terá pago pelo que viu anunciado. Penso, por exemplo, num daqueles sábios do período helenístico, que tenha conseguido atingir a ataraxia, estado máximo da sabedoria para muita gente, sobretudo na Índia e outros cantos por onde se disseminaram as doutrinas de Buda. Certamente nosso sábio em questão sabe que aquilo a que chegou é para poucos. Mas não gostaria ele que fosse para muitos? Estou certo de que gostaria, embora alguém em ataraxia não tenha desejos.

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Penso também em Kant9, suspirando sobre as edições recém-impressas de suas Críticas, constatando que “isto jamais será popular”. E como seria bom se ele estivesse errado! Se todos folheássemos a da Razão Pura, não haveria guerras de religião; se examinássemos a da Razão Prática, não imporíamos, como fazemos hoje até com violência, nossas máximas aos outros; e se ponderássemos sobre a da Faculdade de Julgamento, Faustão e Paulo Coelho ficariam sem público. Portanto, as coisas verdadeiramente exclusivas não se apresentam como tais. Eventualmente, quando podem ser comercializadas, são caríssimas (nem sempre), como determinados vinhos. Mas, ironicamente, o que o faz exclusivo se furta mesmo a quem tem acesso a uma garrafa, se a adquirir em função do valor pecuniário apresentado na etiqueta. E, convenhamos, será um desperdício de boa bebida, escorrendo goela abaixo de um pedante qualquer, com o sabor insosso de um preço.

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Creio que esse primeiro motivo não precise ser mais aprofundado, embora dê ainda para descobrir algumas coisas muito perturbadoras, se cavoucarmos um pouquinho mais. Mas, por enquanto, passo ao segundo motivo: é que a exclusividade, que se apresenta como apanágio dos ricos, na verdade é qualquer coisa de tristemente empobrecedor. A exclusão proposta (e não a inevitável, como no caso do vinho, da ataraxia e de Kant) tem esse pequeno inconveniente, que é o de pressupor um critério, ou um certo número de critérios, de exclusão. No caso, por exemplo, de um condomínio residencial, são, em geral, três ou mais: o custo, os dispositivos de segurança – um tipo de exclusão predominantemente física, mais visível e mais simbólica do que efetiva –, a distância para o centro da cidade. Já no caso de uma casa noturna para mauricinhos, o que se vê são brutamontes à porta, que, sem serem estilistas ou fotógrafos de moda, avaliam roupas, calçados, penteados, bolsas e maquiagem. Sua missão é clara e simples: barrar os inadequados e garantir que, do lado de dentro, haja somente a tal “gente bonita” – através de algum obscuro critério de beleza, que dificilmente dependerá dos traços do rosto ou das formas do corpo.

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Por que me parece que esses dispositivos são empobrecedores? À parte o fato de que enriquecedores certamente não são (ninguém fica mais rico, em nenhum sentido, por calçar a marca correta de sapatos), é porque eles tendem a reduzir àquele único critério toda a dimensão de virtualidade e potencial em que verdadeiramente consiste a vida. E isso, posso garantir, é empobrecedor. Todos que poderiam explorar, se tivessem a oportunidade ou a força de vontade de tomar consciência, aquilo em que suas disposições e inclinações inatas os tornam melhores, mais ricos e fecundos, vêem-se coagidos a canalizar a energia vital para um único sonho de entrar no clube exclusivo.

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Ao mesmo tempo, lá dentro, todas as relações, toda a tensão intersubjetiva, normalmente criadora e fascinante, está reduzida à obrigação de confirmar, constantemente, o pertencimento àquele enclave, àquele clube tão indistinto, formado a partir de um simulacro de distinção. Se existem macetes para galgar a rocha de algum sistema, seja um partido político ou uma rede social da internet, pode contar com que se transmutem imediatamente em regras, em um conjunto interminável delas: os famosos “do” e “don’t”, “in” e “out”, dicas, aplicativos, cursos… Resultado: de sujeito singular, enriquecido pelas tensões imponderáveis com a infinita multiplicidade de uma vida que poderíamos chamar autêntica, o pobre iludido pela idéia da exclusividade se vê reduzido a indivíduo acorrentado aos tais e tais gêneros a que pertence. Cruz credo, que miséria!

