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Os bastidores da Apollo 11

Um diálogo curto, para dar um pitaco na efeméride do momento: homem na lua.

É que Neil Armstrong sempre me pareceu meio reticente ao pronunciar sua famosa frase. Como se ele não estivesse muito contente com o que dizia. É evidente que o astronauta não pensou o texto na hora, nem foi ele que o preparou. Mas até que ponto ele concordava com o famoso “it’s one small step for a man, one giant leap for mankind”? Talvez lhe parecesse cafona.

Imagino Neil na cafeteria, de manhã bem cedinho, tomando seu chafé com bacon e ovos, discutindo detalhes da missão com Buzz Aldrin e the other guy. Eles estão se fazendo de relaxados, rindo nervosos, contando piadas ruins. Entra um homem jovem, engravatado e engomado, carregando uma pasta. Ele dá bom-dia a todos, todos respondem em tom arrastado: “Bom dia, Al”.

Ninguém gosta desse Al. É um almofadinha.

Al coloca a pasta sobre a mesa e tira uns papéis. Pergunta aos três: quem vai ser o primeiro? Buzz e the other guy apontam para Neil, que ergue o dedo, fingindo que seu orgulho é fingido. Al, timidamente, se dirige a ele e lhe passa uma folha.

– Seu discurso está pronto.

Neil faz cara de amuado, mas toma o papel e um gole de chafé, cada um com uma mão, e lê o que está escrito.

– Você não quer que eu diga isso, quer?

– Nossos melhores redatores passaram semanas preparando o texto.

Incrédulo, Neil retoma a leitura:

– “Um pequeno passo para um homem…” que ridículo! Vai estar na cara que é ensaiado.

– Não faz mal.

– Eu vou me sentir um idiota.

– Não faz mal.

Naturalmente, o futuro primeiro homem na lua se exalta. Está afogueado e os perdigotos que solta atingem Aldrin e the other guy.

– Como é que é?
– É pela América. Os vermelhos vão ver só. Você é nosso herói, man!

-Pela América, my ass!

O herói nacional levanta-se. Al dá um passo atrás. Os outros dois astronautas ficam preocupados.

-É uma frase para a história, Neil.

-É, Neil, fica frio! (é a tradução que daria a dublagem da Globo.)

– Pra história, é? Então é pra falar com voz empostada? Um pe-que-no pas-so pa-ra um ho-mem… é isso?

– Vai ficar horrível.

– Vai ficar horrível de qualquer maneira. Deveria ser meu dia de glória! Pisar na lua! Buzz, não quer ser o primeiro?

– Tô fora! Você acha que eu vou fazer o discurso cafona?

– Al, por favor…

– Houston já decidiu. Agora, se me dão licença…

Al faz uma curta reverência e se retira. De costas, os astronautas não vêem seu ar triunfal, como o de um garotinho que acaba de fazer uma travessura. Mal sabe Neil, aquele presunçoso, quem foi que inventou a tal frase. Atrás dele, ainda dá para ouvir os impropérios do primeiro homem na lua:

– Goddamn!

Buzz Aldrin intervém, preocupado:

– Olha as suas coronárias, Neil…

The other guy está alarmado. Corre para o telefone:

– Houston, we have a problem

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Os oprimidos somos nós. Augusto Boal: 1931-2009

Nem me lembrava de que Augusto Boal estava com leucemia. A notícia de sua morte acabou sendo uma surpresa, e reativou meu estranho gosto pelos obituários. Ainda não vi as matérias da imprensa brasileira sobre a partida do nosso velho mestre do engajamento teatral, e nem sei se devo. Me disseram que, no mais das vezes, foram só notas de rodapé; ademais, já sei que o máximo de profundidade que posso esperar é a constatação de que o Teatro do Oprimido tinha uma inspiração “de esquerda”. E é verdade, claro… até porque só na esquerda se fala em opressão. Os religiosos preferem o termo “exclusão”, e a direita, “marginalização”. Mistérios do idioma…

Opa, nada de digressões. O assunto, hoje, é o Boal, que não era um homem da política, embora fosse politizado e embora tenha sido vereador no Rio. Boal, formado e doutorado em química, era um homem do teatro. Perder-se em considerações sobre suas inclinações políticas, deixando de lado seu teatro, é nada menos do que cretinice. Sendo assim, o que interessa é perguntar: qual é o segredo de seu teatro, que o alçou à história?

Boal fazia parte daquele estranho grupo de artistas brasileiros que vivem um pouco no ostracismo no Brasil, mas são reverenciados no resto do mundo. Não sei se é por causa dos muitos anos de exílio de um sujeito que, enquanto a ditadura não conseguiu metê-lo no pau-de-arara, dirigiu o Show Opinião no Rio, comandou o Teatro de Arena em São Paulo e levou ao palco os textos mais contestadores de Vianinha e Gianfrancesco Guarnieri. Talvez, de fato, sua passagem por Argentina, Peru, Portugal e França, entre outros países, tenha disseminado tantos centros de Teatro do Oprimido por aí, que os brasileiros achem desnecessário comentar.

Pode ser. De qualquer forma, desmistifica aquela velha história de que o brasileiro só reconhece seus gênios depois que o estrangeiro os aplaudiu. Isso só é verdade, digamos assim, quando convém. Contudo, por algum motivo, alguém que vem interromper o curso normal da vida para colocar coisas em questão é qualquer coisa de muito exasperante para o brasileiro. Não convém… e é o caso do Boal; talvez isso explique melhor o silêncio em torno dele. Fico imaginando o que diriam certos articulistas e blogueiros se, no ano passado, ele tivesse ganho o Prêmio Nobel da Paz a que foi indicado.

O fato é que, com o Teatro do Oprimido, Boal foi aquele que conseguiu os melhores resultados, na arte do ator, para uma tendência que permeou talvez todas as formas de expressão artística a partir dos anos 60: sair à rua. Isso não é nada fácil e não deve ser confundido com apresentar-se na rua ou colher material e inspiração na rua, coisas que sempre existiram. Trata-se, na verdade, de introduzir a rua no campo da investigação estética. Por rua, entenda-se vida, porque a rua é o terreno do imprevisível, do anônimo, do fugaz. Justamente onde a vida é menos percebida e, por isso mesmo, mais latente.

Um bom exemplo é o do artista plástico francês Daniel Buren, que emprega sempre a mais banal das estratégias – listas brancas e coloridas ou negras, de tamanho definido e imutável há quarenta anos – para emoldurar as paisagens urbanas. Com isso, o transeunte, o cidadão, é levado por seu próprio inconsciente a se dar conta do lugar em que vive, de tudo aquilo que ele sempre tomou por irrelevante, invisível, indistinto no meio da percepção borrada que todos temos de nossa existência.

Se artistas como Buren transformam a cidade em arte pela introdução de uma moldura, Augusto Boal transformava o cidadão em ator pela reversão das expectativas. Ao mesmo tempo, o gesto simples de inventar situações apenas ligeiramente desviadas do banal transformava os artistas proponentes numa espécie de plateia. Em outras palavras, a separação milenar entre palco e público se desmaterializou pelo abraço de Boal. Um abraço perturbador, mas caloroso mesmo assim.

