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Um eu, um ambiente, mil objetos (Mudar de endereço, parte 1)

Para quem passa o dia correndo atrás de assunto, nada melhor do que uma mudança. Vai ver, é por isso que gosto tanto. Aos dez anos, eu acumulava memórias de quatro endereços em três cidades; não é à toa que a estabilidade do decênio seguinte foi tão incômoda. Assim, depois de diplomado e empregado, alguma força interna me empurrou de novo, agora por conta própria, para o deslocamento: novos bairros, cidades, países – e aqui já faço projeções, sonhando com os cantos em que posso vir a me instalar…

Essa tal força foi tão poderosa que me levou a rasgar, mais de uma vez, diplomas e empregos, em nome desses saltos que levam móveis adiante e deixam paredes para trás. Não quero com isso inventar uma história de que eu teria alma de andarilho ou coisa assim. Eu bem que gostaria, mas me falta o espírito de aventura. Meu caso é outro. É uma espécie de pânico. É como se, aos poucos, eu me tornasse um só com minha casa e, nesse processo, murchasse… não, estou me explicando mal. Vou tentar de outro jeito.

Gostaria muito de conseguir conceber meu endereço como só o lugar aonde chega minha correspondência. O imóvel que ocupo, o andar, a porta, a área útil… Como se fosse um acaso, um dado do mundo concreto em que esbarro sempre que levanto de manhã, como as ruas que me conduzem ao escritório e as contas que devo pagar. Se eu pudesse acreditar nisso, ele seria um, eu seria outro, numa relação tão casual quanto a de um tigre com um tamanduá no zoológico.

Mas sempre que tento pensar assim, acabo por perceber que estou mentindo. Pior: mentindo para mim mesmo, o que ultrapassa a desonestidade e cai diretamente na precipício da tolice. Afinal, se me perguntam quem sou, só posso dar como resposta o lugar em que moro, como chego no trabalho, onde compro minha comida, o que vejo todo dia, quem são meus vizinhos, que quadros pendurei, como organizo minha biblioteca. Então que raio de separação medíocre é essa?

Se é verdade que o lar é a fortaleza de um homem, também tenho de aceitar que ele é o centro de meu campo de batalha. É minha cabeça-de-ponte para dominar a cidade. É o fim das minhas linhas de abastecimento. É o quartel-general de meu repouso no fim-de-semana e ponto de lançamento para as expedições no resto do tempo. É meu almoxarifado e meu arsenal.

Mas o oposto também se impõe: sou aquele que frequenta os cinemas do bairro. Que colocou as prateleiras ao lado da porta, longe da janela. Que escolheu as cortinas grossas, garantindo a obscuridade para o sono de domingo. Eu sou a vista que encaro quando as ideias não vêm, sou a porta emperrada do banheiro e a infiltração indetectável na cozinha. Sou o bom-dia que dou a contragosto aos vizinhos; sou a garagem apertada demais; sou o comércio de rua que persiste, embora moribundo.

E, no entanto, o pânico. A certeza de que haveria outras perspectivas e outras identidades, se não fosse essa, já, tão enraizada. Os desejos em conflito: aprofundar ao infinito a dominação deste canto? Ou atirar ao passado essas páginas e esse ser, para começar uma nova infância do outro lado da cidade? Construir-se demais parece, às vezes, um múltiplo assassinato de potenciais; mas a repetição da ruptura arrisca deixar pouco mais do que escombros, quando tudo se acabar. Pânico, sim, mas junto com a reverberação de um renascimento. Sem que, para isso, seja preciso uma morte.

Ao contrário! Desmontar um apartamento é cansativo, mas é das maiores injeções de vida que podemos receber. Recuperamos do fundo das gavetas os folhetos e badulaques que tiveram importância há anos, mas já caíram no esquecimento. Nesse instante, tomamos consciência da vida que fomos (porque não levamos uma vida, somos uma vida), e essa consciência é tão forte que parece nos fazer revivê-la, no instante mesmo em que apagamos suas marcas e a estrutura de existir que ela tinha criado.