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Certamente não era nisso que pensava o Twitter quando se pôs a bajular seus usuários com uma história de grupo seleto (ou sei lá qual adjetivo). É natural, faz parte do modo de funcionamento daquilo que se convencionou chamar “nova economia”, mesmo sendo, cabe lembrar, uma estratégia que a precede de muito. Mas é evidente que o laboratório de Germain está muito atrasado em termos de retórica mercadológica. Em vez de oferecer remuneração, como antigamente, deveria vender a idéia de que é um privilégio oferecer o corpo às pesquisas médicas. Argumentos copiados da religião provavelmente seriam eficazes – e fica aí a dica.

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Melhor ainda, sem dúvida, seria convencer os consumidores de que é um privilégio, uma oportunidade tomar injeções e pílulas ainda pouco seguras10. Poderiam ser distribuídos convites, bem poucos no começo, depois mais, paulatinamente. Neguinho se estapearia por eles. O slogan teria de repetir que seus amigos vão invejá-lo, porque só você, isso mesmo, você teve o privilégio de experimentar essa insólita substância que não produziu, aleluia, efeitos colaterais em camundongos, porcos e chimpanzés. Faria um sucesso enorme e sairia muito mais barato. Só quem não ia gostar seria Germain, ainda endividado e sem acesso a um bom restaurante.

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1Minha opinião sobre elas é a seguinte, se alguém quiser saber: quanto mais atavios esses programas inventam, menos graça eles têm. Quando a gente começa a escorrer pela peneira de dispositivos que virou a internet, a primeira vítima é nosso engajamento nos serviços. A segunda é nossa “integridade digital”. Mas essa integridade não pode ser pulverizada demais, sob pena de faltar mesmo a substância que escorreria. Por isso, no meio do caminho, o dispositivo acaba sumindo, superado pela indistinção de seus próprios circuitos. Rapidamente tomam seu lugar outros dispositivos mais enxutos e o processo recomeça. Aconteceu com o ICQ, o Skype, o Orkut, o Altavista e tantos outros. Não vai demorar a acontecer, se continuarem nesse passo, com o Twitter e até, pode acreditar, com o Google.

2A saber, Very Important Person, um pleonasmo que engana otários ao redor do planeta, com um amor-próprio tão massacrado que se dispõe a abrir a carteira para qualquer oportunidade de ajuntar um oficioso “VI” ao seu “P” eterno e inalienável.

3Tento não pensar demais nessas pequenas cretinices deste início de século. Senão, correria o risco de acabar como misantropo e eremita.

4Des sous, en tradução mambembe.

5Dans la merde, em tradução literal.

6Ídolo maior entre ditadores alemães da primeira metade do século XX.

7Vou precisar que algum grande pensador, um novo Einstein, me explique qual é a diferença de verdade entre essas duas categorias. Afinal, o spammer nada mais faz do que aquilo que o publicitário gostaria de fazer, se as pesquisas de mercado não mostrassem que é pouco eficaz, ainda que baratíssimo.

8A noção de Mínimo Múltiplo Comum cai como uma luva aqui: carrega tanto a noção de mínimo, para descrever a sofisticação social da mercadoria; quanto a de comum, para explicitar sua dispersão fundamental pelos mercados; e, claro, a de múltiplo, que desmente qualquer ficção de exclusividade.

9Quem o conhece talvez tenha notado minha adaptação um tanto livre de sua estética do desinteresse…

10No século XXI, não há maneira melhor de enriquecer do que convencer os tolos de que são críticos ou jornalistas, publicar suas brilhantes reflexões gratuitamente e encher o alforje com as receitas publicitárias. Todos saem contentes e ainda tem um que sai rico.