O oprimido em questão é, sim, em primeiro lugar, aquele que jamais teve voz no teatro, na política, na vida, em lugar algum. Em outras palavras, a imensa população do “andar de baixo”.  Mas não se limita a isso. Num ambiente urbano maquinal e racionalizado, onde o indivíduo está reduzido a um glóbulo vermelho na circulação incessante, cada um de nós é um oprimido. Por mais que falemos, critiquemos, peroremos, somos todos sem voz, como aqueles que Boal queria atingir. Talvez o mais perturbador, nas intervenções do Oprimido, seja essa constatação: o som que sai de nossas bocas no dia-a-dia nada mais é do que a reprodução desse dia-a-dia. Isso, claro, até que sejamos chamados a dar um passo fora da linha.

Levar o teatro para a rua (ou, melhor dizendo, para a vida real) não precisa nem de uma rua. A primeira experiência que levou ao Oprimido foi o Teatro-jornal, que Boal praticava no Arena de São Paulo no início dos anos 70. Para quem esqueceu, jornal brasileiro, nos anos 70, só publicava as notícias que interessavam à ditadura, quando e como lhe interessavam. Dramatizando essas notícias, numa sala de aula, num palco, em qualquer lugar, muito do que elas não diziam vinha à tona.

Depois, com o Teatro Invisível, um peteleco de situação inesperada transforma o espaço-tempo do esquecimento diário num espetáculo de improviso e consciência. Ironicamente, pelo fato de ser invisível, o teatro de Boal tem o poder de tornar visíveis todas aquelas coisas que normalmente não vemos ou não queremos ver. Nesse intuito, assim como para Daniel Buren bastam listas alvinegras, para Boal bastava uma fagulha banal – uma discussão de casal, uma carteira perdida, um pedido de ajuda – e o mundo inteiro se tornava arte, da noite para o dia. Numa metáfora um pouco pobre, Augusto Boal foi o escultor que se despreocupou do velho hábito de talhar o mármore e preferiu esculpir um magnífico pedestal, com que atraiu a atenção para o mundo em que realmente vivemos.

Agora, o pulo do gato: por que será que somos – nós, os brasileiros – sempre tentados a considerar qualquer iniciativa de deslocar o eixo da percepção individual como uma perigosa atitude esquerdista-subversiva-revolucionária? Será possível que toda busca de uma consciência de si e do mundo, fora do quadro corrente das nossas condições de vida, seja um atentado à ordem social? Esqueçamos, por um momento, a posição política que Augusto Boal, de fato, possuía. Será que qualquer indivíduo, sendo levado a olhar para sua vida e seu dia-a-dia de uma outra maneira – e uma maneira produzida pela sua própria racionalidade –, é um candidato a derrubar os fundamentos da sociedade?

É o que parece indicar a desconfiança que muita gente dedica ao trabalho de Boal. Porém, se isso for verdade, nada mais é do que um sintoma de que algo vai mal. Se a ascensão de pessoas comuns a uma compreensão mais autônoma de sua própria existência implica um risco para a sociedade, então essa sociedade é assustadoramente instável. Deve estar assentada sobre bases um tanto frágeis, para não dizer inviáveis. Não precisa ser nenhum revolucionário para se dar conta disso, mas devemos a Boal a possibilidade de constatá-lo. A Boal e, claro, à arte.

Mais sobre Boal e o Teatro do Oprimido:

CTO Rio

Itaú Cultural

Sobre a morte de Boal

Wikipédia (inglês)

Núcleo de TO em Porto Alegre

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Comunicar-se é mudar o mundo

Meu amigo Germain, de que já falei algumas vezes, é um verdadeiro gentleman, pelo menos para os padrões franceses; o problema é que, para não negar a raça, eventualmente ele se põe a querer obrigar o resto do universo a se submeter à sua maneira particular de ver as coisas. É claro que esse é o tipo de coisa que, normalmente, me irritaria para além de mim. Mas quase três anos de Gália bastam para nos acostumar com todo tipo de coisa, e posso garantir que o imperialismo de Weltanschauung de Germain não é dos piores.

Nossa última rusga foi lingüística, como, aliás, a maioria dos desentendimentos que já tivemos. Mas, como sempre em se tratando de discussões com Germain, foi muito fecunda e me ajudou a expandir meu entendimento sobre coisas que vêm martelando minha cabeça há meses. Começou quando fiz um comentário breve sobre minha dificuldade em “me comunicar” em determinadas situações do dia-a-dia francês. Antes de se mostrar solidário com meu infortúnio, Germain entendeu que deveria cumprir seu dever cívico, aliás pátrio, de corrigir minha expressão.

– Não se diz “comunicar-se” em francês. Diz-se apenas “comunicar”.

Não me entenda mal: gosto muito de ser corrigido; afinal, há anos venho traduzindo o nosso lusófono “comunicar-se” para o francês e isso deve soar terrível para os ouvidos locais, mas até então ninguém ousara chamar minha atenção para o fato. O problema começou quando Germain tentou demonstrar que era tolice fazer de “comunicar” um verso pronominal, aliás, reflexivo:

– O prefixo “co”, que vem do latim, é indicativo de intersubjetividade. “Se comunicar” seria falar consigo mesmo. Isso talvez seja muito normal na sua cultura (essa é uma maneira de dizer “no seu país” que eles consideram mais educada). Aqui, é sinal de loucura.

Ao final do comentário, Germain sorria naquele sarcasmo enjoado com que os franceses tendem a se comunicar, mesmo uns com os outros. Tenho como meta pessoal conseguir responder na mesma moeda antes de voltar ao Brasil. Será um triunfo maior do que desfilar debaixo do Arco do Triunfo, coisa espantosa no tempo de Bismarck, mas que, hoje, qualquer turista pode fazer e até um cabo austríaco já fez.

Acho que, com Germain, consegui bons resultados. Perguntei-lhe:

– Germain, meu velho, se “comunicar” vem do latim e “co” indica intersubjetividade, então me diga: o que vem a ser o verbo “municare”?

Mas Germain não foi capaz de me proporcionar esse aprendizado, alegando não ser, ora bolas, um latinista.

– Não precisa ser latinista, respondi, para saber que esse verbo não existe. “Comunicar” não é “co”-“municar”, mas tornar “comum”. É esse o étimo latino que você procura, o mesmo que está em “comunidade”, “comuna” e “comunismo”. Ergo, quando comunicamos alguma coisa, é porque a tornamos comum. Passa a ser uma informação conhecida de mais de uma pessoa. Portanto, “se comunicar” significa tornar comum algo que está em si próprio, ou seja, as próprias idéias e sentimentos. É rigorosamente o mesmo princípio de “se expressar”. E se vocês se expressam, mas não se comunicam, é porque são um povo solipsista, como eu já desconfiava. (Para falar com Germain, é preciso usar palavras difíceis em profusão. E para discutir com um francês, é preciso encerrar com uma sapatada.)

Embora Germain, através de suas meias-palavras de quem não quer admitir a derrota, ter reconhecido que a razão estava do meu lado, eu não me senti satisfeito com a idéia de que nós estivéssemos “certos” e eles “errados” quanto à fidelidade etimológica para com a comunicação. Afinal, as línguas todas cometem suas infidelidades etimológicas e não há nada mais grosseiro e irritante do que querer reformar a expressão de uma comunidade lingüística segundo imposições etimológicas. Para desfazer o clima desconfortável com o amigo, resolvi continuar a brincadeira, agora com uma hipótese até plausível, mas sobretudo simpática.

Argumentei que o prefixo tão estimado de meu amigo estava, sim, presente no vocábulo comunicação, mas de maneira indireta. Afinal, em “comum” há o tal do “co”. Communis significa “aquilo que pertence a todos”, onde encontramos o “co” e o ablativo de “unus”, ou seja, aquilo que é um, mas é plural. Uma entidade coletiva, que tem sua individualidade, mas só existe enquanto pertence a mais de uma pessoa.

