arte, barbárie, descoberta, desespero, deus, economia, escândalo, estados unidos, ironia, modernidade, obituário, opinião, passado, Politica, reflexão, religião, trabalho, transcendência

Litania para o capital

Fuçando nos arquivos mais recônditos deste HD, acabei encontrando a brincadeira que segue abaixo. Foi escrita quando eu estava na faculdade (e, aliás, este HD nem fabricado era), para provocar meus colegas corretores da Bovespa, que andavam um tanto nervosos, conseqüência de alguma dessas crises por aí.

Lembro-me particularmente de um desses meus amigos, a quem perguntei, por pura gaiatice, já sabendo a verdade, se a corda estava apertando demais o pescoço da empresa em que ele trabalhava. (A tal empresa foi absorvida por outra bem maior, poucos dias depois.)

Pois bem, a resposta do rapaz foi adorável: “Agora, só resta rezar.”

Passei o dia imaginando como rezariam os colegas do rapaz, logo antes da abertura dos negócios, à espera do retinir do sininho. Seria como uma grande celebração, engravatados de joelhos, mãos unidas, ar de introspecção. Aos poucos, vai se erguendo uma voz coletiva, um grande uníssono, para este que, em nosso século, tomou o lugar que já foi de Deus e outros deuses.

Enfim, segue abaixo um esboço do que clamariam os infelizes. Já vou avisando a Duncan Niederauer que cobrarei os direitos autorais se ele quiser adotar a nova oração nas cerimônias da NYSE.

.

Litania para o capital

.

Ó Vós, que permitis, divinamente,
A implosão de todo patrimônio!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

.

Ó Vós, que sois pai de todas as Bolsas,
idolatria de derivativos!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

.

Ó Vós, que distribuís as sementes
da fortuna e da fome, cegamente!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

.

Ó Vós que podeis prever o porvir
daqueles que abdicam de consumir!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

.

Vós que negais os frutos do trabalho,
escutai as preces do investidor:

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas!
Padrão
alemanha, barbárie, costumes, crônica, crime, descoberta, desespero, direita, doença, economia, escândalo, esquerda, estados unidos, frança, francês, guerra, história, hitler, imagens, inglaterra, Itália, modernidade, opinião, paris, passado, pena, Politica, prosa, rússia, reflexão, sarkozy, tempo, tristeza, vida

A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

<!– @page { size: 21cm 29.7cm; margin: 2cm } P { margin-bottom: 0.21cm } –>

O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

Padrão
arte, barbárie, cinema, frança, francês, imagens, ironia, modernidade, opinião, prosa, reflexão, reportagem, tempo

Houellebecq e sua ilha

Acabou de sair por aqui um filme dirigido por Michel Houellebecq. Fiquei curioso para vê-lo, embora a somatória de todos os trechos seus que li não dê um livro inteiro. E não li por birra, simplesmente. Sempre tive a impressão de que seu jeito polêmico era forçado. A antipatia é uma das estratégias de marketing mais exploradas pelos autores hodiernos, não me pergunte a razão. Temendo que minha opinião sobre o escritor contaminasse minhas impressões sobre sua obra, me abstive de abrir um volume de Houellebecq. Mas fui ver o filme, graças a uma promoção de início de outono que atirou lá para baixo o preço dos ingressos de cinema em Paris. Passamos a tarde inteira de domingo entrando e saindo de salas de exibição, numa maratona que começou com uma comédia musical americana e terminou com uma ficção científica metida a conto filosófico. Se o sentido tivesse sido o oposto, talvez tivéssemos dormido melhor, mas o fato é que fechamos a noite com as imagens desiludidas de A possibilidade de uma ilha (La possibilité d’une île).

