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Como é fácil executar tarefas…

(Coloquei este vídeo porque não sabia como encabeçar este texto e porque achei incrível o quanto ele confronta o antigo e o novo. Sarkozy ainda está na era Bush e não entendeu nada sobre o futuro. Obama dá-lhe uma chinelada. Mais comparações entre os dois, pensando bem, são cabíveis e valem mesmo um texto só para si…)

Meu lado futurólogo começou a formigar, alguns dias atrás, quando vi duas notícias desconexas, em veículos que pouco ou nada têm a ver um com o outro, mas que, colocadas lado a lado, dão um diagnóstico claríssimo do impasse que rege este nosso instante curtinho da história. Acontece que tentei ser prudente. Tentei abafar meu instinto visionário. Fechei as janelas do navegador com as notícias tão logo as vi, segurando como pude a vontade de lançar minha aposta sobre o seguimento do século XXI. Com isso, agora que desisti, não encontro mais nenhuma das matérias, e só sei que uma era da BBC e a outra de uma revista eletrônica americana: Slate, Salon, algo assim (ou o CSM? Sei lá). Se as referências que darei ajudarem alguém a lembrar onde estão essas minhas fontes, peço que me avise, para que eu possa colocar aqui um raiperlinque. Senão, que baste a descrição do conteúdo.

A primeira matéria comentava a facilidade que os estudantes têm de encontrar respostas para o que procuram, contanto que tenham a enorme habilidade de digitar um punhado de palavras no Google ou, bem raramente, em algum outro buscador. Com isso, lamentava-se o jornalista, nenhum aluno precisa mais se esforçar para fazer um trabalho na escola. Basta-lhe procurar na internet a resposta para o que quer o mestre, imprimir e entregar. Não é caso de plágio; mas, por exemplo, se um professor de Física pede aos alunos para descobrir o que dizem as leis de Newton, no dia seguinte a turma inteira volta com as mesmas frases tiradas da Wikipédia.

O outro texto era ainda mais sombrio. Reclamava que o nível cultural da juventude britânica está desesperadoramente baixo. Explicação dada pelos pedagogos que o jornalista consultou: as escolas do país (e do mundo inteiro, porque certamente o Reino Unido é um dos últimos bastiões do ensino generalista) concentram-se demais no ensino da matemática e da gramática, deixando de lado as noções de história, geografia, artes e literatura, que, como sabemos, são as que fornecem ao indivíduo o potencial de reajustar sua própria forma de pensar à medida em que as circunstâncias assim lho exigirem. À parte os dramas educacionais do Brasil, muito semelhantes, guardada a proporção de escala, não é difícil perceber que a necessidade de oferecer uma educação de massa com orçamentos cada vez mais apertados, tudo isso no fito único de formar mão-de-obra, está produzindo uma gigantesca juventude de semi-autômatos de pensamento estreito e lerdo. Basta conversar com alguém de menos de 21 anos para perceber.

Pois bem, ambos os textos exprimem uma crise na educação (aliás, boa hora para reler Hannah Arendt). Um é americano, o outro inglês. Discutem problemas tópicos. Mas ouso dizer que se completam, porque descrevem duas fontes de um mesmo ruído no sistema. Por sistema, quero dizer o campo em que se deslindam as vidas, com seus projetos estruturais, suas convicções morais, políticas e econômicas, suas práticas quotidianas, enfim, a grande engrenagem que mantém o todo em funcionamento. É nisso que há uma grande rachadura. É preciso, pois, identificá-la e fazer face a ela.

Em outras palavras, o impasse que os textos sugerem, um pouco sem querer, vai muito além da educação. A forma como ensinamos e treinamos nossas crianças reflete o que esperamos delas quando se tornarem adultas. Reflete também, portanto, e serve de indicador para o que queremos dos nossos adultos de hoje, como eles devem ser e, de fato, como fazemos com que se tornem, à força de formações, processos de contratação, matérias na imprensa, conversas de bar… Resumindo, tudo no nosso dia-a-dia. É uma estrutura que se forma por conta própria, aos poucos e nunca exaustivamente, de acordo com os problemas de cada época e as necessidades que esses problemas impõem; o caso, porém, é que esses problemas e necessidades se deslocam mais rápido do que nossa capacidade de nos adaptarmos a eles. Eis a origem dos impasses.