Aí a coisa começou a ficar interessante.

Juntos, Germain e eu percebemos que a coisa vai mais longe: comunicar, então, é o ato de fabricação dessa entidade plural. Comunicar é produzir algo que seja ao mesmo tempo uno e múltiplo, é reproduzir um pensamento ou uma sensação indefinidamente. É um gesto praticamente de manufatura ou, com os meios de que dispomos hoje, de indústria. Com a diferença de que o objeto industrial não é múltiplo como aquilo que se comunica. É individual e vendido em troca de numerário, mas não se reproduz espontaneamente, como o objeto da comunicação.

O ato comunicado não é palpável, mesmo que esteja escrito ou gravado de alguma outra maneira; o livro só comunica quando é lido; o disco, quando é escutado; o filme, quando visto. Concretamente, ele só existe dentro de cada cabeça, moldado e encaixado da maneira que for possível naquele espaço, naquele indivíduo particular que pensa ou sente aquilo que foi ou será comunicado. Mesmo assim, sua realidade, quer dizer, seu modo de existência está no espaço entre cada indivíduo, cada membro do grupo que comunica; senão, morre no esquecimento.

Mas o mais relevante é que cada um contribui ao modificar aqui e ali o comunicado, incluir versões e confrontá-las com as alheias. A comunicação é como um organismo vivo em constante evolução. É um corpo imaterial, que aceita e se alimenta de todas as mutações por que passa no tempo e no espaço.

Estranho universo, esse. E vimos, Germain e eu, como ele é central na experiência humana. E se for verdade que vivemos em plena “terceira revolução industrial”, aquela da expansão massiva dos meios de comunicação, então o que vivemos é muito mais revolucionário do que parece. A fortiori (já que tratamos tanto de latim), se a crise mundial é, de fato, a crise do esgotamento do modelo anterior, então será, necessariamente, caso de uma mudança radical da forma de vida da humanidade.

As revoluções industriais que já varreram o mundo podem ser interpretadas como quebras do paradigma de acumulação de capital (não se assuste com o vocabulário marxista; ele foi criado por Adam Smith). Mas a comunicação é outra história. Como dissemos, elas se reproduzem e multiplicam por conta própria, capital acumulado ou não. Não é à toa que empresas de comunicação baseadas em modelos de trabalho antigos estão desaparecendo ou sendo transformadas a ponto de ficar irreconhecíveis. Mas nada garante que o modelo novo será um substituto à altura. Aliás, como sempre acontece em momentos de crise e mundo de cabeça para baixo, nada garante nada.

E tudo isso porque Germain não queria se comunicar.

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No tempo em que a polícia batia

Em tese, um certo sumiço na virada do ano é coisa normal, mas acho que passei do ponto. Não foi por querer que fiquei desconectado durante as últimas semanas, e nesse meio-tempo houve muito assunto para deixar uma palavra por aqui, e não pude fazê-lo. Pouco a pouco, espero retomar o ritmo normal de postagens. O primeiro tema que ficou em suspenso é a continuação do texto sobre Der Baader Meinhof Komplex. E, como demorei tanto, acho que terei de aproveitar para desdobrar o assunto em três. Primeiro, este neste texto, sobre a polícia e os cascudos que só ela sabe dar. Depois, mais dois, não sei ainda em que ordem, mas um falará das músicas que são tocadas no filme e o fenômeno da Indústria Cultural, primeiramente evocado por filósofos, que coincidência, alemães. O outro aproveitará, se é que esse verbo é apropriado num momento como este, o gancho da ofensiva israelense contra o perigosíssimo território de Gaza atrás dos terroristas do Hamas… enfim, o conceito de terrorista é qualquer coisa que precisa de fato ser pensado mais profundamente.

E para ressuscitar este espaço, nada melhor do que um texto que, apesar de indiretamente, recupera alguns pontos que deixei passar em 2008. São efemérides como os quarenta anos de todas as coisas grandiosas que aconteceram em 68 (maio de Sorbonne e Nanterre, agosto de Praga, dezembro de Cinelândia e Brasília), e bem que gostaria de encaixar aqui a morte de Harold Pinter, que eu deveria ter comentado e não comentei, e os centenários de Claude Lévi-Strauss e Manoel de Oliveira… mas não vai ser possível.

Fico, então, com as brigas de quarenta (e um) anos atrás para começar meu assunto. Nem preciso dizer, essa série de eventos interligados são uma das raízes do grupo revolucionário e, mais tarde, terrorista alemão. De fato, Der Baader Meinhof Komplex mostra bem como surgiu o bando: no dia 2 de junho de 1967, durante uma manifestação até então pacífica contra o xá Reza Pahlavi, em visita a Berlim, um policial à paisana atirou pelas costas, ou seja, executou o estudante de literatura Benno Ohnesorg, de 26 anos, pai de uma criança, que morreu no mesmo instante.

Estudantes mortos

Mas Ohnesorg provavelmente não foi o primeiro e certamente não foi o único estudante morto nesse tempo que ficaria conhecido como início dos “anos de chumbo”. No Brasil, tivemos Edson Luís de Lima Souto, de 16 anos, cujo assassinato por um policial acabou resultando na célebre Passeata dos Cem Mil de 26 de junho de 1968. Em 2 de outubro, a famosa guerra da Maria Antônia, entre estudantes da USP e do Mackenzie (esses últimos reforçados por jovens encorpados que eram tudo, menos estudantes) também deixou sua vítima, de nome José Guimarães, secundarista e pintor de 20 anos. As famosas prisões de Ibiúna, a propósito, aconteceram dez dias mais tarde.

No mesmo 2 de outubro, uma manifestação estudantil na Plaza de las Tres Culturas, Cidade do México, foi reprimida pelas forças unidas da polícia e do exército com saraivadas repetidas de balas que deixaram um número indeterminado de mortos. A estimativa mais razoável diz que pereceram 400 pessoas, contando não apenas os manifestantes, mas também as pessoas que apenas passavam pelo local. Aliás, o pequeno incidente não chegou a perturbar o funcionamento das Olimpíadas na cidade, poucas semanas depois. Em fevereiro, dois meses antes do assassinato de Martin Luther King e quatro meses antes do de Robert Kennedy, durante uma manifestação na Carolina do Sul pelos direitos civis, três estudantes foram baleados e mortos por, exatamente, policiais. E por aí vai.

Estudantes e policiais se enfrentaram ao redor do mundo, com ou sem mortes, pelos anos seguintes. Nada, claro, como o 68 que, até hoje, ainda faz muitos olhos brilharem, com a Primavera de Praga, a ocupação das universidades em Roma, as palavras de ordem dos jovens de Nanterre e da Sorbonne, criativos como nem os mais prestigiosos publicitários chegam a ser: “Sous le pavé, la plage” (debaixo das pedras, a praia, numa tradução péssima), “soyez réalistes, demandez l’impossible” (sejam realistas, exijam o impossível), “exagérer, c’est commencer à inventer” (exagerar é começar a inventar). Essa garotada, tão boa com as palavras, cheia de idéias e ideais, encheu Paris de barricadas e respondeu ao gás lacrimogêneo com os paralelepípedos que arrancava do chão. Apanharam, apanharam feio. Tudo acabou voltando ao normal. A prefeitura, prudente, cobriu suas ruas de asfalto. Mas os suspiros dos saudosos ainda ecoam.

