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Herculano, o que escondes de nós?

Ainda há quem se preocupe com o que diziam, pensavam e escreviam os sábios de povos extintos, adoradores de deuses incontáveis, bebedores de vinho doce, guerreiros sangüinários que dizimavam povos em nome da glória, como se a esse estranho conceito coubesse mais valor que à vida humana. Sim, há ainda quem sonhe com o que diziam tantos volumes perdidos na queda dos grandes impérios da Antiguidade, e salive ao supor os tesouros ainda escondidos abaixo de nossos pés.

Essas pessoas passam por loucas. Cada vez mais, à medida em que o turbilhão de opiniões e leituras apressadas vai sugando o interesse das gentes pelo argumento alheio. Que dizer de outros paradigmas? Línguas mortas? O que poderia nos ensinar a leitura de um estóico do tempo de Cristo como Sêneca, forçado ao suicídio por um pupilo que calhava ser Nero, o imperador ensandecido, mas que cortou os pulsos durante um banquete, diante dos convivas, alegre, em altiva sujeição? A nós, mergulhados até o pescoço nas traições que movimentam cada mercado, nos impasses éticos que travam o quotidiano das ações, o que teria para dizer o jovem Sêneca?

Teríamos de mudar algo em nosso conhecimento da natureza, se encontrássemos os trechos perdidos de Empédocles? Não creio que isso nos obrigaria a abandonar o atomismo e reconduzir à luz os quatro elementos. Tampouco imagino que a obra integral de Demócrito invalidaria a mecânica quântica, com seus átomos indivisíveis e imprevisíveis. E no entanto, estranhamente, os velhos gregos e latinos, com seus fragmentos e tratados apócrifos, ainda são interessantes para certas pessoas, que se debruçam sobre diálogos muitas vezes incompreensíveis em busca de um conhecimento que cabia a outro mundo, com seus próprios problemas, critérios, aspirações e formas de expressão.

Poderíamos perguntar que recompensa tiram essas pessoas de uma leitura tão penosa. Talvez algumas frases espirituosas, para soltar durante o aperitivo, nas festas do grand monde. Mas isso se obtém, tanto quanto, à leitura das compilações de aforismos mais recentes, como as de Ruy Castro.

Mas parece que também se pode ganhar algo por outros lados. Algo até pessoal, já que o acúmulo individual de ativos há tempos é o único chamariz de interesse. Gente de outros tempos e outros lugares tende a enxergar as mesmas coisas que nós de ângulos inusitados, às vezes opostos aos nossos, mas nem por isso menos corretos. Os antigos, já que é deles que estamos falando, tinham seus próprios vícios e manias, o que significa que não tinham os nossos, o que faz com que suas idéias pareçam milagrosamente frescas e potentes.

Assim, sabemos bem que Platão, com toda sua dialética, defendia uma organização social plenamente estratificada. Pior ainda, em sua escala de cinco níveis para a degradação dos sistemas políticos, a democracia cai num vexatório quarto lugar, à frente apenas da tirania mais ímpia. Acontece que, hoje, todos amamos a democracia. Não podemos ouvir um pio contra ela. Matamos por ela, censuramos por ela, damos golpes de Estado e dissolvemos congressos em nome da democracia. Mas quando tentamos entender de que se trata, não demora a ficar claro que transformamos essa palavra num grande vácuo, que designa pouco mais do que o fato de que eventualmente as pessoas saem de casa para deixar seu voto numa urna. Ao passo que os antigos textos de Platão fazem críticas até hoje tão pertinentes ao sistema democrático, que chegamos a balançar. Tendo escrito há 2300 anos, parece que seu discurso é sobre o processo político que sentimos na pele. Quem se dedica a essas leituras, portanto, não se contenta em matraquear os lugares-comuns de um amor à democracia que já justificou tantas ditaduras ao redor do mundo.

O mesmo vale para o rame-rame interminável que contrapõe razão e emoção. Ora, mas essa oposição nunca existiu! A razão, como componente da psique humana, simplesmente não há. Como diria Hume, se há alguma oposição, é entre emoções calmas e intempestivas, ponto final. O logos dos gregos e a ratio dos escolásticos, sabe quem leu, exprime a capacidade de formular suas impressões, seus pensamentos e, por que não, suas emoções, de forma encadeada, consequente, argumentada. Ou seja: racional, lógica. Mas imperfeita: mesmo essa razão discursiva está sujeita aos deslizes da linguagem e às confusões do pensamento. Não é uma faculdade do entendimento oposta à carga sensível. É um gênero de discurso. Mesmo assim, continuamos a opor o uso da razão a uma sujeição às emoções. Isso não faz o menor sentido, é um vício de linguagem.

É por isso que ainda há quem trema de alegria ao saber que foram encontrados novos trechos de obras antigas. É difícil precisar o quanto essas frases soltas em grego antigo enriquecem nossa visão do universo ainda hoje. Mas o fato é que enriquecem. Reconstruindo os mundos que se perderam, de alguma forma aprendemos sobre como mudamos e sobre como continuamos os mesmos. E conseguimos escapar a formas condicionadas de lidar com a realidade.

Li recentemente em algum canto que existem boas chances de voltarem a escavar a biblioteca da Villa dei Papiri em Herculano, a vizinha menos célebre, mas mais interessante, de Pompéia. No que já se investigou, foram encontradas as obras de Filodemo, um dos principais epicuristas de Roma. Mas ainda há três andares provavelmente apinhados de obras ancestrais, carbonizadas mas ainda legíveis. Como saber o que pode ser descoberto, ou seja, recuperado de um silêncio de vinte séculos? Os tratados exotéricos de Aristóteles? A segunda parte de sua Poética? Centenas de tragédias de Sófocles, Ésquilo e Agaton? O poema de Parmênides? Os tratados logográficos dos sofistas, aqueles pobres professores malhados pela filosofia posterior como Judas em sábado de aleluia? Depois das escavações de Herculano, talvez o cânone da sabedoria ocidental tenha de ser reescrito.

Quando garoto, uma de minhas fantasias era ser arqueólogo. Um pouco por influência de meus gostos cinematográficos, mas principalmente porque eu adorava decifrar códigos, sonhava desencavar monumentos, encontrar manuscritos, reconstituir obras de arte. Fui demovido da idéia pelo argumento de que não há mais nada a tirar do chão. Tudo já teria sido descoberto após as grandes expedições de outros tempos. Isso é falso, claro. Grande parte da humanidade ainda está escondida no subsolo. Recuperá-la, asseguro, não é interessante só para curadores de museus e aficionados em geral. Pode ser fundamental para recobrar nossa habilidade de olhar além do horizonte imediato.

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A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

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