Em poucas palavras, o que para alguns é fundamental, mas para mim não tem importância alguma: o filme é bom? Não chega a ser. A ironia amarga da prosa de Houellebecq mal dá o ar de sua graça, assim como a condensação do tempo e da identidade individual, pedra de toque do livro que deu origem ao filme. As personagens não têm carisma, ao contrário do livro, em que mesmo o grande líder religioso é um cínico desiludido. (Antes que me pergunte como sei disso, se não li o livro: folheei-o.)

Agora que estou livre da obrigação de avaliar o filme, posso entrar nos assuntos muito mais interessantes que ele pode gerar. Em primeiro lugar, fico imensamente feliz de saber que ainda é possível fazer filmes assim. Uma linguagem longe do convencional, longos planos e pausas, atores imóveis, ângulos oblíquos, cortes inesperados. Como nos bons tempos do cinema. É verdade que, apesar das entradas quase gratuitas, a pequena sala estava praticamente vazia. Não mais de oito pessoas, enquanto no tal musical americano (muito divertido, por sinal) saía gente pelo ladrão de uma sala muitas vezes maior. Mas isso não quer dizer nada. Bem ou mal, Houellebecq conseguiu dinheiro para adaptar seu próprio livro da maneira como bem entendesse, e isso é sinal de que ainda existe alguém disposto a investir nas empreitadas arriscadas. Certo dia, alguém deu uma soma considerável na mão de Fellini para ele imprimir no celulóide seus sonhos absurdos. Não sei quem foi o empresário visionário, mas garanto que ficou rico. Tampouco sei quando surgiu o consenso de que o público é formado única e exclusivamente por gente sem imaginação e dopada pelas fórmulas consagradas de Hollywood. Só sei que é uma lástima.

Mesmo não sendo o caso de Houellebecq, existe uma legião de cineastas cheios de boas idéias e muito talento, jovens, arrojados, inventivos, sedentos por uns caraminguás para rodar o primeiro longa. Esse pessoal não é invenção minha, qualquer festival de curta-metragens revela um caminhão de gente interessante. Entre eles e as obras-primas da próxima geração, o único obstáculo é o investidor, que precisa perder o medo do fracasso, para aprender a apostar no longo prazo. Foi assim que os empreendedores do passado ficaram ricos; não foi pela repetição temerosa de velhas fórmulas cansadas e disseminadas ad nauseam.

* * *

Agora, ao segundo ponto que eu gostaria de levantar. Dizem que Houellebecq tem uma personalidade desprezível. Eu não teria como avaliar. Mas é certo que uma das coisas interessantes sobre sua obra literária é a dificuldade de distinguir o que é opinião sua e o que é pensamento das personagens. Os protagonistas de seus livros costumam ser pessoas vis, baixas, rasteiras, vulgares, cínicas, inescrupulosas e por aí vai. Mas a tinta consegue, com o concurso de uma certa habilidade estilística, misturar os traços de forma tão indiscernível, que idéias e conceitos passam por entre os dedos do julgamento, como areia fina. É Houellebecq o racista, ou seu herói? Autor ou personagem, qual é o cretino? São exemplos das discussões que os literatos gostam de ter a respeito do escritor.

Pois bem, acontece que o próprio escritor resolveu colocar na tela um de seus livros. Deve ser o sonho de muitos artistas, imagino. É muito raro que um filme seja melhor do que o livro de que é adaptação, a não ser nos casos em que o texto original é um romance de quinta, e a resultante cinematográfica, uma obra-prima. É o caso de Psicose, por exemplo. No mais das vezes, vale mais a pena perder uns dias sobre o papel do que um par de horas diante da tela. Logo, o melhor é criar algo inteiramente diferente do original, que não possa ser comparado a ele, que provoque no máximo uma ligeira reminiscência.

É que, dizem, uma imagem vale por mil palavras. Eu estaria mais inclinado a considerar que uma imagem vale por uma imagem; uma palavra, por uma palavra. São linguagens que atingem campos diferentes da nossa sensibilidade. Uma cena não é o mesmo que a descrição da cena, nem é o mesmo que sua representação. Assim, alguém que assista a um filme com a cabeça de um leitor está fadado a não compreender absolutamente nada do que tem pela frente.