Tudo isso para mostrar que foi qualquer coisa, menos um caso isolado, a morte de Benno Ohnesorg, o jovem alemão de sobrenome tão sugestivo. Que foram tempos duros, não se pode negar, mesmo que as causas ainda sejam motivo de disputa. Resta que a violência era disseminada através de um mundo povoado por governos que, dos dois lados da Cortina de Ferro, temiam revoluções; jovens perplexos com a cultura de massas que já dava os primeiros sinais do que seria o sistema de ensino industrial e rasteiro de hoje; trabalhadores que, por um lado, eram seduzidos pela mensagem soviética e, por outro, tinham um poder de reivindicação e de compra sem par; grupos minoritários começando a exigir reconhecimento e direitos, na esteira do sentimento de culpa mundial com o antissemitismo (agora tem que ser assim? Com o s dobrado em vez de hífen?) que conduziu ao Holocausto.

O que parece…

Trocando em miúdos, parece que essa era uma época em que um volume significativo de pessoas estava disposta a brigar, bater e apanhar, fosse por uma causa, pelo reconhecimento de seus direitos, por uma melhor remuneração do trabalho, pela liberdade de expressão, enfim, fosse pelo que fosse. Parece, também, que do outro lado havia uma força de segurança disposta a baixar o sarrafo, em bom português, e jamais recuar. Parece que o Poder, do fundo dos palácios, temia com tanta força ser desalojado que não se importava de soltar a cavalaria e a tropa de choque contra sua própria população. Parece que o direito de se expressar livremente não era considerado com muita seriedade, nem de um lado, nem de outro do Muro de Berlim. Parece que a idéia por trás da polícia, naqueles tempos, não era tanto a de coibir a criminalidade, mas apenas manter as gentes sob controle, como se vê, por exemplo, na caricatura francesa em que um policial do CRS (o batalhão de choque) carrega no escudo a insígnia das SS nazistas.

Por outro ponto de vista, parece que o mundo aprendeu algo desde então. Parece que nos tornamos mais livres e mais conscientes. Parece que a ilusão comunista caiu com a União Soviética e o mundo quase todo obteve o direito sagrado de pensar e desejar as mesmas coisas, sempre. Parece que a polícia não exerce mais aquela função de pôr na linha as pessoas que parecem discordar. E ainda, mesmo que continue violenta e opressiva, parece que as forças policiais estão concentradas em lutar contra o crime ou o que, para a opinião pública, parece crime. Parece que os policiais não são mais assustadores como eram naquele tempo em que, não raro, se comportavam como os fascistas da geração anterior. Parece que as pessoas não têm mais contra o que protestar, resolvidas que estão as contradições do mundo, no grande abraço sensual do consumo e da competição. Parece que a única ameaça para nossa tranqüilidade vem de fanáticos barbudos.

… mas não é.

Acontece que encontrei em algum canto da internet as imagens acima (vi algumas maravilhosas numa exposição do fotógrafo turco Göksin Sipahioglu, mas elas não estão em domínio público). Os distintos homens de gravata que aparecem aí são os temidos CRS que enfrentaram a fúria estudantil da Sorbonne em maio de 68. Lançaram bombas de gás lacrimogêneo, deram bordoadas em rapazes e moças, sendo que no começo nem sabiam ao certo o que estava acontecendo (um policial chega a relatar que a viatura recebia ordens contraditórias no caminho para as barricadas). Foram ironizados pelos slogans dos estudantes e acabaram caricaturados como soldados das SS nazistas, mas deram conta do recado. Nenhuma Bastilha caiu naquela primavera.

Esses sujeitos de olhar fuzilante e ameaçador eram os agentes da opressão nos violentos tempos de nossos pais, em que o equilíbrio do mundo ameaçava ruir por um sopro e a qualquer momento um líder mundial poderia decretar a aniquilação do planeta, como vemos em filmes como Dr. Fantástico (odeio essa tradução). E já que estamos nesse pé, eu me pergunto que aparência têm os agentes da ordem nesses nossos tempos sem “ameaça comunista”, em que os estudantes temem demais o desemprego para pensar em protestos, em que não há mais grupos armados de esquerda ou agentes soviéticos infiltrados. Pois bem, ei-los, os mesmos CRS, quarenta anos mais tarde:

Foram-se as gravatas, os paletós bem cortados, os elmos projetados por alguma estilista, os cassetetes de meio metro. No lugar, o que vemos são máscaras de gás, capacetes grossos, caneleiras acolchoadas, cassetetes com tasers, uniformes ultra-cibernéticos que, se me disserem que ricocheteiam balas, não vou duvidar. Os rapazes da fotografia, que, pensando bem, não deixam um centímetro de pele à mostra e bem poderiam ser andróides – com o perdão da analogia fantasiosa -, não foram enviados para alguma guerra distante, como salvadores do mundo ou dos valores democráticos ocidentais (ideais republicanos, diriam os franceses).

Todas essas imagens foram feitas em Paris, algumas durante manifestações de jovens do subúrbio contra o recentemente eleito Nicolas Sarkozy; outras durante as greves estudantis de 2005 contra uma reforma do sistema universitário que parecia projetada por Bush; e uma única por ocasião de um mui irônico evento em que os CRS foram chamados para dar uma coça nos bombeiros em greve: não parece uma guerra de ciborgues?

Bem se vê por essas imagens que, não, a polícia não está menos disposta a dar bordoadas do que há quarenta anos. Não, não estamos mais razoáveis. Não, o mundo não se tornou mais seguro. Não, o poder não se sente mais garantido. Não, não era apenas como resposta e prevenção ao perigo soviético que a polícia (e as forças armadas, por sinal) estavam de sobreaviso para dar cascudos. Não, as contradições não estão resolvidas. Não, ainda falta muito para que as pessoas deixem de ter contra o que protestar.

Revejo a caricatura dos CRS retratados como agentes das SS e sou tomado por sentimentos contraditórios. Por um lado, o respeito que sempre se deve à História, cujos fatos merecem ser apreendidos em sua própria dimensão, sem o olhar condescendente, mas distorcido, do futuro. Por outro, a impressão de que os batalhões de choque deste início de século são infinitamente mais parecidos com a SS em termos de violência do que os engravatados de quarenta anos atrás.

Por algum motivo, e essa questão é certamente mais importante do que pode parecer, a polícia sabe ser um instrumento de dissuasão até melhor do que naquele tempo. Tem mais poder de fogo, mais proteção e, a julgar pelas imagens em que três ou quatro policiais são necessários para segurar um manifestante, tem também mais efetivo. A princípio, isso parece estranho, considerando que o inimigo, ao que sabemos, abandonou o certame. Estamos carecas de saber que as atenções de quem tem por função “manter a ordem pública” estão há muito voltadas para outra direção, não mais os jovens rebeldes do Quartier Latin, mas os filhos de imigrantes do subúrbio. Já os estudantes, que outrora corriam o risco de se deixar abater em batalhas urbanas, não têm mais a mesma disposição para a briga. Certo dia, topei com alguns que tentaram bloquear a entrada de sua faculdade, ao norte de Paris: bastou a polícia chegar para que eles mesmos desfizessem a barreira. Se algum desses garotos for filho de alguém de 68, é certamente a vergonha da família.

A pergunta passa a ser, portanto: se a polícia não mudou de postura e até a intensificou, o que aconteceu do lado dos estudantes para que eles não se disponham a arriscar o pescoço em barricadas? Por que as tensões não chegam mais às vias de fato, ou antes chegam tão raramente, como foi neste ano na Grécia, cujos estudantes revoltados mereceram os aplausos e muitas pichações de apoio nos muros da França, feitas por estudantes que gostariam muito, mas não têm a mesma força de vontade?