Mas como é, afinal, que formamos nossos adultos? Essa informação crucial é que pode ser entrevista nos dois textos que citei acima. Que os estudantes encontrem respostas para as perguntas em pesquisas rápidas na internet demonstra apenas um truísmo: que os professores lhes fazem perguntas cujas soluções podem ser achadas prontas em algum canto. Paralelamente, a concentração exagerada do ensino nos rudimentos matemáticos e gramáticos só corrobora essa visão: o estudante precisa aprender a resolver problemas específicos e concretos, de cálculo puro, que aparecerão à sua frente na vida adulta, em casa e no trabalho, e precisa aprender a expressar corretamente a resposta a perguntas pontuais que lhe serão feitas em reuniões, tribunais, entrevistas de emprego e toda sorte de pequena situação.

Espera-se do adulto de hoje, portanto (e treinam-se os jovens para cumprir essa expectativa), que seja capaz de executar tarefas. Como resquício da sociedade “estritamente” industrial do século passado, formou-se uma estrutura de massa no ensino e no mercado de trabalho, de tal maneira que o profissional, mesmo em campos de atividade, em tese, profundamente intelectuais, como a edição, o jornalismo, as finanças (sim, há algo nelas de muito intelectual, além da técnica pura e simples que se adotou) e a gestão pública, pouco mais é além de um executor de tarefas, um Chaplin de Tempos Modernos mesmo quando se considera um grande administrador e líder.

Pode parecer muito estranha uma afirmação tão categórica quando, nos prospectos de recrutamento de trainees de qualquer grande corporação, consta que são procuradas pessoas que tragam novas idéias, pensem diferente, tenham espírito de equipe e assim por diante. Acontece que essas palavras são desprovidas de qualquer significado concreto, quando vêm de grandes e caros manuais (adoro a expressão anglófona, textbook) de administração, que ensinam, como se fosse uma equação ou uma dedução silogística, que são esses os valores fundamentais dentro de uma empresa saudável. Cabe sublinhar que isso não é uma inverdade… é só uma verdade bem abstrata.

Ora, poderíamos e deveríamos perguntar de onde viriam essas novas idéias e esse pensamento diferente se o paradigma da formação nas escolas e nas universidades (sobretudo nas de administração) é uma transmissão massiva e cada vez mais concentrada de instruções para a execução de tarefas especializadas? De onde brotaria a inclinação interior dos indivíduos a reestruturar suas próprias formas de pensar ou, pior ainda, (hélas!) a cultura de uma empresa inteira, se o raciocínio analítico e a potência crítica do pensar estão excluídos da preparação da força de trabalho, repito, mesmo a mais elitizada? E ainda, qual é o recrutador que, formado numa escola de psicologia que mais parece de gestão, será capaz de identificar uma pessoa com essas habilidades no meio da massa, se o próprio do pensamento diferente e da idéia inovadora é justamente de escapar a todos os parâmetros que o manual teve tanto cuidado em elencar? Ao contrário do que pode crer a mitologia de nosso tempo, as capacidades de análise, síntese, julgamento e crítica não são inatas. Muito pelo contrário: de seu natural, o ser humano tem um raciocínio bastante simplório.

Há muito, essa constituição do mundo já não é adequada às exigências que a própria tecnologia criou. Daí o sucesso, por exemplo, de cursos livres das chamadas humanidades, cujo caso de sucesso financeiro mais evidente no Brasil é provavelmente a Casa do Saber. (Mas há outros, muitos outros, entre sérios e charlatães.) Existe uma sensação de que a cultura do industrialismo replicado em todas as áreas está fazendo água. Mesmo o sujeito que se considera “altamente qualificado” não consegue mais dar conta de tanta instabilidade nas variáveis. Talvez até, se for um pouco mais sagaz, já perceba que nunca passou de um executor de tarefas.