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Moldar o homem

* Outro texto antigo, de janeiro de 2008, salvo do incêndio do Diplo. De lá pra cá, poucas coisas mudaram: o tal presidente já se casou com a tal modelo, já brigou com professores, já xingou um agricultor, já tentou colar sua imagem à de dois outros presidentes que estão muito na moda, já engrossou a voz pra cima dos vizinhos, já recorreu ao lado militar… e a popularidade continua caindo, caindo, caindo… *

A cidade já dorme, os jornais vivem a correria do último fechamento, a televisão passa programas mais ousados. Enquanto isso, uma última reunião ainda tem lugar; uma reunião de governo, mas importante demais para a indiscrição do palácio. Sendo assim, na sala de estar de um qualquer apartamento, com varandas que dão para um bulevar engarrafado, mais alto do que os postes e as copas das árvores, não é uma família que aproveita seu único momento de união para ver a novela, todos sentados no sofá; são homens e mulheres de testa franzida e braços cruzados, eles com gravatas coloridas, elas com cabelo cortado acima dos ombros. E discutem, nervosos, em torno de uma mesa de centro apinhada de papéis.

São jovens. Ninguém ali conta mais de quarenta e cinco anos. Alguns têm menos de trinta. Mesmo assim, são os assessores mais importantes do presidente. Mais, muito mais importantes do que a equipe econômica, para dar um exemplo que parece inverossímil. A economia vai bem, ora, quer dizer, mais ou menos. Isto é, vai bem para uns; para outros, vai mal. E mesmo que fosse mal para todos, no meio de uma depressão com inflação descontrolada, seriam esses os assessores que teriam a voz mais ativa na administração do Estado. Eles são basilares.

A reunião está marcada há tempos e deveria ser corriqueira. Mas começou no meio da tarde e até agora, quase madrugada, ainda vai se arrastando. O que era para ser uma mera vista de olhos sobre resultados felizes terminou como violenta lavagem de roupa suja. Desde as primeiras trocas de palavras. O tempo começara a fechar pouco antes da hora do almoço, quando chegou, via fax, a última pesquisa. Ao choque dos maus números, seguiu-se uma corrente de telefonemas e e-mails.

Você viu?

Vi. E agora?

Ou então:

Você viu?

Não. E aí?

C’est de la merde.

Os espíritos, a esta hora, já passaram da fase de exaltação, aquela em que uns e outros se acusam disso e daquilo, e é concreto o risco de passar às vias de fato. Agora, os espíritos já atingiram o ponto de suprema fadiga, em que a reunião se torna inútil, porque nada de racional poderá ser decidido. Mas ninguém quer admitir que é hora de interromper os debates. Amanhã, todos sabem, vão ouvir. Vão ouvir muito. De colegas, superiores, jornalistas e, claro, do próprio presidente, na figura de seu secretário particular.

Parece que as estratégias foram todas vãs. Os números insistem em associar a imagem do chefe de Estado a uma concepção antiquada da política: príncipe frio, distante, homem de puro cálculo e nenhum contato com a realidade do povo. Contra todos os esforços dessa equipe brilhante, formada pelas melhores cabeças das melhores escolas de marketing e recursos humanos, a população simplesmente não quer acreditar que está diante de um caso diferente. E agora?

Tudo já foi tentado. Ainda quando o hoje presidente era apenas um político ambicioso, decidiu-se voltar os canhões para o reclame de sua formação diferente. Ele não veio das mesmas escolas tradicionais de sempre, e isso é muito bom, porque significa que não terá as mesmas idéias tradicionais de sempre. Os mesmos vícios. Suas raízes não estão naqueles meios aristocráticos dos antecessores. É filho de imigrante, seu sobrenome logo o denuncia. Esse cara é novidade. Esse cara é renovação.

Deu certo. Na campanha, encarnou o jovem dinâmico e trabalhador, que entende as angústias de toda essa gente correta, que ganha a vida honestamente e não quer saber de confusão, insegurança, ameaças à humilde e digna mediocridade. Finalmente! Um candidato que torcia o nariz para aquela gente esquisita, com idéias esquisitas e ultrapassadas, aquela gente que dominava a política até então. Contra os velhos embates entre visões antagônicas do futuro, que ameaçavam arruinar a nação, apresentava-se alguém com a promessa única de construir o presente. E sobre quais bases? As da ordem a qualquer preço, da segurança em primeiro lugar, do trabalho acima de tudo. Pronto. Foi eleito.