Não tenho resposta para nenhuma dessas perguntas, mas o mero gesto de formulá-las talvez já ajude a esclarecer que há algo de muito profundo que diferencia os jovens de hoje dos de quarenta anos atrás. Eu gostaria de saber, por exemplo, o que fez com que uns fossem de um jeito e outros, de outro. Acho que a resposta passa pela noção de indústria cultural, mas isso, como já mencionei acima, é questão para outro texto.

Para uma lista de slogans de 1968, clique aqui.

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Esqueletos no armário

Duas semanas atrás, recebi de meu amigo Leonardo (que, aliás, não gosta de ser chamado pelo nome inteiro) um e-mail que me instava a ir ver a última pepita do cinema alemão, em cartaz nalgumas poucas salas de Paris. Der Baader Meinhof Komplex é o nome do filme, que deve sair no Brasil como “A Facção Baader-Meinhof”, a não ser que entre em ação nossa velha mania de estragar nomes de filmes e ele acabe como “Jovens, rebeldes e armados” ou algo parecido.

Achei que não conseguiria atender ao pedido de Léo, assoberbado que estava, e estou, com as obrigações da vida. Mas surgiu um par de horas vagas, vi o filme e posso fazer um agrado ao amigo, que manifestou seu desejo de discutir a obra via blogs. Pois bem, ao trabalho! E já aviso que vou precisar, provavelmente, dividir minhas idéias a respeito por dois textos, se as leis da blogosfera não se opuserem. Neste primeiro, mando comentários sobre o filme em si. No próximo, enveredo pelas questões um tanto problemáticas que ele suscita.

Em primeiro lugar, devo declarar o seguinte: contra os alemães, podemos fazer todo tipo de crítica, mas não dá para negar que cinema, eles sabem fazer. O filme de Uli Edel, apesar de um roteiro que tenta ser enciclopédico e acaba ligeiramente confuso, além de um retrato talvez conveniente demais dos personagens (sei que o comentário é obscuro; pretendo esclarecê-lo adiante), é daqueles que só deixam indiferente o espectador beócio completo (não que essa seja uma espécie rara). Pertence a um gênero bem típico de nosso tempo, e que a Alemanha tem motivos particularmente fortes para cultivar.

Podemos batizar esse gênero como “esqueleto do armário”. São reconstituições romanceadas, às vezes mais, às vezes menos, de momentos históricos traumáticos e, se possível, embaraçosos. No Brasil, por exemplo, discute-se a última ditadura, a luta armada e, de preferência, a tortura. Os franceses começam a abrir a caixa preta da colaboração com os nazistas, enquanto remoem a saudade do tempo em que a juventude não estava contente só de reclamar e tinha coragem de enfrentar, de verdade, a polícia sua inimiga – falo de 68, claro.

E para os alemães não falta assunto. A ascensão de Hitler, o holocausto, a guerra, a Gestapo, a Stasi, a divisão do país, os grupos extremistas, os neonazistas, o muro de Berlim… Milhares de roteiros estão garantidos. Baader Meinhof (vou chamar assim para simplificar) conta a história dos membros fundadores da Rote Armee Fraktion, ou Facção do Exército Vermelho, um grupo de extrema-esquerda que deu um trabalho enorme ao governo da Alemanha Ocidental nos anos 70.

Fundado em reação à morte do estudante Benno Ohnesorg por um policial e a quase concomitante tentativa de assassinato, por um rapaz de simpatias nacional-socialistas, do líder estudantil Rudi Dutschke, a facção acabou se tornando o mais famoso grupo de ação política violenta do país, a ponto de realizar e inspirar ações que beiravam o terrorismo e, no final, descambaram em definitivo para o terror puro e simples. No início dos anos 90, quinze anos depois da morte dos pais do movimento, ao dar por oficialmente encerradas suas atividades, a R.A.F já era definitivamente uma organização terrorista.

Comparado a outros emblemas do esqueleto no armário, como Adeus, Lênin, Edukators, A queda, A vida dos outros e Sophie Scholl, este não chega a ser exatamente um ícone do gênero. Por exemplo, o que deveria ser a história dos fundadores da R.A.F. acaba se perdendo em subtramas sobre as (assim chamadas) segunda e terceira gerações. Mesmo assim, é um grande filme para quem se interessa pelas peripécias da geração de nossos pais. Menção honrosa, como sempre, para as interpretações. Os atores alemães dão seu espetáculo habitual.

Isto aqui, porém, como de costume, não é uma crítica. Muito mais me interessa a história, um enredo que dá pano pra manga a quem se deixa fascinar por eventos do passado, com toda a estranheza que eles podem causar em quem não tem a triste pressa de encaixá-los logo de uma vez num julgamento qualquer, um juízo determinado, no mais das vezes, por conveniências pessoais. Nossas sensibilidades de princípios do século XXI, diante de ações como as de Andreas Baader, Gudrun Esslin e Ulrike Meinhof, provavelmente perguntarão por que essas pessoas jovens, belas e inteligentes largaram tudo para viver na clandestinidade e na cadeia; por que pegaram em armas e arriscaram a própria vida; por que se radicalizaram tanto, a ponto de perder a noção de quem estavam atacando e por quê.

Tenderíamos a rapidamente lhes atribuir um enorme ódio à democracia, pelo fato de quererem derrubar pela força das armas um regime, para instaurar outro em seu lugar, sem grandes consultas à população. Tenderíamos a dispensá-los como iludidos ou loucos. Mas tudo isso parece apressado, se não partimos de um ponto quase ingênuo: a perplexidade perante uma era de conflito e engajamento que, aos olhos de alguém com menos de trinta e tantos anos, parece não ter sentido.

O diretor Uli Edel e o roteirista Stefan Aust (autor do principal livro sobre o grupo) afirmam terem se preocupado em realizar o filme da forma mais objetiva possível. É claro que isso não existe e eles falharam. Através da Europa, estão sendo acusados de glorificar o terrorismo. Talvez por mostrarem na tela o encadeamento causal da escalada do terror, o que é quase proibido num tempo em que as condenações têm de ser sumárias e veementes, qualquer olhar em perspectiva sendo carimbado como “justificativa do injustificável”. Talvez por esconder casos como o de Horst Mahler, que, membro da facção e advogado dos companheiros, tornou-se, atualmente, um dos principais líderes neonazistas do país. Talvez por não mencionar que os principais movimentos de esquerda da Alemanha Ocidental repudiaram com veemência as ações do grupo, a começar pela Sozialistischer Deutscher Studentbund (Sindicato [União] dos Estudantes Socialistas Alemães) de Rudi Dutschke, ironicamente um dos principais inspiradores de Baader, Ensslin e Meinhof.

Talvez, também, por realçar o lado glamoroso dos envolvidos, o apoio popular que eles receberam durante os julgamentos, que foi grande, mas nem de longe tão exuberante. Ou com pequenas atitudes como esconder a língua presa de Andreas Baader, retratado como o rebelde inconseqüente que era, mas um tanto romântico, o que não é preciso: sua rebeldia era uma extensão politizada dos tempos de delinqüência juvenil. Mesmo depois de se engajar na luta contra o capitalismo, continuou tendo fixação por (roubar) automóveis de luxo. Em resumo, ele não tinha, à parte um carisma fora do comum, qualificação nenhuma para liderar um grupo clandestino.

