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Naturam expellas (parte 4)

[N.B.: esta é a quarta parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio de Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios. Nas duas partes anteriores, tratei de como foi conceitualizada a natureza no pensamento moderno, entre Bacon e Marx. É sempre bom lembrar que “natureza” é um termo polissêmico, e por isso se presta a muita manipulação…]

Leia também a PARTE 1.

Leia também a Parte 2.

Leia também a Parte 3.

chernobyl

A armadilha da tecnofobia

Foi por causa desse papel importantíssimo de um gesto intencional e técnico que, na escolha da tradução dos versos latinos, fiz questão de resguardar a figura da furca, o ancinho (ou rastelo, como se diz em São Paulo), em vez de enveredar pelo “violentamente” que muitos tradutores escolheram, em diversos idiomas. O ato é violento, claro, sobretudo por essa violência pouco divisável da sobredeterminação, que abre a via para todo tipo de abusos. Mas considero muito importante não perder de vista o artifício, a elaboração técnica desse gesto pelo qual a natureza se vê expulsa – temporariamente ou ilusoriamente. Expulsa de onde? Da casa, no exemplo da ode de Horácio; ou, de modo mais amplo, daquele mundo que os humanos habitam, ou crêem habitar: da cultura, das cidades, da economia.

Ora, expulsar a natureza com um ancinho. Horácio diz com toda clareza que existe um dispositivo intermediário, um objeto de fabricação humana, ou de uso imaginado pelo humano, para permitir que se expulse a natureza. Ninguém acreditaria que se possa expulsar a natureza simplesmente com as mãos. Aquele “ancinho” que se traduz como “violentamente” é uma violência à qual só se consegue chegar porque o corpo é inserido em um agenciamento técnico e, em paralelo, uma estrutura simbólica, indissociável, que amplificam e expressam seu próprio gesto, sua própria força.

Artifício da expulsão que é, também, sempre um artifício de expressão, e artifício performático: ao dizer que estou expulsando, transformo um determinado gesto numa expulsão, para todos os efeitos. Ou melhor: para todos os efeitos imediatamente apreensíveis! Aquilo que poderia ser visto como uma redistribuição topológica passa a ser interpretado como criadora de algo que, hoje em dia, costuma ser designado com uma expressão mágica: “externalidades”…

* * *

O poeta latino fala em ancinho, mas nós, na era ultra-industrial e financeirizada, poderíamos usar outras imagens. Expulsar o calor com o ar condicionado. Expulsar o esgotamento das fontes naturais de água com caminhões-pipa. Expulsar o empobrecimento das terras com fertilizantes, herbicidas, pesticidas e outros venenos. Expulsar o cansaço, o sobretrabalho, as desilusões, a raiva, com antidepressivos, ansiolíticos, turismo enlatado, indústria cultural. Expulsar a recessão com derivativos de derivativos. A lista é interminável.

Mas não vamos esquecer: mais cedo ou mais tarde

duc du berry 2

O grande problema de uma lista como essa que fiz acima é o risco que ela embute de nos jogar numa espécie de tecnofobia inconseqüente, uma nostalgia algo rousseauísta – embora essa designação seja injusta com Rousseau, sem dúvida. Na linha dessa tecnofobia, a solução para as mazelas do mundo contemporâneo seria uma espécie de volta à… bom, à natureza, à “vida simples do campo”, ao período pré-industrial ou coisa que o valha. Algo desse pensamento aparece com freqüência excessiva em algumas propostas ligadas ao conceito de decrescimento, como assinala este texto de Moysés Pinto Neto. Também é um ponto desconfortável de teorias como a do estado estacionário de Herman Daly.

Para falar a verdade, temo que me atribuam sentimentos assim. Nada mais longe das minhas cogitações.

Começo com a mera constatação de que esse lugar já não existe mais. A bem dizer, nunca existiu realmente. Quem porventura defenda um “retorno” ao que quer que seja precisaria explicar, em primeiro lugar, qual é com precisão o ponto a que quer voltar. Não vale, por exemplo, encontrar a solução individual de tornar-se eremita, porque o eremita é alguém que, mantendo-se “fora” da civilização, está em constante interação com ela e, portanto, a pressupõe.

Também não vale querer voltar a um “modo de produção” imediatamente anterior ao desenvolvimento deste que está lançando tantos gases de efeito-estufa na atmosfera, porque esse “modo de produção” também implica um “modo de vida” que tende às tensões e aos potenciais que exigem o desenvolvimento do mesmo maquinário que nos colocou onde hoje estamos.