Que a formação e as expectativas terão de mudar para fazer frente a um mundo pós-industrial que há muito já se instalou sem que o percebêssemos, isso me parece evidente. É claro que a pergunta passa a ser “como” ou, se preferir, “para onde”. Retorno, então, aos dois artigos citados. Como deve reagir o professor, perguntava-se o repórter, diante de alunos que encontram com facilidade as respostas na internet? Ora, a internet é um dos muitos exemplos de como o ser humano, pouco a pouco, vai transferindo parte das responsabilidades de seu cérebro para suportes exteriores a ele.

E isso não é nenhuma novidade: 350 anos antes de Cristo, Platão já ralhava contra a palavra escrita, acusando-a de substituir a memória das pessoas, que, em vez de conhecer seus argumentos e fomentar suas idéias, liam-nas em pergaminhos e se consideravam sábias. (Veja-se como o mundo mudou pouco). Dizia mais o velho filósofo de Atenas: a palavra escrita é estável, não se adapta à variação dos tempos, sua linguagem não se adapta aos diferentes interlocutores, com suas diferentes preconcepções e seu muito variegado nível intelectual. Pior ainda, a palavra escrita é incapaz de defender-se por conta própria quando alguém a critica ou deturpa. Os discursos, dizia ele, esculhambando com a logografia dos sofistas, devem ser escritos na alma, não no pergaminho.

Nem preciso dizer o quanto o mundo mudou desde então e o quanto o texto escrito se tornou fundamental para o desenvolvimento da civilização. O próprio Platão escreveu mais de 60 diálogos e sabe-se lá quantas cartas, mas nem por isso deveríamos dizer que ele estava enganado em suas críticas. Há diferentes maneiras de abordar o texto escrito, algumas melhores do que outras, e a humanidade, ou uma parte dela, aprendeu ao longo desses vinte e tantos séculos a comentar, criticar, responder, interpretar, decompor textos, até que a escrita se tornou uma ferramenta tão importante no conhecimento quanto a memória e o diálogo.

Já passamos por Gutemberg, Hearst, Marconi, Chacrinha, Bill Gates e Google. Cada uma dessas evoluções impôs mudanças na forma de pensar e ensinar. A internet, no caso, torna obsoleta a tarefa de buscar dados na memória ou em compêndios de papel: eles estão facilmente acessíveis a quem souber fazer uma pesquisa no Google com um mínimo de sapiência. (Isso é menos comum do que parece, como pode inferir quem usa programas de estatísticas ou lê o Rafael Galvão.) Cada vez mais, as tarefas que dependiam de executores muito bem treinados podem ser realizadas por programas que, não raro, se encontram online para baixar, e de graça. As primeiras vítimas, décadas atrás, foram as datilógrafas, mas elas certamente não estão sozinhas. Que sirvam de atestado os salários baixos e o desemprego alto.

Não há, portanto, muito mais saída, senão o óbvio: que se deixe aos computadores o dever de executar tarefas como “achar respostas”. Professor, seu problema passa a ser outro: proponha atividades a seus alunos que computadores simplesmente não possam fazer. Coisas como encontrar o que está por trás de um determinado argumento; deduzir conclusões de princípios que maus ou mal-intencionados autores deixaram escondidas; supor o que pode dar errado em tal e tal proposta; compreender por que um problema qualquer da física pode ser resolvido com um cálculo e não com um outro. E assim por diante. De tal maneira que o computador volte a ser a ferramenta indispensável como foi criado, em vez de muleta para a preguiça estudantil.