Quanto ao retrato do grupo, o filme insiste de maneira talvez suspeita em mostrar a preocupação da “primeira geração” em não atacar alvos civis (“o povo”, na terminologia que empregavam). Insiste também nas cenas emocionais e na tentativa de explicitar até que ponto aquelas eram, afinal de contas, pessoas normais, como qualquer um de nós, mas que “simplesmente resolveram agir”. Ora, convenhamos, a pasmaceira de nosso começo de século é uma prova irrefutável de que resolver agir não tem nada de simples.

Mas a acusação de apologia ao crime, creio eu, não procede. Afinal, por outro lado, o filme releva algumas questões graves que conduziram à radicalização dos fundadores do grupo. Fica-se com a impressão de que todo aquele esforço era em protesto contra a guerra do Vietnã e nada mais. Embora a maior parte das bombas da primeira geração da R.A.F. tenham explodido em dependências do exército americano, essa interpretação está bastante exagerada.

Por exemplo, o governo da Alemanha Ocidental. A administração do país ainda estava, por incrível que possa parecer, apinhada de ex-membros do governo nazista. O braço direito de Konrad Adenauer, o ícone da democratização da Alemanha Ocidental, era Hans Globke, redator do ato que retirou a cidadania alemã de judeus, em 1935. Em 1966, a coalizão no poder elegeu Kurt Georg Kiesinger, membro do partido nazista durante a guerra, como primeiro-ministro. Muitos alemães não engoliam a rapidez com que o processo de desnazificação do lado ocidental foi dado por encerrado, entendendo que a Alemanha tinha se tornado apenas mais um instrumento do imperialismo americano. (Algo semelhante ocorreu também na Itália.)

Nesse contexto, é menos surpreendente o rumo que as circunstâncias tomaram. Benno Ohnesorg, já mencionado, foi morto pela polícia numa manifestação que o filme reconstitui perfeitamente, mostrando como a polícia permite aos manifestantes pró Xá Reza Pahlevi descer a mão, além de objetos terrivelmente dolorosos, sobre os estudantes que protestavam. O que o filme não mostra é a forma como o rapaz morreu: com um tiro à queima-roupa na nuca. Vemos apenas uma morte acidental, quando o que ocorreu, de fato, foi uma execução.

Não leia os próximos parágrafos quem desconhece inteiramente a história, para não, digamos, “perder a surpresa”. Mas a ausência mais grave do filme é a polêmica em relação à morte dos protagonistas. A versão oficial, do suicídio coletivo, é comprada e, pois sim, justificada. Dos três mortos em outubro de 1977 (Ulrike Meinhof, a jornalista, já tinha se enforcado), dois teriam tirado a própria vida com revólveres que, até hoje, não se sabe ao certo como entraram na cadeia. A terceira (Gudrun Ensslin) se enforcou na janela e uma quarta detenta, Irmgard Möller, golpeou-se diversas vezes no peito com uma faca de ponta arredondada, dessas de passar manteiga no pão, mas sobreviveu para declarar repetidamente que seus companheiros haviam sido executados por agentes da prisão.

Der Baader Meinhof Komplex passa por cima da suspeita. Mostra toda a preparação das mortes, o contrabando das armas para dentro da prisão (uma realização, no mínimo, espetacular), o pranto dos mais jovens quando uma veterana de R.A.F. lhes anuncia o suicídio coletivo. Porém, vá saber por quê, não se vê nada sobre o inquérito relâmpago que, em menos de uma semana, atestou as causae mortis. Tampouco se fala sobre o fato de que o canhoto Andreas Baader tinha marcas de pólvora na mão direita, nem por que Jan-Carl Raspe não tinha marcas de pólvora em nenhuma das mãos. Ficou por explicar, também, como Baader teria conseguido atirar em si mesmo na base do crânio, numa posição de contorcionista um tanto improvável. Aliás, mais que contorcionista, o rapaz era muito ruim de mira: havia três balas alojadas na cela, o que significa que ele errou a própria cabeça duas vezes antes de morrer.

Gudrun Ensslin, que se enforcou pulando de uma cadeira que, magicamente, estava contra a parede do outro lado de sua cela, tinha entregue um bilhete a seu advogado, algumas semanas antes, em que afirmava ter medo de “ser suicidada” como tinha acontecido, no ano anterior, com Ulrike Meinhof. (Cheguei a mencionar as suspeitas sobre a morte dela? Pois bem… a autópsia indica que ela teria sido violentada e sufocada antes do enforcamento.) Mas também não se ouve nada a esse respeito no filme de Edel e Aust, que supostamente celebra o terrorismo.

Somando as omissões de lado a lado, o filme parece equilibrado; objetivo, não. Isso, como eu disse, não existe. Todas essas informações fundamentais que estão ausentes poderiam perfeitamente não aparecer no filme se ele assumisse uma configuração de thriller, aventura, romance. Mas a escolha ficou dúbia, em muitos momentos parece que a intenção era fazer um documentário. Nesse caso, a falta de menção a tudo que está dito acima e a aceitação sem questões da versão oficial são, de fato, graves. Poderíamos alegar que o filme mistura, ou funde, a ficção e o documental, mas num tema tão repleto de polêmicas, o resultado é apenas ficar no meio do caminho.

Mesmo assim, estranhezas à parte, reafirmo que Der Baader Meinhof Komplex faz parte da lista de filmes que precisamos ver, para adquirir um pouco de perspectiva sobre a história recente. Mas, como este texto já está extenso muito além da conta, deixo para o próximo as considerações que o filme me causou.

(Enquanto isso, mudo bruscamente o assunto para deixar meus votos de um feliz natal!)

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A mais monstruosa das guerras

Há noventa anos, hoje, terminou a mais monstruosa das guerras.

Depois de todas as atrocidades cometidas sob o jugo ensandecido de Hitler, poderia parecer que a Segunda Guerra Mundial mereceria esse título, mas não. O que os nazistas fizeram de monstruoso enquanto tiveram o poder na Alemanha foi, de certa forma, paralelo ao conflito: campos de concentração e extermínio, perseguição a minorias, o reino do terror no país em que outrora caminharam e escreveram Kant e Leibniz. Na Ásia, mesma coisa: os grandes crimes das forças imperiais do Japão na China e na Coréia foram cometidos contra populações civis, quando os combates propriamente ditos já haviam sido ganhos. Uma covardia ainda maior do que qualquer embate militar. A guerra em si, porém, tolheu a vida do melhor da juventude de diversos países, arrasou cidades inteiras e desestruturou famílias e povos. Episódios hediondos houve, claro, como o bombardeio de Dresden e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo assim, insisto em dizer que a Primeira Grande Guerra foi mais monstruosa.

Todo o rancor que atirou o mundo no segundo e mais abjeto conflito teve seu início nas trincheiras de 14-18, ou melhor, nos gabinetes de Paris, Berlim, Londres, Viena etc., onde grandes dignitários decidiam que os homens de seus países deveriam mofar nesses buracos infectos cavados na terra. Foi o primeiro conflito em que o inimigo, de ambos os lados, foi demonizado pela propaganda de massa ainda um tanto incipiente. Os cartazes, as emissões de rádio, os folhetos que se distribuíam nos países envolvidos criaram, pela primeira vez, uma sensação confusa de aversão generalizada aos demais povos, um nacionalismo negativo cujas conseqüências foram sentidas na carne pelas duas gerações seguintes.