Por fim, há bons sinais de que seja uma falácia a crença nessa natureza “intocada”, “pura” ou o que quer que seja, à qual se desejaria voltar: mais adiante este texto vai abordar o caso das “florestas culturais” como aparece na obra de William Balée, um dos proponentes da chamada “ecologia histórica”: a atividade humana modifica seu entorno (a dita “natureza”) desde sempre e de maneira duradoura, mas não necessariamente destrutiva como a atual.

Para além disso, é fundamental lembrar que a própria idéia da cisão entre “homem” de um lado e “natureza” de outro implode atividades de modificação do meio realizadas por toda e qualquer forma de vida – já que toda vida é um metabolismo e, portanto, realiza, como se diz, “trocas” com um meio. Mais ainda para animais dotados de uma existência psíquica, para os quais o meio é sempre, antes de mais nada, um território, passível de ser marcado, ressignificado, dividido, distribuído, apropriado. Pense nos castores, nos joões-de-barro, nos pica-paus…

Em outras palavras, todo “ambiente natural” que somos capazes de identificar contém determinantes que são fruto da atividade de seres vivos, em particular aqueles com atividade psíquica, em particular o ser humano. Desses, só um pretende “expulsar a natureza”, e incluindo no guarda-chuva deste conceito todos os demais viventes capazes de atuar nela ou, dependendo do ponto de vista, sobre ela.

Mais adiante, será o caso de concentrar-se nisso e entender como não se pode “voltar à natureza” porque a natureza sempre esteve no mesmo lugar (todo lugar, adiante-se).

* * *

alexander-fleming

Tampouco me satisfaz a idéia de que se poderia pisar para fora do sistema técnico atual aperfeiçoando alternativas estritamente tecnológicas, como na idéia do desenvolvimento sustentável por meio de energias renováveis, no trans-humanismo, parabiose e assim por diante. (Este tema também é tratado no texto que linquei acima.) Tudo isso é importante, mas insuficiente, e servirá no máximo para ganharmos tempo até pensarmos em algo melhor.

Afinal, o resíduo das energias fósseis (dentre os quais aparecem termos como “poluição” e “concentração de dióxido de carbono na atmosfera”) é um problema entre tantos, e cujo resultado mais nocivo decorre da própria noção de desenvolvimento que justificou seu uso até hoje. Sem reexaminar essa idéia de desenvolvimento, o máximo que se pode conseguir é alongar um pouco a agonia, esgotando outros meios de nossa vida antes do estritamente energético.

O segundo motivo é que nossos corpos não seriam capazes de suportar ser atirados de repente num modo de vida (supostamente) sem mediação técnica, ou seja, aquilo que poderia ser entendido como “retorno à natureza”. Nem que seja pelo simples fato de que todos nós nascemos neste mundo em que há antibióticos e vacinas. Portanto, não chegaria à idade adulta se tivesse que enfrentar com a corrente sangüínea nua as superbactérias que devem a nós mesmos sua existência – mais uma triste ironia.

Por sinal, aqui caberia fazer uma pausa: os antibióticos, descobertos mais ou menos por acaso por Alexander Fleming e disseminados durante as guerras monstruosas do último século, são um fármaco no sentido grego do termo, ao qual se aplica a dualidade do “gift/gift“, a dádiva/veneno tão claramente assinalada por Marcel Mauss e Georg Simmel. Isto é, à medida que salvavam vidas, também tornavam-se um problema mais grave do que às vezes nos damos conta.

Não apenas, como se sabe, seu uso indiscriminado (leia-se: comercial) levou ao surgimento de super-bactérias resistentes, como também fragilizou os corpos, dado que bactérias nocivas são mortas junto com bactérias necessárias à vida do indivíduo. Mais uma vez, o imperativo simbólico dos balanços contábeis dos laboratórios adulterou os fluxos e as virtualidades da potência dos remédios.

Afinal, o corpo é um ecossistema: para expulsar a natureza, seria preciso expulsar o corpo!

O mesmo vale para as estruturas nas quais vivemos: se todos resolvessem adotar da noite para o dia uma tecnofobia radical, não haveria mato no mundo que recebesse a todos, nem seria possível desmontar as cidades ou “adaptá-las” radicalmente para esse novo modo de vida. A idéia ela mesma é absurda. Assim, nosso próprio condicionamento fisiológico e os meios associados que nos fazem o que somos invalidam qualquer sonho de “retorno à natureza”, revalorização da vida frugal ou coisa que o valha.

Por fim, e trata-se agora de uma enorme ironia (entre tantas), uma suposta “volta” à vida simples e sem recursos tecnológicos não só não é a solução para o ponto a que chegamos em nossa ilusão técnica de expulsar a natureza, como ainda por cima pode acabar sendo sua própria conseqüência. A se confirmarem os prognósticos mais alarmistas, os sistemas de comunicação, logística e transações que sustentam a nossa tão inflada civilização se tornariam inviáveis.