É nessa distinção que Houellebecq entrega o ouro. A grande vantagem do texto escrito é que, embora demore muito mais tempo para ser absorvido do que o visual, deixa sempre um espaço enorme para a imaginação. Por mais detalhada que seja uma descrição, ela não entrega pronta a figura descrita, como acontece na tela. Determinadas idiossincrasias do autor conseguem manter-se veladas, se for essa sua intenção. A imagem exige cuidados maiores. A escolha dos atores tende a reproduzir os mecanismos inconscientes de quem os escolheu, e no caso de A possibilidade de uma ilha, o diretor é o próprio escritor. Paisagens, cores, cortes, tudo isso é parte do discurso, tanto quanto vírgulas, parágrafos e capítulos no romance original. É possível ler através desses detalhes.

Não sei como explicar, para alguém que não o viu e provavelmente não o verá, o que o filme deixa revelar, provavelmente sem querer. Chego a imaginar, também, que posso ter projetado minhas próprias opiniões sobre a obra; isso não é de todo impossível. Mas, ressalvas à parte, o tom decadentista de Houellebecq parece desnudar-se inteiramente. Revela-se, como eu desconfiava, forçado. Tive a impressão de que o autor não acredita em seus próprios argumentos.

A desolação que as paisagens deveriam transmitir parecem estar só na reiteração dos horizontes calcinados, enfileirados sem sentido, incapazes de tocar o espectador. A acidez do protagonista, interpretado por Benoît Magimel (que já encarnou Luís XIV), parece vir mais de sua fisionomia peculiar do que de sua postura diante dos fatos que presencia.

A heroína silenciosa, cujo clone vagueia por terras inóspitas após o desaparecimento da humanidade, faz um esforço enorme para expressar seu desespero. Mas não é fácil, sobretudo se comparamos sua situação à do clone do protagonista, que passeia em filosofices verborrágicas por campos e vales, acompanhado de um cãozinho muito simpático. Não estou querendo corroborar a idéia de que Houellebecq seja racista por fazer cair repetidamente sua protagonista negra, seminua, ao chão de um deserto, sem lhe dar ao menos uma fala para mostrar seu trabalho de atriz, enquanto o rapaz esbelto, louro e culto paira sobre a desgraça humana com um belo terno negro e um cajado, falando sem parar. Mas é difícil entender por que tanta desigualdade, mesmo depois que acabou o sistema capitalista.

Não quero demover os amantes da literatura de uma ida ao cinema para ver A possibilidade de uma ilha. Pelo contrário, apesar de todos os defeitos que eu acreditei encontrar no filme, o fato de que ele exista é um acontecimento a ser aplaudido. Ademais, para quem gosta mesmo de livros, de Houellebecq ou não, é uma oportunidade rara ver como um autor adapta sua própria obra para a tela.

PS: Para quem lê em francês, eis uma discussão interessante sobre o filme.

E outra aqui, indicação de Bruno Carmelo.

Padrão
arte, barbárie, Brasil, cinema, crime, desespero, opinião, paris, roubo, São Paulo, tristeza

Nada me tira do sério como um filme picareta

Fogueira Para Um Mau Filme
Minha maior dificuldade na hora de falar de filmes que vi, livros que li, músicas que escutei e por aí vai é que não consigo ser elegante quando me sinto agredido pelo autor. Friso que isso é diferente de não gostar: posso sair de uma sessão com a impressão de que aquele filme não era para mim; posso, ao terminar um livro, considerar o autor fraco e o enredo desinteressante; posso não ser atraído por um ritmo ou uma melodia. Em todos esses casos, até que tudo bem. Não gostei e ponto; que outros gostem, não faz mal, e viva a democracia.