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O primeiro bombardeio aéreo surgiu em 1914, com zepelins alemães atacando a até então neutra Bélgica. Morreram nove civis, os primeiros de milhões que seriam massacrados por bombas e mísseis atirados de aviões e lançadores distantes. Nove corpos estraçalhados sem que os algozes nem sequer vissem o resultado de sua ação. O uso irrestrito da metralhadora, o tanque de guerra, a granada de mão, o gás de mostarda, os genocídios e as máscaras assustadoras que o acompanham são o legado mais evidente do confronto, que terminou com 40 milhões de pessoas a menos neste mundo.

Mas nem mesmo essas invenções abjetas são o resultado mais importante do terremoto de 14-18. Com a mesma força das infecções que ratos e esgotos da trincheira transmitiam aos soldados, era corroída a estrutura do militarismo aristocrático, algo romântico, em que a guerra manifestava a grandeza secular dos povos e dos reis. Os limites da corrida colonialista também foram escancarados pelas escaramuças que tiveram lugar em três continentes ao mesmo tempo. Quatro monarquias milenares desapareceram: os Romanov, os Habsburg, os Hohenzollern, os Otomanos. Com elas, o mito da guerra nobre, que levara Otto von Bismarck a receber em sua tenda o derrotado e capturado Napoleão III em 1870, foi enterrado por Georges Clemenceau e outros líderes mais modernos e pragmáticos: a partir de 1918, uma derrota deixou de ser apenas uma derrota. Teria de ser uma humilhação.

Foi uma guerra que teve um estranho começo: o sistema de alianças e tratados era tão intrincado que ninguém sabia de que lado um país entraria. Todos os envolvidos tinham planos para uma vitória relâmpago, como o alemão Schlieffen, o francês XVII e o russo 19. Todos falharam: as técnicas defensivas eram muito mais desenvolvidas que as ofensivas, qualquer tentativa de avançar era um suicídio, os exércitos de ambos os lados logo aprenderam a cavar a terra e esperar os acontecimentos. Isso, no front ocidental. Na Rússia, a administração czarista era tão incompetente para alimentar seus soldados que Lênin e Trotski fizeram a revolução.

E a guerra teve também um estranho final: a forma como se deu a rendição do império alemão, já convertido em república, apesar de não haver um único soldado estrangeiro em seu território. Esse curioso fato é fundamental para entender o horror que a Europa e, por extensão, o mundo viveriam vinte anos mais tarde. A capitulação da Alemanha, claramente derrotada, mas não aniquilada, foi o último ato de guerra que se possa considerar militarmente normal. Mas demonstra a falta de compreensão do que tinha se tornado o mundo.

Quando os americanos entraram no conflito, ao lado dos aliados, tanto a França quanto a Alemanha estavam à beira do esgotamento, do colapso e da revolução comunista que já tinha varrido a Rússia. O que os alemães, ainda muito apegados à idéia de aristocracia, nobreza e sacralidade militar, não tinham entendido é que a guerra massiva, industrial e monopolista não deixava mais lugar aos tratados de paz do século anterior. A França, ao contrário, compreendeu perfeitamente. Governados por Georges Clemenceau e comandados pelo marechal Foch, os franceses inventaram um conceito, mais um, que se tornaria um símbolo da insanidade bélica no confronto seguinte, na aplicação de Hitler: a “guerra total”. Morreremos de fome, esgotaremos nossos recursos, deixaremos de ser uma grande potência, mas não perderemos esta guerra.

A guerra total foi uma decorrência lógica de um mundo de produtividade absoluta, lucratividade extrema e formação de monopólios e cartéis. As democracias ocidentais sabiam disso, porque viviam mais intensamente o capitalismo à la Rockefeller, enquanto as potências centrais, sobretudo a Áustria, ainda pensavam como grandes impérios aristocráticos que eram. Mesmo a Alemanha, cuja produção industrial já superava em muito a britânica, não captou os novos ventos. Perdeu por isso, o que lhe custou uma humilhação desnecessária e a ascensão do regime de terror mais intenso que o mundo já viu. (Atenção: “mais intenso” é diferente de “maior”.)

A monstruosidade da Primeira Guerra Mundial pagou seu preço na Segunda: foi uma paga de mais monstruosidade ainda. O rancor francês de 1870 foi transferido para a Alemanha. A guerra total foi levada às últimas conseqüências por Hitler. Mais algumas dezenas de milhões de vidas foram apagadas do mapa. Nos anos 30, a dita comunidade internacional foi incapaz de deter os avanços dos nazistas sobre os territórios vizinhos pelo simples motivo de que, freqüentemente, acreditava-se que eles tinham razão em reclamar reparações pelas injustiças impostas no tratado de Versalhes (de 1919) por uma França amedrontada com o poderio do vizinho, embora derrotado. Tamanhos eram o rancor e o ódio, que o famoso e maldito ditador alemão exigiu assinar a rendição da França, em 1940, no mesmo vagão do mesmo trem, no mesmo ponto da mesma linha férrea em que foi assinado o armistício de 1918, em Compiègne. Depois, o vagão foi levado para a Alemanha e queimado. Hoje, há um museu na pequena cidade da Champagne com uma réplica exata do tal vagão.

Nicolas Sarkozy anunciou que as celebrações pela vitória de 1918, este ano, vão abandonar o cretino tom triunfalista e se concentrar mais na memória das vítimas da estupidez humana. Mortos, mutilados, órfãos, miseráveis. A biblioteca de Leuven, com 230 mil volumes, destruída pelos alemães. Os armênios, que a Turquia tentou varrer do mapa. Os australianos e neozelandeses enviados pelo comando militar britânico para o suicídio no estreito de Dardanelos, na Turquia. Tudo isso, naquela que deveria ser “a guerra para acabar com todas as guerras”.

Sarko tem razão. Não há vitória nenhuma quando 40 milhões de pessoas morrem e um continente é transformado em barril de pólvora, tão perigoso que, ao estourar após menos de 30 anos, mais 60 milhões de almas seriam aniquiladas. Ao lembrar de uma guerra como essa, devemos ter em mente o quanto a humanidade pode ser atroz e monstruosa, mesmo quando se considera no ápice da civilização, como acreditavam os europeus da belle époque.

PS1: Sobre o fim da cordialidade militar, da era vitoriana e do respeito ao inimigo, recomendo este antigo texto do blog de Rafael Galvão.

PS2: A referência mais imprescindível para entender como foi monstruosa a Primeira Guerra, em que os soldados eram tratados como meros pedaços de carne pelos comandantes, é evidentemente Paths of Glory (Glória feita de sangue), de Stanley Kubrick.

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What if…

Eu tentava há dias formatar na cabeça um texto sobre aquilo que chamo de “o paradoxo europeu”, se me permitem sair batizando problemáticas. Mas, como sabe quem leu a postagem anterior, minha cabeça não se encontrava no estado mais propício para formatar o que quer que fosse. Além do mais, um tema com nome tão pomposo quanto “o paradoxo europeu” exige um texto à altura, rigorosamente argumentado, cheio de sutileza e argúcia, palavras difíceis, o escambau. Mas, se é para colocar em poucas palavras, posso dizer o seguinte:

Quando vim morar na França, tinha uma idéia que, se não chegava a convicção, parecia fazer muito sentido. Acreditava eu que, depois de tanto sangue e tantos crimes, tantos traumas, tantas guerras, o continente europeu, obrigado a encarar a decadência e o crescimento político e econômico de suas antigas colônias, teria aprendido a tornar-se cosmopolita, tolerante, definitivamente civilizado. Antes que me tomem por um pobre ingênuo, aviso que essa forma de ver não estava tão equivocada assim.