O prestígio da equipe de mídia chegou ao ápice. A partir dali, eles teriam plenos poderes para decidir o que o presidente diria e faria; mas, principalmente, estava a cargo deles a definição de como o presidente diria e faria o que dissesse e fizesse. Anunciar maus resultados do consumo interno, por exemplo, nem pensar. Caberia ao velho ministro, ao jovem porta-voz, a qualquer um. Menos ao líder intocável. Este deveria trajar uma carapaça moral, para o bem da nação.

Logo após o feliz decreto das urnas, parecia uma boa idéia enviá-lo em férias – merecidas, diga-se – para uma ilha, em companhia de um grande empresário, admirado e invejado através do país. Parecia coisa que gente jovem, dinâmica, com a cabeça aberta, faz. Mas a população não entendeu assim. Pegou mal. Os jornais reclamaram muito. Vai saber, insinuavam, qual é o teor das conversas entre o novo presidente e uma raposa que investe em energia, transportes, mídia…

Passaram à tática seguinte para reforçar a imagem de saudável novidade que tentavam colar ao chefe. Quer dizer que o homem gosta de um jogging pela manhã? Pois então, vai correr diante das câmeras, vai discutir orçamento com a ministra da Cultura enquanto corre, vai convidar os presidentes de países vizinhos para acompanhá-lo na corrida, vai dar entrevistas entre um pique e outro. O importante é aparecer bastante no jornal do horário nobre, em roupas de ginástica e ao ar livre. Nada de se exercitar na academia do palácio, recluso, como faziam os outros!

Mais uma vez, face à desconfiança persistente do público, foi necessário alterar a estratégia. Um divórcio. Assim, escancarado. Quantos daqueles políticos tradicionais teriam coragem de se separar enquanto estivessem no cargo, arriscando o pescoço diante da opinião pública conservadora? Ora, nenhum. Pois um processo traumático desses ocuparia as manchetes, com certeza, por mais de um mês. Os índices de desemprego seriam relegados a uma nota de página par! Imagine, quanta identificação, quanta empatia, quando o povo soubesse que o presidente é tão normal, “como todo mundo”, que foi até traído pela mulher! Mas, estranhamente, houve pouco mais do que alguns comentários chistosos, nos botecos e nos cartuns, sobre o “reizinho corno”. E o assunto morreu.

Com poucos meses de governo, o presidente já foi visto comentando jogo de futebol, ensinando receita de batata assada, fazendo compras em supermercado. Cantou ao lado de seu ídolo, perdeu no tênis para o presidente do Congresso, pediu a um ditador africano, com educação, para que respeitasse os direitos humanos. Tudo detalhadamente noticiado, nos jornais, nas rádios, na televisão, na internet.

A última grande jogada, de que muito se orgulha o mais jovem dos membros da equipe, mentor da idéia, foi a manhã de domingo no parque de diversões. Quantas vezes um chefe de Estado, categoria humana grave e rígida, foi fotografado despencando em montanhas-russas ou abraçando o Pato Donald? Brilhante! Melhor do que isso, só mesmo aproveitar a ocasião para tornar público, como se sem querer, o namoro com uma manequim famosa-famosíssima. Genial. O mais indiferente dos públicos não escaparia.

Mas, como indica essa última pesquisa, nem o algodão-doce com a amada deu resultado. Para o cidadão médio, esse aí é igual a todos os presidentes anteriores. A mesmíssima coisa. Só um pouco mais saidinho. Não se sentem mais próximos de seu líder, nem sentem o líder mais próximo. E os brilhantes assessores se vêem sem resposta. Já passada a meia-noite, ninguém consegue pensar em nada. Sumiram as ideias. Todos estão exaustos. Olhos pesados, respiração curta. Ainda tentaram discutir mais uma resposta agressiva ao problema. Algo sobre um casamento. Com a modelo, é claro. Mas é impossível saber se a idéia é boa. Todas as outras pareciam ótimas, foram testadas no mercado internacional… enfim.

É tarde. Desistem. Os profissionais, cabisbaixos, tomam suas pastas e vão partindo. Um a um. Estão desanimados, nem procuram disfarçar as olheiras e os ombros encurvados. O que dizer desses consumidores? Ah, francamente! São imprevisíveis.