Dificilmente a reação da humanidade a essa constatação seria pacífica, conduzindo a conflitos bastante destrutivos. Que tipo de conflitos poderiam ser fomentados pela mudança do clima? Bom, cientistas dizem que já é possível ter uma idéia olhando para… a Síria. Diagnóstico correto ou não, resta que o fim dessa história seria levar os sobreviventes a uma vida bastante, como se diz, primitiva. Irônico, não? Trate de não rir.

Instrumentos e dominação

hiroshima

Muitas das raízes da incompreensão técnica e econômica do humano sobre si próprio foram apontadas nas obras que trataram da relação entre homem e natureza, de trabalho e liberdade, no último século. O exemplo mais óbvio é provavelmente o de Adorno e Horkheimer, que escreveram um enorme e célebre livro, a Dialética do Esclarecimento, para demonstrar como a racionalidade que se pretende conhecedora e controladora das potências naturais, em nome da liberação e do poder do humano, acaba se convertendo em conhecedora e controladora do próprio humano.

Querer dominar a natureza conduziria, assim, inexoravelmente a querer dominar o humano em seguida. Portanto, uma das fontes do totalitarismo estaria na própria potência supostamente libertadora que a humanidade, segundo se crê, carrega consigo: mas a razão contém algo de auto-corrosivo, como parecia demonstrar a destruição da guerra que os autores vivenciaram, e que se encerrou com a invenção do armamento mais aniquilador que até então se conhecera.

A bomba atômica, por sinal, serve de ilustração para o que queremos dizer com toda essa questão da “expulsão da natureza”: encerrada sob a racionalidade das disputas de poder, território e controle do comércio, a potência da natureza, naquilo que contém de mais ínfimo, porém mais energético, com a bomba é detonado de uma vez só pela própria racionalidade que havia sobredeterminado a natureza como um todo. Ela então ergue-se liberada, enraivecida, triunfal, numa enorme explosão em forma de cogumelo: o cogumelo da vingança, para usar uma imagem meio cafona, mas na linha do argumento de Horácio.

Como vimos na segunda parte, uma parte considerável do processo de dominar algo, a natureza em particular, consiste em lhe sobrepor toda uma camada, uma verdadeira estrutura, de significação, pela qual se podem introduzir interrelações, medições, valores e juízos. Juízos, valores e medições não são dominadores por si, mas desde que haja um imperativo pelo qual se cindem as potências entre aquelas que se consideram desejáveis (a maximizar) e indesejáveis (a minimizar), a atividade simbolizadora passa a orientar-se segundo essa tarefa.

O sucesso nela dependerá, por isso, cada vez mais na capacidade de dominar o seu material, radicalizando a cisão e o espaçamento entre aquele que age e aquele sobre o qual a ação é realizada. Daí por diante, onde serão assentadas as cisões dependerá cada vez mais do próprio processo simbolizador, ele mesmo um exercício de potências – e, evidentemente, de poder.

* * *

A análise mais abrangente, porém, é provavelmente a de Hannah Arendt em A Condição Humana, título que por si só traz alguma coisa de sinistro, se nos lembramos do quanto já se fez para definir o humano como aquele que é capaz de libertar-se de todo condicionamento… A filósofa alemã faz nesse livro uma distinção que mereceria ser mais explorada, entre o “labor” e o “trabalho” (em português fica estranho, já que “labor” é um termo que nunca usamos, mas está valendo), além de distinguir ambas do que é propriamente político – tudo isso no reino da ação humana (melhor seria traduzir como atividade), por oposição à contemplação valorizada pelos antigos.

Acontece, diz Arendt, que a elevação dos assuntos do mero labor, ou seja, da atividade dirigida à necessidade (aquilo que a gente costuma chamar de “trabalho”), às determinações econômicas, a assunto social pleno, e não à mera administração da vida privada (oikonomía), ocupa o espaço que deveria pertencer à política em estado puro, que seria, por sua vez, o reino da liberdade. Observe-se que, de maneira razoavelmente próxima, mas ainda assim significativamente distinta à de Marx, Arendt opõe o trabalho e a liberdade. Assim, coloca-se a contrapelo de como pensava o idealismo alemão.

luddite

Mas a liberdade pertence a uma forma de atividade que é coletiva e contemporânea do trabalho: ela está explicitando um problema que surge do abandono da idéia grega de uma liberdade aristocrática, por oposição à limitação dos escravos à necessidade e ao trabalho, tema explorado em profundidade por André Gorz em Crítica da Razão Econômica. Para Arendt, nada foi colocado no lugar dessa distinção, de modo que, em vez de generalizar-se a liberdade da política, generalizou-se a escravidão do trabalho (ou melhor, do labor).