Coisa muito diversa é quando fica patente, ao subirem os letreiros (no caso do cinema), que alguém ali quis me fazer de otário. Pode ser o diretor, o roteirista, o protagonista, pouco importa. Aceito com o coração aberto uma produção pobre, até mesmo, em alguns casos, descuidada. Pontos de vista estéticos, mesmo filosóficos, muito diferentes dos meus, idem. Picaretagem e cretinice, jamais.

Mas nem sempre a gente vai ao cinema sozinho. Podemos ir, vamos supor, com a namorada e um grupo de amigos. Podemos ser todos confrontados, juntos, com um filme que não tem o menor respeito por nossa inteligência, paciência, tempo, dinheiro, enumere o que quiser. Podemos todos sair revoltados da sala, querendo o sangue de quem cometeu o crime e de quem o financiou (grande chance de terem sido nossos impostos). Mas, como estamos do outro lado do oceano, não podemos fazer nada. Sob efeito da irritação, a namorada e os amigos só podem se voltar para você e inquirir:

– E então, blogueiro? Vai escrever o quê sobre essa maravilha?

Você explica aquilo que eu já disse: não consigo ser elegante ao desancar um filme. Tampouco estou disposto a abrir mão da elegância. Melhor calar, principalmente porque o filme em questão merece todos os adjetivos impublicáveis que eu poderia elencar. A namorada e os amigos fazem cara feia. Insistem, você se nega. Finalmente, cede um pouco, promete pensar, mas só na esperança de que eles esqueçam o assunto.

Pobre esperança! No dia seguinte, os amigos voltam à carga. Pensou? Escreveu? Você fica encabulado ao admitir que não. As massas, que é o que você gostaria que fossem sua namorada e seus dois ou três amigos, o conclamam a deixar de tolices e descer a lenha no tal do filme. Você, que é inflexível como chiclete, acaba cedendo.

Muito bem, chega de nariz de cera: depois de ver A Via Láctea, juro pelo asfalto da Paulista que nunca mais assistirei a um filme de Marco Ricca. Não vou chegar a desejar, como esbravejou uma desconhecida na poltrona à minha frente, que ele queime lenta e dolorosamente nas chamas do inferno. Verdade que algo parecido chegou a passar pela minha cabeça, mas é demais. Ou sou eu que sou condescendente demais. Por outro lado, bem que os negativos desse filme podiam queimar, e nem precisa ser no inferno. Basta que eu não corra o risco de, um dia, sem querer, topar com um trecho na televisão.

Não sei o que me levou a trocar um dia de sol no cais do Sena por um filme do Marco Ricca. Por acaso eu não sabia que ele é uma espécie de anti-Midas cinematográfico? Aliás, teatral também. Tudo em que mete a mão vira lixo, para não usar um termo deselegante demais. O problema é que, de uns tempos para cá, a figura resolveu se meter a fazer filmes intelichentes. Por quê, meu Deus?

Assim como no último, Crime delicado, o próprio Ricca interpreta um cara intelichente e atormenta-a-a-ado, pobrezinho. Mas é praticamente a mesma pessoa, para não dizer que é o próprio Ricca. No outro, era um crítico teatral; neste, é um escritor frustrante, isto é, frustrado. Tudo bem, a produtora é dele, o dinheiro veio sei lá de onde, mas está na mão dele e ele faz o que quiser. Pode até meter uma câmera em close em cima de si mesmo durante uma hora e meia e obrigar o público a ouvir seus poemas mal recitados enquanto perdigotos se espalham pela tela. Excelente programa, e peço perdão pela imagem um tanto repulsiva.

Desculpe estragar a surpresa do final, mas, bom… não é surpresa nenhuma, então não tem problema. A história foi a seguinte: um belo dia, alguém deve ter montado Vestido de Noiva (Nelson Rodrigues) em São Paulo, e convidado Marco Ricca para a estréia. Grande erro. Ele gostou da idéia de alguém que é atropelado e delira entre a vida e a morte. Só esqueceram de avisar a Marco Ricca que Vestido de Noiva é uma obra-prima porque Nelson Rodrigues é um gênio. E não basta enfiar no filme umas cenas metidas a poéticas, uns diálogos metidos a intelichentes, uns flash-backs e outros truques banais para tornar um filme genial e seu produtor, um gênio.

