É hoje o dia do buraco negro. Posso programar o texto para sair quando o mundo já não for mais. Sem preocupação com a gramática e a pontuação. Com palavrões e ofensas vulgares. Sem nexo ou assunto. Eu já estarei sugado, minha matéria e minha luz, estarei indefeso, atado a um campo magnético que comprovou o que as religiões já diziam: somos todos um só.
O grande círculo suicida, que não é de giz nem caucasiano, fica logo aqui ao lado. Se pegasse um trem, não desses comuns, mas dos muito velozes, eu poderia ter descido até a Suíça para ser o primeiro a morrer. Que delícia, aniquilar-se à beira do lago Léman! Que os cientistas tenham colocado a humanidade em risco, não discuto. Mas você há de conceder que eles sabem se acabar com classe.
Quanto tempo o buraco negro leva para sugar todo o planeta? A essa altura, é uma pergunta tão relevante quanto qualquer outra. Estamos todos condenados a sumir na consistência pastosa do espaço-tempo, pelo que entendi. Sendo assim, discernir os milésimos de segundo entre minha morte e a dos meus amigos, do outro lado do oceano que vai deixar de existir, conta tanto quando decifrar, por exemplo, as estruturas da percepção. Isto é, a rigor, não conta nada, porque a resposta não vai chegar a tempo de nos esclarecer ainda em vida. Mas convenhamos que é um jeito de passar a espera e atenuar a apreensão.
Noves fora, segue tudo no mesmo. Construir um acelerador de partículas gigantesco é tido por muita gente boa como brincar com o fim do mundo. Concordo, mas tenho que deixar minha ressalva, se permitem os distintos. Que bom abreviar o curso da história. Acaba agora o rame-rame de flertar com a morte, que é no fundo o propósito inconsciente de todo o engenho humano. E terá acabado como acabam todas as coisas: no estouro de seu paroxismo, como os fogos de artifício de Copacabana. Agora que podemos dar cabo de tudo isso, sou a favor, e que seja logo de uma vez.
Só me incomoda uma coisa. A incerteza, a baixa probabilidade, a quase garantia de que, em vez de desaparecer, vamos conhecer mais alguns detalhes sobre os fundamentos do universo. Perdoe a sinceridade, mas assim não vale. Não é isso que queremos conhecer. Já que um possível Armagedom está marcado para hoje, eu teria preferido que me dessem garantias:
“Escute, amigo, o mundo vai acabar, sim, no dia 10 de setembro, 2008, a tal hora”.
Eu teria largado tudo. Você não? Eu lançaria uma sonora banana ao senhorio, tomaria a companheira pela mão, mesmo que ela nem soubesse o que está acontecendo, e partiria em viagem. Dez dias é tempo bastante para conhecer muita coisa. Bastaria alugar o melhor carro disponível, já que não haveria o risco de ter de pagar por ele. Acho que não precisaria nem de mapa rodoviário.
Só é triste não poder voltar e contar aos amigos o que vi. Mas como, tudo terminado, meus ouvintes estariam tão mortos quanto eu, pensando bem, não faz mal. Quem sabe no outro mundo, não? Poderíamos passar a eternidade discutindo viagens. Que maravilha.
Mais uma grande maldade que eles aprontaram, esses físicos sem coração. Saiba você que o evento programado para hoje é só um “teste preliminar”. Que decadência, esse mundo. Bilhões de anos de evolução, para terminar durante um “teste preliminar”. Que fim melancólico, que ironia infeliz. Tenho certeza de que, se pudesse escolher, nosso universo teria pedido para acabar (já que insistem em aniquilá-lo) no dia 21 de outubro, essa sim a data de inauguração oficial do tal acelerador de partículas, quando as coisas vão começar a acontecer de verdade.
Seria inesquecível, se é que alguém pode se lembrar do fim do mundo. Centenas de físicos, centenas de políticos, um punhado de operários, uma sigla (LHC) e um nome pomposo (Large Hadron Collider, ou grande aparelho para jogar partículas hipotéticas umas contra as outras). Sobe um grande líder para dar a ordem, suponho que Sarkozy, que está em todas. Ele faz um discurso com seu habitual olhar de peixe morto. Os cientistas estão impacientes, os operários entediados.
Os jornalistas vão filmando, seguros de que haverá o noticiário da noite. Afinal, a chance de uma falha que cause o tal buraco negro (na verdade, um mini-buraco negro, seja lá o que for isso), ou um strangelet (se existir mesmo e seja lá o que for), ou qualquer outra porção de matéria mundicida, é de uma em dez mil. Melhor garantir a matéria (sem trocadilho) e alguns bons ângulos.
Mas, de repente, algo vai errado. Sem delongas, acaba o mundo. Um estouro: BUM!…? Um murchar: pifff…? A substância do universo escoando pelo buraco negro como a água de uma banheira: grolllll…? Boa pergunta, agora fiquei curioso sobre a sonoplastia do Juízo Final. Espero honestamente ter muito tempo ainda para esse tipo de especulação estéril. Aliás, boa para bares.
Porém, é uma pena, mas este texto não pode continuar. Que sentido teria escrever depois do fim do mundo? Aliás, não só não teria sentido: também não seria possível. Mas, como não espero que ele chegue a ser lido, uma vez que estaremos todos aniquilados nos confins do universo, escrevi de qualquer maneira, sem prestar atenção, sem estrutura, sem nada. Espero que não esteja ilegível demais.
No fundo, é a minha forma de dizer que, mesmo confrontados com a possibilidade de uma morte ignóbil, aliás ridícula, devemos sempre ousar e tomar riscos. E desta vez, nunca desejei tanto alguma coisa quanto a vergonha de expor um texto escrito às pressas, se para isso eu tiver sobrevivido ao desaparecimento puro e simples. Eu e o mundo inteiro, é claro.