Não é uma mera aporia, tampouco uma defesa desvairada de um retorno àquele mundo aristocrático dos gregos (muito embora esteja bastante claro que o mundo se encaminha para uma re-aristocratização, pela via da plutocracia; mas isso é outro assunto, brevemente abordado em outro texto deste blog). O que há de realmente interessante, no texto de Arendt, é a o surgimento dessa figura intermediária entre o aristocrata livre e o animal laborans: o homo faber.

Este sim é o titular daquilo que a autora designa, propriamente, como “trabalho”, e que traduz duas palavras gregas: tekhnê e poiesis. A artefatualidade e a criatividade, poderíamos colocar assim. O que ela está nos apontando é a capacidade de produzir sua própria realidade que o ser humano possui, e que se distingue tanto do trabalho quanto do exercício do poder ou da deliberação política. A obra do homo faber é duradoura e é cultural, no sentido de produzir o universo das coisas e das instituições que povoamos.

©Photo. R.M.N. / R.-G. OjŽda

No entanto, é bastante evidente que a filósofa se mantém na linha clássica do passo para fora da natureza, da distinção entre o que é fruto do artifício e o que é natural, diferenciando-se muito pouco do que afirmavam os alemães que a antecederam – aos quais se soma Heidegger, naturalmente, com sua tese do Gestell, a convocação pela qual se confere sentido a algo que é extraído da natureza.

Não é o caso de entrar demais em Heidegger, entre outros motivos porque a análise da questão da técnica no bigodudo de más opiniões políticas já foi empreendida por gente muito mais qualificada que eu e em profundidade. Para não passar completamente batido, eu diria o seguinte: se a técnica é um gesto entre muitos de revelar (entbergen) e convocar (hervorrufen) algo da natureza à presença (Anwesenheit), então temos ainda um problema de afastamento entre o natural e o humano (entendido como social, racional etc.), ainda que seja menos da ordem da expulsão e mais da ordem da dominação, sob forma de inserção no sentido (portanto, na linguagem, tema com que já cruzamos) e na tomada de forma – uma forma específica, informada pela noção do que é útil. Ou seja, a adulteração dominadora que Adorno e Horkheimer apontam (como já tinha sugerido Rousseau, aliás) segue intocada.

A diferença está no fato de que aqui, de alguma maneira, o natural se expressa também (já que é convocado), de modo que temos um primeiro vislumbre, tênue que seja, de uma natureza que mantém suas intensidades e sua força própria mesmo na realidade tomada pelo humano formalizador e dominador. Já é alguma coisa, e traz o problema ao próximo ponto.

Continua na Parte 5

Leia também a Parte 6

luditas

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Metalinguagem quotidiana

Marido e mulher estendidos na praia, modorrentos e embotados. O sol está torrando, esturricando, insuportável. A mulher, com voz pastosa, constata:

– Faz calor demais. Estamos aqui há horas. Nossos corpos não suportam mais. Deveríamos mudar para a sombra, mas nenhum de nós tem forças para se mover.

O marido sorri ligeiramente e replica:

– Você falou como se estivesse narrando uma história. Assim: “Marido e mulher estendidos na praia, modorrentos e embotados. O sol está torrando, esturricando, insuportável. A mulher, vírgula, com voz pastosa, vírgula, constata, dois pontos, parágrafo, travessão. ‘Faz calor demais. Estamos aqui há horas. Nossos corpos não suportam mais. Deveríamos mudar para a sombra, mas nenhum de nós tem força para se mover.’ O marido sorri ligeiramente e replica, dois pontos, parágrafo, travessão. ‘Você falou como se estivesse narrando uma história. Assim: ‘Marido e mulher estendidos na praia, modorrentos e embotados. O sol está torrando, esturricando, insuportável. A mulher, vírgula, com voz pastosa, vírgula, constata, dois pontos, parágrafo, travessão.’” … Oh, meu Deus! Não consigo parar!

Sem se incomodar, em plena modorra, a mulher explica:

– É a metalinguagem, meu bem.

– Hein?

O marido está com preguiça de pensar. A mulher, sem nada melhor para fazer, se arma de paciência.