É preciso um algo a mais. E, com todo respeito à Alice Braga, que esteve bem em outros filmes, e ao sobrinho da Daniela Thomas, cujo nome me escapa, maus atores não são esse algo a mais. Trilha sonora banal e, ao mesmo tempo, metida a besta, muito menos. Uma súbita, desnecessária e muito mal executada reconstituição de época, então, nem merece comentários.

Talvez Marco Ricca tenha buscado a polêmica. Talvez para alavancar seu nome, o que explicaria que apareçam, logo ao final da última cena (talvez para não dar tempo ao púbico de escapar), estourando o tamanho da tela, as dez letras que o constituem. Como se dissessem: eis o culpado! Ecce homo, para ser tão pedante, ou melhor, intelichente quanto o filme. Mas esse desígnio também deu com os burros n’água: não há polêmica alguma, pelo menos na sessão em que estive, com uma sofredora centena de pessoas, o veredito foi unânime. Quem não se levantou a meio filme fugiu imediatamente ao final. Exceção feita, é óbvio, para os que dormiam.

Nenhum amigo lhe avisou, ao ver o copião, que o filme é vergonhoso? Que sua tentativa de se mostrar intelichente redundaria em um papelão histórico? Será que ele mesmo não percebeu? Agora estamos nós, pobres cinéfilos, obrigados a engolir um tijolo. Vendido para o mundo inteiro. Imagino o dono de uma sala de exibição estrangeira que presencie um desastre tamanho. Vai certamente pensar: “nunca mais penso em comprar um filme brasileiro…” É que o estrangeiro não sabe discernir nossas produções umas das outras. Ele não pode, como é meu caso, deixar de ver só os filmes do Marco Ricca. Vai acabar largando tudo. Uma pena.

Deixe ver se tenho mais alguma coisa a comentar sobre esses rolos de filme jogados fora… Ah, sim: antes de escrever uma cena que se passa na Livraria Francesa do centro de São Paulo, não custa dar uma passada lá. Eu sei que o centro é de difícil acesso, é feio, é sujo, é perigoso, é tudo isso e muito mais. Mas pelo menos não veríamos pessoas procurando (e o pior, encontrando) Drummond, Bandeira e João Cabral no original, numa loja que só vende Prévert, Desnos e Mallarmé. Outra solução, se a idéia era filmar lá dentro, seria simplesmente não dar um close no painel da loja. Pode parecer intelichente ter no filme um diálogo na Livraria Francesa. Mas, puxa, com uma gafe dessas, acaba ficando estúpido.

Chega de ser deselegante. Talvez eu devesse fazer um artigo inteiro para as boas novas, mas ora, tarde demais. Vai só um parágrafo, e bem rápido. Hoje, dia 12, este blog completa dois anos de existência. Nesse meio-tempo, ele mudou de cara algumas vezes, até que, por fim, mudou de casa. E cresceu. Pouca coisa, mas saiu do zero! Longa vida ao Para Ler Sem Olhar! Hip-hip, hurra!

Padrão
arte, Brasil, cartola, crônica, descoberta, flores, imprensa, música, paris, reflexão, saudade

O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

Padrão
arte, Brasil, direita, esquerda, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Informação e ânimos exaltados

Todos+os+homens+do+presidente+capa
Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outros, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas crônicas da Folha, enviadas sempre com atraso, terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox News é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja autobiografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem “mentiras”. Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade.

E, pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: “Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!” Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de “denúncia”. Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso “fontes ligadas ao palácio afirmam que…”, os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama “jornalismo”. Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

Padrão
Brasil, descoberta, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Um repórter, finalmente!

%C3%A1rvores+no+inverno

Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

Padrão