Em seguida, vem todo o esforço de transportar os fragmentos de si mesmo. De uma porta a outra, lá se vão objetos e memórias, dentro de caixas que estampam – na verdade, gritam – o provisório, o interlúdio, o desmanche de toda uma identidade. É um parto traumático e ao mesmo tempo emocionante, embora muito menos que o primeiro, o original, que nos colocou neste mundo de potenciais frustrados e realizações subestimadas.

Só depois é a nova vida, nova existência, uma infância em que precisamos conhecer outro supermercado, outra agência de correios, outros vizinhos; onde precisamos aprender a nova distribuição das gavetas e corredores, onde ainda tateamos quando acordamos no meio da noite e queremos assaltar uma geladeira que ainda não sabemos tão bem onde está. É assim que reconstruímos nossas perspectivas e nossa identidade, nosso ponto-de-vista sobre a cidade e o mundo, sobre nós mesmos e nossos caminhos.

Pânico e coragem são as palavras que resumem as sensações de uma mudança. A difícil e inevitável escolha daquilo que vai ou fica, daquilo que merece a lixeira ou a recuperação das cinzas do esquecimento. Parte do que nós somos está na relação que estabelecemos com objetos e ambiente, e que objetos e ambiente estabelecem conosco – porque, ora, eles também têm seu poder de escolha. Ao deitar fora uma parte da maldita papelada, deitamos fora também uma fração da forma de viver que levávamos (ou éramos). Em outras palavras, decidimos ser outros.

Simplificando: como é difícil se ajustar a uma casa nova! Mesmo quando sei que é melhor do que a antiga, que nela provavelmente serei mais feliz, que deixo para trás uma série de problemas que jamais teriam outra solução. Mas é como é: estou renascendo sem ter perecido; e acredito que mais essa estranha experiência pode render muito pano pra manga, o que é sempre positivo para este pobre perseguidor de assuntos.

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A última curva do círculo

Um súbito azedume, raiva contra as folhas amassadas e secas. É injustificado o travo na glote ao pisar sobre elas, mortas e embebidas na água suja da estação. Daqueles caminhos cobertos de amarelo e vermelho, em que o vento dos belos dias erguia redemoinhos, restaram essas pequenas sombras encarniçadas, molduras marcadas pelas solas dos sapatos. E ao erguer os olhos para as poucas que ainda se agarram aos galhos, amedrontadas com a perspectiva da queda e da morte inevitável, não é a melancolia usual de um jovem dezembro que me ataca, mas essa absurda aversão, esse horror despropositado.

Meus ombros não têm marcas de pegada. Têm, sim, o peso de um tempo indiscreto, imperador narcisista que faz questão de se exibir. Deixa em meu corpo um sinal, o afundamento das espaldas, o desejo do tronco de esconder-se do olhar severo que o déspota lhe lança, como a todos. Confundo-o com a chuva, que amolece o tecido da casaca e a aba do chapéu, tal qual o deteriorar-se dos meses me abala o espírito. Tento espanar, com a água, a pressão do tempo. Tento abrir os ombros e preencher os pulmões. Mas o ar que atende ao convite me ofende. Gelado, queima os caminhos; empapado, enrijece minhas faces.

Desisto. Recolho-me novamente, inerte, como inertes estão os cadáveres em que piso, ainda que tente evitá-los, desgostoso.

Reconheço que basta contar quatro meses para brotarem as próximas folhas, minúsculas, redondas, de um verde transparente. Reconheço que é o ciclo, infinitamente mais ancestral do que qualquer ancestralidade a meu alcance. Erradas estão as folhas que insistem em não tombar, que imploram a uma natureza que não responde, que choram quando fustigadas pelo vento, que secam no pé e não entendem a condenação definitiva. Está inscrito, em sua natureza de folha, o destino do outono. Morrer. Nascer em abril. Perecer em novembro.

Eu é que não vou perecer com a aproximação do inverno. Mas sinto, intimamente, que já experimentei diversos ocasos, uma suíte deles, desde que as cores começaram a mudar e os ventos assumiram sua inclemência. Morro com uma folha, morro com mil. Morria alegre com a hemorragia de outubro, quando elas caíam como lágrimas de sangue e jorravam ao longo das aléias. Morro novamente, agora amargo, enquanto os ciprestes se preparam para a estabilidade do olvido.