– É a metalinguagem. Você está contando a história dentro da história, a história da história, num ciclo infinito. Eu disse: “Faz calor demais. Estamos aqui há horas. Nossos corpos não suportam mais. Deveríamos mudar para a sombra, mas nenhum de nós tem força para se mover.” Você sorriu e respondeu que eu falei como se estivesse narrando uma história. Assim: “Marido e mulher estendidos na praia, modorrentos e embotados. O sol está torrando, esturricando, insuportável. A mulher, vírgula, com voz pastosa, vírgula, constata, dois pontos, parágrafo, travessão. ‘Faz calor demais. Estamos aqui há horas. Nossos corpos não suportam mais. Deveríamos mudar para a sombra, mas nenhum de nós tem força para se mover.’ O marido sorri ligeiramente e replica, dois pontos, parágrafo, travessão. ‘Você falou como se estivesse narrando uma história. Assim: ‘Marido e mulher estendidos na praia, modorrentos e embotados. O sol está torrando, esturricando, insuportável.’ A mulher, vírgula, com voz pastosa, constata, dois pontos, parágrafo, travessão”…

Marido e mulher estendidos na praia, modorrentos e embotados. O sol está torrando, esturricando, insuportável.

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Matei minha mãe, o filme

http://www.youtube.com/watch?v=tDa0CkKjfsk

Por recomendação de uma amiga, mas sem nenhuma expectativa, fui ver o recém-lançado J’ai tué ma mère (Matei minha mãe), filme canadense que ganhou três prêmios na Quinzena dos Diretores de Cannes em maio último. Resumindo muito, é a história de um rapaz de 17 anos que não se dá nada bem com a mãe e faz de tudo para “se libertar”. Tudo muito bem contado e filmado (volto a isso mais adiante), mas o que me deixou pasmo foi descobrir que o ator principal é também o roteirista e o diretor. Mais pasmo ainda fiquei ao saber que o rapaz, que atende pelo nome de Xavier Dolan, nasceu em 1989. Ou seja, ele tinha acabado de completar 19 anos quando deu por encerrada a montagem. O roteiro foi escrito aos 16.

Conheço uma boa meia-dúzia de jovens atores-roteiristas-cineastas, pequenos gênios todos eles e bastante competentes. Mas esse tal Dolan, pode anotar, tem tudo para ser um dos grandes de sua geração. Sem contar a atuação – algumas cenas são antológicas, mas afinal o rapaz foi ator mirim –; são dois os fatores que me levam a essa afirmação. Primeiro, a maturidade de um roteiro que expõe a aporia da vida familiar, que, após os 68 da vida, não dispõe mais de manuais e guias determinados. Depois, o diretor estreante revela uma compreensão rara do poder de uma câmera, da criação de significados através da imagem, da exploração expressiva do corpo humano: mãos, rosto, olhos, lábios.

Começo pelo enredo. O próprio Dolan admitiu que a história é profundamente autobiográfica, o que poderia facilmente ter resultado num filme tolo e unívoco. Não é o que acontece, embora a virulência de algumas discussões pareça exagerada debaixo de camadas e camadas de humor e nonsense. É notável a lucidez com que o menino transpõe para a tela o conflito de gerações tal como ele se manifesta neste início de século, despido de toda a dimensão política e moral das décadas anteriores. Nem a mãe que o protagonista (Hubert) odeia é uma mãe de antigamente, quando os pais eram fonte e garantia do comportamento de seus filhos, nem o adolescente é um contestador, um revolucionário, um alternativo. Com isso, ambos estão certos e errados em suas posições, porque não se pode mais exigir a solidez de uma mãe, nem a obediência de um filho, quanto mais adolescente. Esse impasse faz a graça da fita e, sem levá-lo em conta, é impossível apreciar o desenrolar do enredo. Ele acaba parecendo uma sucessão nervosinha de brigas tolas.

Na verdade, ele a odeia, ou pensa que odeia, porque a considera cafona, pouco inteligente e incompetente como mãe. E tem razão: ela se veste mal, gosta de programas questionáveis na televisão e tenta controlar o filho por meio de uma chantagem emocional ineficaz e ridícula. Mas a mediocridade de um indivíduo não lhe tira o direito a ser pai ou mãe e, no fundo, o adolescente sabe disso. Como conseqüência, ele é empurrado a explosões de raiva anódinas, das quais se arrepende mais tarde. Grande parte da graça do filme – é uma comédia, não sei se cheguei a mencionar – está nas idas e vindas tanto do filho quanto da mãe, perdidos na aporia de uma família que não funciona mais segundo regras milenares e rigorosas. O mistério é: como alguém de 19 anos consegue ler com tanta clareza as contradições de seu tempo e, em seguida, transcrevê-las com humor?

Agora, ao cinema propriamente dito: como é esse menino Dolan atrás da câmera? A resposta é que ele tem plena noção do que está fazendo com cada um de seus planos. Às vezes, a ideia é só fazer a história avançar; às vezes, é retratar o inconsciente de uma personagem; às vezes, apresentar o universo de seus sonhos. A cada um desses papéis, o diretor ajusta sua linguagem com o controle de um veterano. O resultado é um filme de ritmo agradável, sobretudo porque pontuado – leia-se quebrado – por seqüências com outro tempo, outro interesse, outra lógica. O diretor se declara influenciado por Godard, Gus Van Sant e Cocteau (este último, mais pela literatura). Deve vir de Godard a consciência, ou seria coragem?, de escapar à obrigação de ser “rápido e ágil” o tempo inteiro.