É claro que isso exigiria uma mudança radical nos princípios que tanto preocupam o jornalista da BBC: cálculos matemáticos e regras gramaticais não bastam mais. Desde pequena, a criança precisa ser ensinada a enxergar as proporções e entidades abstratas em que está fundada a aritmética: somar e subtrair, hoje, são muito pouco para alguém que tem uma calculadora no relógio de pulso. O mesmo vale para a língua. A questão não é o milagre de acertar todos os plurais, mas de conseguir transitar livremente entre conceitos, palavras e coisas. Isso é que é fundamental para que alguém se faça compreender, tanto por escrito quanto oralmente. E garanto que alguém que entende essa ligação fundamental – conceitos, palavras, coisas – bem raramente erra preposições, tempos verbais, pontuação. Tudo isso se torna natural e irrelevante.

Estou ciente de que seria muito custoso massificar um ensino como esse que proponho. Mas não vejo muita alternativa. Investir em alguns poucos centros de excelência me parece uma alternativa péssima, que nos atiraria de volta à aristocracia intelectual dos Eton College, Ivy League e Grandes Écoles da vida, opondo-se (verticalmente) a todo o resto da plebe ignara, que, não demoram os eleitos para diagnosticar, “só serve para atrapalhar”. Porém, mesmo sendo uma opção terrível, é o mais provável de acontecer. Uma estrutura de ensino e formação que produza centenas de milhões de pessoas capazes de raciocínio crítico soa utópico: é caro, muito caro, e dirão os maiores interessados que teria um custo proibitivo. Mas o fator preponderante é provavelmente que gente desse tipo é dura de convencer, cooptar e, claro, controlar. Esse, sim, é um custo muito elevado.

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A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

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O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

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Brasil, descoberta, economia, história, ironia, opinião, reflexão, São Paulo, trânsito, tristeza

Se um estoura, estouram todos (ou O Sapo de La Fontaine)

Sapo gordo prestes a estourar (La Fontaine)
É feio dizer “eu avisei” ou “eu já sabia”; mas acontece que, bem, eu avisei. E eu já sabia. Com as ferramentas rudimentares do raciocínio econômico que tinha aprendido a manusear ao final de uma formação quase involuntária, consegui provar por A+B que, não importa em que direção aponte o gráfico de crescimento do PIB brasileiro, a cidade de São Paulo caminhava com destino certo para o colapso definitivo. Isso, perdoe reiterar, é o que eu dizia há coisa de cinco anos. Mas só hoje, ao tentar discutir soluções para o problema do trânsito, a sociedade e seus governantes percebem o óbvio.

Bem que tento conter o impulso de me vangloriar. Mas lembro dos fins-de-tarde nos botecos da Augusta, contemplando a guerra entre carros, motos e ônibus, tomando cerveja gelada enquanto os afoitos profissionais derretiam na tentativa de voltar a casa; lembro dos amigos a rir, já altos, da exposição detalhada de minha teoria. Lembro que eles consideravam impossível duas tendências opostas darem o mesmo resultado. Enfim, só quero lembrar a eles que estava tudo previsto.

Aqueles meus cálculos contemplavam duas possibilidades, ou seja, um Brasil em franco crescimento econômico, digamos, quase um novo milagre; ou um Brasil estagnado, irremediavelmente estagnado, pior ainda do que foi nos anos 80 e 90. Em ambos os casos, a própria concentração pantagruélica de riqueza na terra que um dia teve garoa se encarregaria de sufocá-la. Vejamos, em primeiro lugar, o que aconteceria se o país não conseguisse retomar o crescimento:

À primeira vista, a idéia não parece má para a vida paulistana. Sem crescimento econômico, vendem-se menos carros, constroem-se menos arranha-céus, menos pessoas se espremem nas plataformas do metrô, menos aviões chegam e partem de Congonhas. Olhando assim, não parece terrível, para a cidade de São Paulo, que o país siga estagnado. Acontece que, como de hábito, a coisa não é tão simples. Mesmo estagnado, o país produz novas pessoas; é gente que precisa encontrar trabalho e, como já se viu durante décadas em nosso país, vai atrás dele onde ele está. Conseqüência: o fluxo de gente em desespero, fugindo da miséria, que chegaria em São Paulo em busca de emprego não deixaria de aumentar. A cidade ficaria ainda mais apinhada, mais favelizada, mais desigual e, bem provavelmente, mais violenta. Em duas palavras, ela sufocaria.