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Litania para o capital

Fuçando nos arquivos mais recônditos deste HD, acabei encontrando a brincadeira que segue abaixo. Foi escrita quando eu estava na faculdade (e, aliás, este HD nem fabricado era), para provocar meus colegas corretores da Bovespa, que andavam um tanto nervosos, conseqüência de alguma dessas crises por aí.

Lembro-me particularmente de um desses meus amigos, a quem perguntei, por pura gaiatice, já sabendo a verdade, se a corda estava apertando demais o pescoço da empresa em que ele trabalhava. (A tal empresa foi absorvida por outra bem maior, poucos dias depois.)

Pois bem, a resposta do rapaz foi adorável: “Agora, só resta rezar.”

Passei o dia imaginando como rezariam os colegas do rapaz, logo antes da abertura dos negócios, à espera do retinir do sininho. Seria como uma grande celebração, engravatados de joelhos, mãos unidas, ar de introspecção. Aos poucos, vai se erguendo uma voz coletiva, um grande uníssono, para este que, em nosso século, tomou o lugar que já foi de Deus e outros deuses.

Enfim, segue abaixo um esboço do que clamariam os infelizes. Já vou avisando a Duncan Niederauer que cobrarei os direitos autorais se ele quiser adotar a nova oração nas cerimônias da NYSE.

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Litania para o capital

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Ó Vós, que permitis, divinamente,
A implosão de todo patrimônio!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que sois pai de todas as Bolsas,
idolatria de derivativos!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que distribuís as sementes
da fortuna e da fome, cegamente!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós que podeis prever o porvir
daqueles que abdicam de consumir!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Vós que negais os frutos do trabalho,
escutai as preces do investidor:

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  • Concedei-nos cobrir as perdas!
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Da urna aos muros

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Quarta-feira, cinco de novembro, oito horas da noite. Entranhas da Gare Saint-Lazare, estação do oitavo arrondissement de Paris. Uma mulher de meia-idade, cabelos brancos e bem curtos, destaca-se da multidão, quase despercebida. Ela escreve com uma caneta pilot negra sobre o fundo branco de um painel publicitário, em movimentos tranqüilos e seguros. Ninguém a incomoda.

Tendo-a avistado à distância, logo penso se tratar de um membro do grupo anarquista que ataca propagandas por toda a cidade, na missão de denunciar o consumismo e a lavagem cerebral. Mas é uma surpresa: eu pensava que os ativistas underground fossem todos muito jovens. Ao menos o são os que, vez em quando, acabam apanhados pela segurança e sofrem processos por dano a propriedade.

A corrente de viajantes vai passando aos encontrões, sem espiar a mulher resoluta em seu discreto vandalismo. Um fluxo penoso, sem ritmo, mil rumos sem direção. Como sangue empurrado por um coração fora de compasso.

Entre pastas, meias de seda e capotes, só uma pessoa interrompe a marcha para ler a mensagem: outra mulher de meia-idade, mas de cabelos anelados, tingidos de vermelho berrante.

Quando a ativista termina seu texto, estou quase perto o bastante para ler. A fulva espectadora sorri de leve. A autora anui de um gesto brusco da cabeça. Um sorriso e ela tampa a caneta. Está claramente satisfeita com o serviço. Pode voltar a seu caminho.

Já estou bastante próximo para enxergar a mensagem. Sobre o anúncio de sapatos elegantes, lê-se:

À quand un Obama ici?

Uma constatação de como a onda azul está espalhada pelo mundo. A onda que venceu, como não venceu a verde, de Gabeira, no Rio. A francesa engajada, figura tão peculiar deste país, queria um Obama para seu país.

Nações diferentes, histórias diferentes, contextos diferentes. Um Obama na França teria de cair realmente do céu, mas pouco importa. A grafiteira do metrô não quer um presidente jovem, inteligente, carismático e negro.

Ela quer o símbolo, a imagem. O Obama dos cartazes, não o do Salão Oval. Ela quer o nome ao qual está associado tudo que se pode esperar de bom e revolucionário neste nosso começo de século, que parecia tão conformista e reacionário.

“Quando teremos um Obama aqui?”, ela quer saber.

Minha senhora, nesse sentido em que a senhora está pensando, já temos.

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Brasil, descoberta, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Um repórter, finalmente!

%C3%A1rvores+no+inverno

Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

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