Mas o que Dolan exibe de mais capaz em seu domínio da linguagem cinematográfica é a compreensão da plasticidade da imagem. Nem tudo está nas palavras, nem tudo está nos rostos, e neste filme o diretor expressa a personalidade e a confusão interior dos personagens através de seus tiques e gestos involuntários: um alçar de ombro, um close na garganta que engole em seco. É a exploração do cinema como arte imagética, um aspecto central que os cineastas deixaram um pouco abandonado… ou esquecido. Para coroar o êxito, as tomadas em plano próximo que revelam esses detalhes parecem, a princípio, isoladas do enredo, mas a narrativa os recupera e amarra no interior de seu sentido.

Dolan prepara seu próximo filme; sabe-se lá quando vai ficar pronto, neste tempo em que é tão fácil um especulador enriquecer quebrando sua empresa, mas é tão difícil um artista praticar sua arte. Quantas promessas aparecem que não se concretizam! Por prudência – e não sei mais se essa é uma de minhas qualidades ou se é defeito –, evito fazer apostas. Mas esse Xavier parece ser mais do que uma promessa. Tem jeito de saber bem o que está fazendo. O nome está anotado.

* Leia o que escreveu sobre J’ai tué ma mère o Bruno Carmelo, cineasta e crítico.

PS: O melhor de ver um filme canadense na França é escutar a platéia rindo do sotaque…

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Houellebecq e sua ilha

Acabou de sair por aqui um filme dirigido por Michel Houellebecq. Fiquei curioso para vê-lo, embora a somatória de todos os trechos seus que li não dê um livro inteiro. E não li por birra, simplesmente. Sempre tive a impressão de que seu jeito polêmico era forçado. A antipatia é uma das estratégias de marketing mais exploradas pelos autores hodiernos, não me pergunte a razão. Temendo que minha opinião sobre o escritor contaminasse minhas impressões sobre sua obra, me abstive de abrir um volume de Houellebecq. Mas fui ver o filme, graças a uma promoção de início de outono que atirou lá para baixo o preço dos ingressos de cinema em Paris. Passamos a tarde inteira de domingo entrando e saindo de salas de exibição, numa maratona que começou com uma comédia musical americana e terminou com uma ficção científica metida a conto filosófico. Se o sentido tivesse sido o oposto, talvez tivéssemos dormido melhor, mas o fato é que fechamos a noite com as imagens desiludidas de A possibilidade de uma ilha (La possibilité d’une île).

Em poucas palavras, o que para alguns é fundamental, mas para mim não tem importância alguma: o filme é bom? Não chega a ser. A ironia amarga da prosa de Houellebecq mal dá o ar de sua graça, assim como a condensação do tempo e da identidade individual, pedra de toque do livro que deu origem ao filme. As personagens não têm carisma, ao contrário do livro, em que mesmo o grande líder religioso é um cínico desiludido. (Antes que me pergunte como sei disso, se não li o livro: folheei-o.)

Agora que estou livre da obrigação de avaliar o filme, posso entrar nos assuntos muito mais interessantes que ele pode gerar. Em primeiro lugar, fico imensamente feliz de saber que ainda é possível fazer filmes assim. Uma linguagem longe do convencional, longos planos e pausas, atores imóveis, ângulos oblíquos, cortes inesperados. Como nos bons tempos do cinema. É verdade que, apesar das entradas quase gratuitas, a pequena sala estava praticamente vazia. Não mais de oito pessoas, enquanto no tal musical americano (muito divertido, por sinal) saía gente pelo ladrão de uma sala muitas vezes maior. Mas isso não quer dizer nada. Bem ou mal, Houellebecq conseguiu dinheiro para adaptar seu próprio livro da maneira como bem entendesse, e isso é sinal de que ainda existe alguém disposto a investir nas empreitadas arriscadas. Certo dia, alguém deu uma soma considerável na mão de Fellini para ele imprimir no celulóide seus sonhos absurdos. Não sei quem foi o empresário visionário, mas garanto que ficou rico. Tampouco sei quando surgiu o consenso de que o público é formado única e exclusivamente por gente sem imaginação e dopada pelas fórmulas consagradas de Hollywood. Só sei que é uma lástima.