Sei por isso que sigo o mesmo ciclo das folhas. Estamos na mesma curva, na mesma etapa, a um passo do mesmo mergulho. Se, enquanto a terra permanece congelada, não estarei morto, como elas, estarei ao certo paralisado. Estarei diminuído, abafado pelos panos que me mantêm vivo, pressionado pelas precipitações enervantes, quase sem folga. Como os vegetais, subsistirei na esperança de um novo abril, a nova reversão da curva, do ciclo, do círculo, o renascimento que se vive a cada ano, a volta, o alívio.

Creio que seja essa expectativa que me atemoriza. A evidência de que existo agrilhoado aos ciclos e de que esses ciclos são um só. Minha vida. Entrego-me ao ódio por essas folhas, não por elas, que nada podem, mas pela hélice a que estão amarrados meus pulsos e tornozelos, como elas aos galhos, antes da queda.

Como se falasse, dirijo a palavra às folhas mortas e lhes pergunto por que não ficam assim, por que não se contentam em apodrecer e seguir eternamente como húmus. Brotar novamente na primavera, que terror! É o supremo ato de submissão, um esforço para se entregar mais uma vez, entre tantas, à parábola que resultará em outra morte, em mais lama, em mais pegadas.

Eu me encheria de admiração por elas, se as folhas se recusassem a recomeçar. Elas teriam a força que a razão quis atribuir apenas a si própria, e que tanta desgraça causou aos entes concretos, ao se misturar aos corpos, templos do necessário, sede da condenação ao tempo. Diante da recusa heróica dos vegetais, eu me questionaria.

Eu me perguntaria, vexado, perturbado, por que eu mesmo, por que nós todos, que temos mais vontade do que as folhas, não podemos dar um passo para fora do destino. Da fatalidade, de uma forma de vida que se nutre infinitamente da própria morte. De um estágio que sabemos superar, mas a que nos curvamos como escravos.

Por que nos aferramos a ser trágicos? Eu desejaria saber. Seria a manifestação que eu gostaria de dar à minha inveja dos vegetais forros. Meu rancor mudaria nessa inveja se, e somente se, eu visse, nas folhas, a prostração transmutada em liberdade. Até lá, como parece inevitável, vou morrendo para viver.

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Dos sustos

De súbito, salta a meus olhos a razão dos sustos. Refiro-me àqueles que parecem se abater sobre cada vivente de tempos em tempos, regulares como as crises sistêmicas do mercado financeiro, mas bem mais freqüentes. Esses traumas, maiores ou menores, são o mecanismo que a natureza criou para nos trazer de volta à vida, quando estamos, sem saber, há muito levando os dias como autênticos defuntos.

Explico. É um engano conceber nossa existência como um arco no tempo, embora seja nossa interpretação mais corrente: uma parábola que salta do nascimento, na maturidade atinge seu cume suave e daí vai descaindo pela velhice, até reencontrar o eixo das abscissas quando a morte nos alcança. Uma curva assim tão suave não pode representar a vida, essa que é tudo, menos suave, e tão menos viva quanto mais tranqüila e regular.

Para quem a observa com atenção, diria mesmo com carinho, a vida desvenda seu doce segredo. Ela se revela inteira, como um fractal surpreendente. Dentro do tempo que nos é reservado nesta existência, que por sinal é muito pouco, temos o dom de nascer muitas vezes, em várias direções, com intervalos que podem ser incrivelmente curtos. No fundo, em vez de uma só, levamos levamos várias vidas, um fragmento dela a cada vez. E isso faz de nós caleidoscópios pulsantes, com todas as cores e movimentos que um caleidoscópio deve ter.

Que isso implique um sem-número de pequenas mortes para cada um de nós não deveria ser causa de aflição. Quem chegou até aqui já provou sua resistência. Não sucumbiu aos muitos finais que já sofreu, nem ao medo de cada reviravolta, mesmo se chegou a pensar que não mais poderia. A última morte, aquela que atinge também a carne, arrisca perder-se no esquecimento, depois de tantos traumas e tantas primaveras.

