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A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

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O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

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barbárie, conto, crônica, crime, desespero, doença, escândalo, imprensa, ironia, obituário, opinião, prosa, reflexão, tristeza

O caso dos pensadores mortos

Condorcet na Sorbonne
Um mistério assustador. As autoridades estão alarmadas com a onda de mortes que assola o país, cujas vítimas seguem um padrão: todas são trabalhadores intelectuais. A cada semana, o corpo inerte de um acadêmico ou pesquisador é encontrado em sua própria casa. Segundo os relatórios de investigação, os óbitos acontecem à noite, quando os pensadores estão solitários, trabalhando em suas escrivaninhas. Morrem de súbito, nenhum deles com carta de suicídio ou marca de violência. A polícia não consegue levantar hipótese nenhuma para dar início aos trabalhos.

Até a última semana, o governo procurava lidar com a crise a portas fechadas, conforme recomenda o protocolo. Os líderes da nação temiam causar pânico na opinião pública, já dada a comoções midiáticas quando confrontada a casos de mortes em série. Por prudência, escolheram a via do silêncio. Porém, a última morte recebeu uma cobertura tão escandalosa dos jornais e das rádios que foi impossível sustentar o segredo.

O corpo de um matemático de renome, professor de cursos disputados, pesquisador das equações mais abstrusas, foi encontrado sentado em seu gabinete, a cabeça sobre uma pilha de papéis, os olhos arregalados, fixos, a boca escancarada, os dedos ainda apertando a caneta. O pobre cientista perdeu a vida no momento em que estava para resolver o mais complexo problema de sua carreira, uma série estatística que haveria de revolucionar o funcionamento das redes de computadores. Contudo, o sinal de igualdade da última linha, que daria a resposta para toda a questão, desfez-se num traço aleatório. Na página, em vez de uma solução, a tinta reproduziu o gesto da mão que traçava o derradeiro desenho, sem forma ou sentido, do homem que expirava.

Confrontado com as suspeitas da população, o governo enfim concluiu que deveria convocar a imprensa para uma coletiva. O ministro da Segurança Absoluta tomou a palavra para explicar, com toda franqueza, as providências que seriam tomadas com vistas a evitar novas perdas para a ciência. Uma força-tarefa de investigação foi montada às pressas, com os melhores detetives dos principais departamentos de elite. Pediu-se a cada antropólogo, sociólogo, filósofo e historiador que evitasse passar a noite sozinho, por via das dúvidas, mesmo que houvesse um artigo a entregar ou uma aula a preparar para o dia seguinte. Um telefone foi colocado à disposição para responder a todas as dúvidas, ainda que não houvesse muitas respostas a fornecer.

O ministro, para finalizar, cuidou de transmitir tranqüilidade à população. Apenas um setor da sociedade, ele lembrou, foi atingido por essas mortes misteriosas. Pelo menos por enquanto. Embora nossas ciências e nossa cultura tenham perdido alguns nomes insubstituíveis, a economia não foi, e nem será, abalada. Todas as vítimas são intelectuais: físicos, geógrafos, psicólogos, jornalistas. Perdeu-se, aliás, um jovem poeta, mas a ligação dessa morte com as demais ainda é difícil de comprovar.

Nenhuma categoria indispensável foi atingida. Ninguém do mercado financeiro, à exceção do corretor com overdose de heroína e o investidor que, tendo feito uma má escolha, pulou da janela do escritório, duas tragédias sem relação com o caso. Ninguém dos transportes, nem da geração de energia, nem da televisão ou do varejo. Faleceu, sim, um importante conselheiro político do presidente da República, é verdade, enquanto planejava a fusão de dois partidos progressistas que, pelo andar da carruagem, terão de seguir separados e em conflito. Mas essa perda, embora lamentável para as instituições, não haverá de atrapalhar a gestão do Estado. O chefe de governo é perfeitamente capaz de tomar suas próprias decisões, baseado apenas em seu instinto, seu bom senso e as opiniões sempre ponderadas de quem costuma discutir política em nossas cidades.

Portanto, concluiu o ministro, não há motivo para alarme. A polícia trabalhará com afinco. O quotidiano de cada um não está ameaçado. A vida de todo mundo pode seguir tranqüila sem as teorias, as propostas e as advertências de quem é pago tão-somente para pensar, falar e escrever. Nada mudará, a não ser para aqueles que têm um pensador na família; esses viverão em constante receio de perdê-los. Mas que não se deixem dominar pela falta de esperança, uma vez que os zelosos policiais da pátria não medirão esforços para solucionar o caso.

Para os demais, não há risco algum, o ministro fez bem questão de frisar. Nada mudará. Os hábitos, os problemas, as condições de vida, os conflitos, as paixões, os preconceitos, as misérias. Para levar a mesma vida de sempre, afinal, não é necessário refletir. Basta continuar fazendo o que já se fazia. Basta ter as mesmas opiniões e os mesmos gostos. Basta ter fé nos mesmos profetas, sonhar os mesmos delírios, desejar os mesmos luxos levianos. A perda, no fundo, não é tão grande quanto chegou a parecer.

* * *

Posso perceber que as mortes vêm perdendo espaço no noticiário. Ninguém comentou quando um par de artistas contestadores também apareceram sem vida. Inexplicavelmente. A força-tarefa, envergonhada com a ausência de resultados, foi desmembrada e realocada para o combate ao tráfico de armas, um problema muito mais urgente e que não pára de crescer. A única grande reação teve lugar nas universidades, que fecharam ou reduziram os cursos de ciência pura e reforçaram o orçamento para Administração de Empresas, Turismo e Relações Públicas. Falta de interesse, elas explicam.

O entregador de jornais da minha rua riu às gargalhadas da nota de pé de página com o obituário de um grande semiólogo que tombou nesta madrugada, quando as redações já estavam a ponto de fechar as edições. O garoto quase imberbe achou engraçado o nome do sujeito, realmente muito difícil de pronunciar. Só ficou quieto porque um guarda que passava se aproximou para multá-lo; ele largara sua motoneta sobre a calçada, como de hábito. Diante de meus olhos, os dois se engalfinharam após um breve intercâmbio de impropérios.

Não foi fácil separar a briga, mas, finalmente, terminamos todos no boteco da esquina, tomando cerveja com tremoços. Discutíamos o de sempre. Uma mulher famosa, um time ruim. Deixei de me preocupar com o mistério dos intelectuais tombados, mais insondável do que os problemas que eles mesmos faziam tanto esforço, e tanto sofriam, para abordar. É um caso do passado, convenhamos. Não restam, mesmo, muitos mais para morrer.

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

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