E se o país enriquecesse, (sem redistribuir a economia pelo território)? Nesse caso, o crescimento dos investimentos, o aumento da renda, a queda do desemprego, a pressão por novos empreendimentos – em resumo, tudo que acompanha o crescimento econômico vigoroso – tornaria a cidade intransitável em dois segundos. E irrespirável, naturalmente. O horizonte sumiria de vez, as aeronaves se chocariam, tentando pousar no meio da cidade, o barulho de helicópteros ficaria insuportável; no metrô, um grito de “fogo”, “rato” ou “tarado” causaria uma onda de choque que atiraria os cidadãos mais próximos da linha sobre os trilhos eletrificados (já é assim). O caos, que estava evidente para qualquer um com o mínimo senso de civilização, ficaria patente.

Na última semana, li diversos comentários sobre os recordes de engarrafamento em São Paulo. 180 quilômetros, 190, 200, 220. O metrô teria sido uma solução, mas é tarde, não dá tempo. Tampouco bastaria a proposta de pedágio urbano: por falta de opções, os carros pagariam, mas continuariam circulando quase tanto quanto hoje. Há mais de dez anos, li que o prejuízo com o trânsito, só em São Paulo, passava da casa do bilhão e meio de dólares por ano. Hoje, deve ser o triplo disso. Já era uma cidade em que eu não conseguia trabalhar direito, porque já chegava “no serviço” (como se diz) esgotado. Hoje, tremo de lembrar.

A única solução para São Paulo e, de maneira geral, para o Brasil e suas metrópoles, é repensar nossa lógica econômica. Precisamos tomar consciência de nossa dificuldade em romper com a tradição do Convênio de Taubaté. Eis o ponto-chave nefasto de nossa história, que escancarou, em papel passado, nossa escolha pelo latifúndio. Passamos dos cafeicultores aos industriais, depois aos bancos, mas ainda somos os mesmos. Queremos concentrar a lavoura (em sentido metafórico), queremos crescer com a energia que sugamos dos vizinhos, e ainda acreditamos demais em superlativos: de que vale termos o maior estádio, a segunda maior frota de automóveis e terceira de helicópteros, a maior sala de concertos, as maiores cidades? Do outro lado, o país ainda produz miséria, ignorância e barbárie em profusão. Voltando à realidade de São Paulo, temos uma Berrini que vai se verticalizando, enquanto, ao nível do solo, a vida é, há tempos, insuportável. Má escolha.

Sem desconcentrar a economia, integrar o país e desenvolver as regiões, ou seja, o território como um todo, o país e sua maior cidade estão condenados. É o anátema da cobiça. Mas isso é apenas o evidente. São Paulo, primeiro, cresceu como centro industrial e era um modelo para o resto do país; locomotiva, dizia-se. No meio do caminho, o maquinista parece ter exagerado no carvão; achacado pelo espírito do Convênio de Taubaté, depenou das tábuas os demais vagões, para continuar acelerando. A cidade se pôs a concentrar o setor financeiro, o cultural, o varejista, o esportivo, o editorial, o aéreo…

Faz lembrar o sapo da fábula de La Fontaine, que queria ficar do tamanho de um boi. Foi se enchendo de ar, cresceu, cresceu, até que estourou. No caso de Sampa, o maior problema é que tem um país em volta. Se um sapo estoura, estouram todos. Parece que a barriga do bicho já apresenta algumas rachaduras preocupantes. E as perspectivas de crescimento para o PIB brasileiro em 2008 vão além dos 5% de 2007. Não tem metrô, pedágio ou rodízio que sirva de esparadrapo para um sapo tão inchado.

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