É assim que passam os anos, é assim que se forma aquele arco que, por desatenção, tomamos pela vida de verdade. Vivemos por um tempo, depois morremos sem saber. E podemos ficar anos, muitos anos assim. Pobres zumbis, cadáveres ambulantes mas asseados, confortáveis no esquife acolchoado de certezas em que nos enterra o quotidiano.

Quanto mais rápido vier o susto, melhor e menos traumático. Quanto mais nos acomodamos na segurança, tão artificial, que se apresentava, ardilosa, como objetivo maior de qualquer vida, mais teremos de sofrer para aceitar que há muito já não vivemos e precisamos nascer de novo, com o impulso de um bom susto. Mudanças desse gênero são quase sempre muito difíceis e deixam sequelas na versão renascida do defunto.

Como ele pode vir, esse tal susto, todos sabem. Quem se flagrar em dúvida deve desconfiar. Se jamais tiver passado por um, é provavelmente porque ainda está precisando. Ainda vive como um morto e não descobriu. Quando soar o alarme, soará em alguma forma inusitada, imprevisível, sorrateira. Eventos físicos e óbvios, talvez, como a experiência de quase ser atropelado, ou se cortar profundamente com uma faca de cozinha ao fatiar tomates. Mas podem sobrevir ainda os superlativos do padecer moral: separações, traições, desilusões.

Venha como vier, o susto é um novo parto. Acordamos para um mundo que tínhamos esquecido, isto é, acordamos para a vida. Descobrimos o quanto éramos mortos, quão idênticos eram nossos dias, como o são os dias da matéria inerte que fatalmente nos tornaremos. Somos atingidos, reagimos. Sentimos o sangue que corria em nossos vasos sem que déssemos por ele. É para isso que tomamos sustos, é por isso que desabam nossos universos.

Porque sofremos, podemos fruir. Eis um decassílabo que resume a existência.

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De dois plátanos

Platano
Bem no meio da região conhecida Batignolles, existiu até meados do século XIX um terreno largado, coberto de lixo deixado pelos fazendeiros do entorno, em suas idas e vindas para os mercados da capital. Não havia o menor motivo para prestar atenção no que houvesse sobre os tufos de grama anêmica. Eram objetos esquecidos, indesejados, pontilhando o espaço entre umas poucas árvores quase desfolhadas, tortas, irrelevantes.

Do dia para a noite, Batignolles se tornou um naco do 17o arrondissement de Paris, pelas ordens de Napoleão III (“o pequeno”, segundo Zola). Pequeno ou não, o sobrinho do diabo corso mandou transformar em parque aquela área perdida no meio de seu novo e estimado bairro burguês. Dando seguimento a uma folclórica fixação sua, quis algo no estilo inglês, em que os caminhos são curvos e a grama, impecável. Encarregou seu paisagista preferido, Jean-Charles Alphand, de canalizar a água e criar um córrego com pequenas cachoeiras e pontes, dando num lago artificial para os patos e cisnes negros que passariam a viver ali. Um canto para crianças, caminhos tortuosos, grama capinada e árvores substituídas, uma pequena estufa para uma única pequena árvore, trazida da Ásia e coberta de folhas até hoje. Alphand era um homem muito competente. A square Batignolles, século e meio depois, é um lugar delicioso para ver o tempo passar, pelo menos quando não faz muito frio.

De casa até lá, ando pouco mais de dez minutos. Um caminho que já percorri um sem-número de vezes. Sempre que precisei de sossego, inspiração, verde, rostos. É o lugar em que vivem os tais plátanos sobre os quais venho prometendo escrever desde o início do mês. São dois. Caules robustos e negros implantados com firmeza na terra, um ao lado do outro, seus galhos espalhados a uma distância desrespeitosa. Cobrem o lago inteiro, servem de pouso e guarda-sol para as aves, recortam a vista do céu como se quisessem nos lembrar de que a vida real está aqui, colada ao chão, e as copas das árvores mais vetustas são seu limite.