Mesmo não sendo o caso de Houellebecq, existe uma legião de cineastas cheios de boas idéias e muito talento, jovens, arrojados, inventivos, sedentos por uns caraminguás para rodar o primeiro longa. Esse pessoal não é invenção minha, qualquer festival de curta-metragens revela um caminhão de gente interessante. Entre eles e as obras-primas da próxima geração, o único obstáculo é o investidor, que precisa perder o medo do fracasso, para aprender a apostar no longo prazo. Foi assim que os empreendedores do passado ficaram ricos; não foi pela repetição temerosa de velhas fórmulas cansadas e disseminadas ad nauseam.

* * *

Agora, ao segundo ponto que eu gostaria de levantar. Dizem que Houellebecq tem uma personalidade desprezível. Eu não teria como avaliar. Mas é certo que uma das coisas interessantes sobre sua obra literária é a dificuldade de distinguir o que é opinião sua e o que é pensamento das personagens. Os protagonistas de seus livros costumam ser pessoas vis, baixas, rasteiras, vulgares, cínicas, inescrupulosas e por aí vai. Mas a tinta consegue, com o concurso de uma certa habilidade estilística, misturar os traços de forma tão indiscernível, que idéias e conceitos passam por entre os dedos do julgamento, como areia fina. É Houellebecq o racista, ou seu herói? Autor ou personagem, qual é o cretino? São exemplos das discussões que os literatos gostam de ter a respeito do escritor.

Pois bem, acontece que o próprio escritor resolveu colocar na tela um de seus livros. Deve ser o sonho de muitos artistas, imagino. É muito raro que um filme seja melhor do que o livro de que é adaptação, a não ser nos casos em que o texto original é um romance de quinta, e a resultante cinematográfica, uma obra-prima. É o caso de Psicose, por exemplo. No mais das vezes, vale mais a pena perder uns dias sobre o papel do que um par de horas diante da tela. Logo, o melhor é criar algo inteiramente diferente do original, que não possa ser comparado a ele, que provoque no máximo uma ligeira reminiscência.

É que, dizem, uma imagem vale por mil palavras. Eu estaria mais inclinado a considerar que uma imagem vale por uma imagem; uma palavra, por uma palavra. São linguagens que atingem campos diferentes da nossa sensibilidade. Uma cena não é o mesmo que a descrição da cena, nem é o mesmo que sua representação. Assim, alguém que assista a um filme com a cabeça de um leitor está fadado a não compreender absolutamente nada do que tem pela frente.

É nessa distinção que Houellebecq entrega o ouro. A grande vantagem do texto escrito é que, embora demore muito mais tempo para ser absorvido do que o visual, deixa sempre um espaço enorme para a imaginação. Por mais detalhada que seja uma descrição, ela não entrega pronta a figura descrita, como acontece na tela. Determinadas idiossincrasias do autor conseguem manter-se veladas, se for essa sua intenção. A imagem exige cuidados maiores. A escolha dos atores tende a reproduzir os mecanismos inconscientes de quem os escolheu, e no caso de A possibilidade de uma ilha, o diretor é o próprio escritor. Paisagens, cores, cortes, tudo isso é parte do discurso, tanto quanto vírgulas, parágrafos e capítulos no romance original. É possível ler através desses detalhes.

Não sei como explicar, para alguém que não o viu e provavelmente não o verá, o que o filme deixa revelar, provavelmente sem querer. Chego a imaginar, também, que posso ter projetado minhas próprias opiniões sobre a obra; isso não é de todo impossível. Mas, ressalvas à parte, o tom decadentista de Houellebecq parece desnudar-se inteiramente. Revela-se, como eu desconfiava, forçado. Tive a impressão de que o autor não acredita em seus próprios argumentos.

A desolação que as paisagens deveriam transmitir parecem estar só na reiteração dos horizontes calcinados, enfileirados sem sentido, incapazes de tocar o espectador. A acidez do protagonista, interpretado por Benoît Magimel (que já encarnou Luís XIV), parece vir mais de sua fisionomia peculiar do que de sua postura diante dos fatos que presencia.

A heroína silenciosa, cujo clone vagueia por terras inóspitas após o desaparecimento da humanidade, faz um esforço enorme para expressar seu desespero. Mas não é fácil, sobretudo se comparamos sua situação à do clone do protagonista, que passeia em filosofices verborrágicas por campos e vales, acompanhado de um cãozinho muito simpático. Não estou querendo corroborar a idéia de que Houellebecq seja racista por fazer cair repetidamente sua protagonista negra, seminua, ao chão de um deserto, sem lhe dar ao menos uma fala para mostrar seu trabalho de atriz, enquanto o rapaz esbelto, louro e culto paira sobre a desgraça humana com um belo terno negro e um cajado, falando sem parar. Mas é difícil entender por que tanta desigualdade, mesmo depois que acabou o sistema capitalista.