Até a última vez em que os vi, jamais tinha percebido que eram dois. Contemplava o emaranhado opulento de madeira escura e era só o que via: um emaranhado opulento de madeira escura. Desta vez, por acaso, e essas coisas só acontecem por acaso, vi-me parado diante de um dos troncos, que eu não conseguiria abraçar sozinho. Pude observar as ranhuras da casca, as reentrâncias na madeira, as cicatrizes do tempo, que acumula madeira em camadas, como uma vela que vai derretendo. Mas quanto tempo? Pensei que jamais saberia. Até que avistei, distraído, uma plaqueta verde pendurada, quase invisível. E descobri que se trata de uma árvore de 1860.

Aquele plátano silencioso mudou de figura no mesmo instante. Seu nascimento precedia de alguns anos o do próprio parque. Foi plantado pelo vento, não pelo homem, a quem só coube a sabedoria de não derrubá-lo e incluí-lo em seus cálculos. O lago recebeu seu formato tal como é simplesmente porque, com o tempo, uma bela árvore cresceria e abriria os galhos sobre ele, como asas de um cisne sobre os filhotes. Alphand subiu no meu conceito: além de paisagista competente, não comungava do maior vício de seu tempo, que era a fé doentia na razão e no planejamento humanos. Essa presunção estúpida, que derrubou monumentos e matas, teria levado qualquer engenheiro da época a impor ao lago o traçado de seu esquadro. Mas Alphand considerou que dali a 150 anos um plátano valeria mais do que uma piscina, e cedeu. Com toda razão.

E não foi a última conclusão que tirei do passeio. Mais uma meia-dúzia de passos e fui surpreendido com a informação de que não havia um plátano, mas dois, como eu já disse. Esse segundo tinha o caule ainda mais largo, escuro e áspero. Um grande buraco, à altura de meus olhos, banhava em breu o coração da árvore e revelava o heroísmo com que ela se mantinha de pé. Aquela imagem de força e decrepitude tinha a singular qualidade de ser ao mesmo tempo bela e sublime, se é que os guardiães da Estética me permitem falar assim.

Em seguida, procurei conferir a idade. A placa me deu mais informações do que eu precisava. Seus poucos numerais explicavam que já crescia a árvore antes mesmo de a região entrar para Paris. Os vendedores que atiravam seu lixo sobre a grama o faziam nas redondezas de um jovem plátano. Enquanto Haussmann botava a capital abaixo, folhas nasciam e caíam dos mesmos galhos, em obediência às leis da primavera e do outono, da mesma maneira como as vejo agora.

A regularidade do ciclo biológico não foi alterada nem com as barricadas de 1848, nem com os alemães desfilando pelas Champs-Élysées em 1870, nem com a violência da Comuna, no ano seguinte, nem com a chegada dos nazistas. Tudo isso nada significou para nenhum dos plátanos. Se a Sorbonne parou em 68 e em 2006 (mal comparando), os plátanos nem ficaram sabendo.

De repente, surpreendi meu pensamento nas palmeiras imperiais do Jardim Botânico, enfeitando os caminhos desde que éramos colônia. Quietas, belas, soberanas, enquanto tivemos golpes, ditaduras, escravos e reis, miséria e milagre. Lembrei de D. João VI e do hábito que temos de retratá-lo como glutão e ligeiramente retardado. Que seja, mas então são as palmeiras de um retardado que nos ligam com maior clareza a nosso passado, leia-se nossa história.

De lá para cá, derrubamos o morro do Castelo, abrimos a avenida Rio Branco, demolimos os prédios elegantes que lhe enfeitavam o entorno. Mudamos de capital, de regime, várias vezes de vocação econômica, ao sabor de caprichos nacionais. E as palmeiras balançando ao sabor de ventanias e chuvaradas. Neutras enquanto nossos pais e avós as contemplavam e deixavam de contemplar, elas acompanharam nossos nascimentos e mortes. Exatamente como esses dois plátanos que uma dúzia de crianças agitadas, dois passos à minha frente, tenta desenhar para um trabalho de escola. Plantados no mesmo lugar desde Napoleão III, até Sarkozy e sabe Deus quem mais.

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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