Não quero demover os amantes da literatura de uma ida ao cinema para ver A possibilidade de uma ilha. Pelo contrário, apesar de todos os defeitos que eu acreditei encontrar no filme, o fato de que ele exista é um acontecimento a ser aplaudido. Ademais, para quem gosta mesmo de livros, de Houellebecq ou não, é uma oportunidade rara ver como um autor adapta sua própria obra para a tela.

PS: Para quem lê em francês, eis uma discussão interessante sobre o filme.

E outra aqui, indicação de Bruno Carmelo.

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Todo dia é dia da mentira

Tela E Chao
Quis postar ontem alguma grande mentira, aproveitando o Primeiro de Abril. O mais difícil, eu já sabia, seria criar uma lorota tão crível que se destacasse de todas as outras mentiras que publico neste blog, já sem grande compromisso com a verdade. Quebrei a cabeça de madrugada, não dormi, subi e desci pelo metrô pensando em lograr o leitor. Falhei na missão. Estou tão acostumado a mentir quando escrevo que, ao precisar fazê-lo deliberadamente, acabo enredado na confusão de versões e percepções. Condenado pela fé nos fatos. Só que aqui é caso de texto, não de fato.

Quando alguém escreve, parte de uma impressão, talvez uma idéia, no máximo um conceito, para chegar ao texto. A grande desgraça e, ao mesmo tempo, a grande riqueza desse processo é que – e isso é um fato acima de todo questionamento – o produto resulta sempre, sempre, infiel à afecção que deu origem ao palavrório. Quem procura no texto alguma bela verdade cai na armadilha da ilusão perniciosa. Mas aquele que lhe extrai certeza e dogmatismo só pode ser tolo ou desleal.

A salvação está no fato de que não apenas o texto é infiel às impressões, mas as impressões traem o texto despudoradamente. O velho poeta que conta nos dedos as sílabas das rimas, o jovem que escarra na métrica e na assonância, o gabola que passa por cima dos versos e compõe em torrentes, todos esses são presas fáceis para a falácia de copiar suas emoções no peito do leitor. Isso não é possível. A relação entre um texto e quem o lê é insondável. Um neurologista pode se esbaldar com o cérebro de um leitor, cheio de campos acesos. Mas isso não lhe traz ciência do imaterial, e é de imaterial que tratamos.

Toda a beleza da leitura está nesse livre jogo de infidelidades. Aquilo que a alma reproduz ao receber o escrito depende mais dela mesma e menos de quem cortou os pulsos para aperfeiçoar a expressão; mas, no limite, é o fruto de ambos. Daí a frustração de quem crê ter algo a dizer ou a passar. Desconfio sempre dos autores satisfeitos, orgulhosos, realizados. E, nisso, jamais me enganei.

Nem poema, nem tratado, nem romance, nem cálculo algébrico: texto algum pode ter a ousadia de tentar reter os vapores do inconsciente. Nem à própria consciência, de onde saem palavras e gestos, isso é dado. Uma proposição pode ser prudente, pode ser rigorosa, pode ser aberta e repicada de ressalvas, mas não captaria as nuances do que pretende expressar. Morte à estatística, que se crê capaz de quantificar as imperfeições e discrepâncias de todo discurso. A porcentagem é desonesta.

Ao escrever, a única maneira de ser honesto de fato é apagar todas as palavras imediatamente. Engoli-las. É por isso que a fala é sempre mais sincera, mais humana e verdadeira. Uma frase pronunciada morre tão logo seja dita. A não ser na memória de quem falou e de quem ouviu. Mas isso é outro tema. Já diziam os latinos: verba volent, scripta manent. Podemos inverter a ordem do ditado: o texto fica, com toda sua inverdade. O dito voa, desaparece, subsiste apenas sob a forma de lembrança. Nada mais maneável do que uma lembrança.

Perseguido pelas mentiras que venho empilhando neste endereço há quase dois anos, saí pela rua atrás de uma boa brincadeira de Primeiro de Abril. Não a vi. No lugar dos chistes, dei com faces, edifícios, árvores, automóveis, lojas, mendigos. Verdades, enfim, todas elas a postos, à espera de serem transformadas em mentiras. Pacientes algumas, outras roendo as unhas, parecem acreditar que as frases vão torná-las imortais, reproduzidas como impressões e idéias no espírito do leitor. Eu mesmo, honestamente, já acreditei nisso.

Post scriptum: foram duas as coisas que me atraíram a atenção na tarde de ontem, e serão tema para as próximas duas crônicas. A mudança radical que se produz nos semblantes no início deste mês; e um par de plátanos na praça aqui atrás. Pode me cobrar.

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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