Os europeus têm uma tendência ligeira mas perceptivelmente menor do que nós, americanos (falo do continente, por favor) para entrar em farras e modismos como foi, por exemplo, o falecido Consenso de Washington. Antes de cometer suas enormes besteiras, eles debatem muito, se questionam à exaustão, entojam uns aos outros com conceitos e teorias adquiridos por meio de leituras exaustivas dos autores mais qualificados e presunçosos. Os europeus, apesar de ainda se considerarem o centro do mundo (atire a primeira pedra…), se interessam pelas culturas mais distantes, não raro se apaixonam por uma culinária, língua ou dança muito exótica (para eles; e no meio dessa salada está a nossa). Verdade seja dita, o europeu médio, e em particular o francês, toma esse interesse (muito simpático, por sinal) como um selo de autoridade para definir, em poucas palavras, o que é ou deixa de ser tal ou tal país. Infelizmente, porém, eles não aceitam ser desmentidos nem mesmo por alguém que nasceu e cresceu no lugar em questão. Mas, nesses momentos, o melhor a fazer é contar até dez e mudar de assunto.

Mas é claro que não seria esse elogio mitigado que inspiraria o texto que eu ruminava na semana passada. Não sou de distribuir elogios gratuitamente. A triste realidade é que há tempos ficou claro que o aprendizado desse povo teimoso ficou muito aquém do necessário. O holocausto mal conseguiu abafar um antisemitismo renitente, que transparece em pequenas frestas dos discursos de todos e na quase indiferença com que se tratam os repetidos ataques a sepulturas judaicas, entre outras pequenas barbaridades. A flutuação interminável das fronteiras, o muro que rasgou Berlim, a Cortina de Ferro que, pela enésima vez, cindiu radicalmente o continente, nada disso serviu para que as populações abraçassem com honestidade a idéia de uma União Européia digna do nome. E mal adianta explicar que países pequenos como os europeus tendem à irrelevância, se continuarem se estranhando, num mundo altamente competitivo e de grandes blocos. Para encerrar, pergunte se alguém por aqui sente remorso pelos inúmeros genocídios cometidos por seus ancestrais em três continentes: a resposta será um ar se surpresa e algo como um “nunca pensei nisso”…

Até aqui, tratei no máximo de anedotário, curiosidades pitorescas, embora às vezes irritantes. O que há de verdadeiramente triste é constatar que o repertório de grandes tolices que os europeus têm para praticar ainda não está esgotado. Movimentos obscurantistas de bloqueio ao avanço da integração continental; a incrível volta do fascismo na Itália, patrocinada por ninguém menos do que Silvio Berlusconi, que dispensa apresentações, e implementada por pequenos governadores e prefeitos que culpam imigrantes e turistas pela notória e exagerada falta de educação dos italianos; o abandono de séculos de cultura e civilização, em nome de uma admiração cega e infantil pelo famoso american way of life, patente no estilo fashion victim de Sarkozy, talvez a figura mais medíocre e molenga da política mundial; a incapacidade, incrível numa terra tão cheia de sábios, de aparecer com respostas sensatas a problemas como a pirataria pela internet ou o afluxo interminável de imigrantes, o que resulta em medidas claramente antidemocráticas e discriminatórias. Se, no século XIX, EUA, Brasil e Argentina tivessem agido assim, os Europeus teriam comido uns aos outros, um enorme continente de Ugolinos. Eis meu “paradoxo europeu”. Esse, sim, é um aspecto que me surpreende profunda e negativamente numa terra com uma história tão conturbada quanto a européia.

Mas a cereja do bolo é aquele que me deu o ensejo de finalmente escrever este texto e, ainda por cima, inspirou a idéia do “E se…” do título. Jörg Haider, que morreu neste fim-de-semana ao enfiar seu carro num poste a 140 km/h, era provavelmente a figura mais preocupante de todas, ao menos para as consciências democráticas. Muito mais do que Jean-Marie Le Pen, que, com o perdão da falta de respeito, não passa de uma múmia gagá. Haider, ao contrário, tinha um carisma raro, parecia fisicamente (e se comparava a) Tony Blair, era jovem, conhecia os caminhos da política. Não gostava nada de imigrantes, considerava os europeus não-austríacos como rivais, admirava as Waffen SS e não considerava particularmente condenáveis as coisas que aconteceram em seu país entre 1938 e 1945 (chegou a chamar os campos de extermínio, como Auschwitz, de “campos de punição”…).

Muita gente o considerava uma espécie de novo “você sabe quem”; mas o compatriota mais famoso de Haider fez seu nome na cena política alemã numa época em que a injustiça do tratado de Versalhes, a hiperinflação e a Grande Depressão fizeram da terra de Goethe um país de gente ressentida e sedenta por vingança. Mesmo assim, cabe lembrar que o NSDAP não conseguiu mais de 35% dos votos limpamente. Para tornar-se partido majoritário, teve de incendiar o parlamento (Reichstag, um edifício lindo, por sinal) e jogar a culpa nos comunistas. Já Haider andava na casa dos 11% com sua Aliança para o Futuro da Áustria (nome que levanta desconfianças, não?), o que, somando os votos se seu antigo partido, também de extrema direita Partido da Liberdade da Áustria (antigo partido de Haider), dá aos obscurantistas e revisionistas algo como um quarto das cadeiras e um lugar na coalizão que governa. Trocando em miúdos, era uma força política cada vez maior, por incrível que pareça.

Mas eis que morreu Jörg Haider, aos 58 anos, figura mais emblemática do retrocesso europeu. É claro que o eleitor reacionário não vai mudar de posição, mas a perda de uma figura tão carismática é sempre um golpe duro. Andam dizendo que os dois partidos extremistas talvez consigam reatar, sem a figura acachapante de Haider, o que os tornaria, aí sim, de fato fortíssimos na cena nacional austríaca. A ver-se. Mas eu, de minha parte, lendo sobre o assunto, não consegui evitar a lembrança de uma mania tipicamente americana, que aliás é título (ou era, as coisas mudam tanto) de uma série de revistas em quadrinhos da Marvel: “What if…

Várias vezes, já me perguntei o que teria sido do mundo se, por exemplo, Marco Aurélio tivesse conquistado as terras ao norte do Danúbio. Se os portugueses não tivessem conseguido expulsar Villegagnon da Guanabara. Se os ingleses tivessem consolidado seu domínio na França, durante a Guerra dos 100 anos. Se Amaury Kruel não tivesse mudado de lado na última hora e 1964 marcasse não um golpe, mas o início de uma guerra civil. Se os alemães tivessem atacado para valer em Dunquerque e aniquilado o exército britânico. Se, e isso seria ainda mais engraçado, quando se escolheu a língua oficial dos EUA, em vez de dar inglês por um voto contra o alemão, fosse o contrário. E por aí vai.

Mas a questão mais terrível que se coloca é a seguinte: e se o jovem Adolf Hitler tivesse sido abatido quando era cabo do exército austríaco na Primeira Guerra Mundial? Se ele jamais pudesse escrever Mein Kampf, queimar livros e exterminar minorias? Não teria havido Segunda Guerra? Não teria existido a catarse suicida da Europa, bombardeios e carnificinas mútuos? O que teria sido a história do século XX sem Muro de Berlim, sem Comunidade Européia, sem Plano Marshall? Israel jamais teria sido fundado, provavelmente. Toda a reflexão, todo o sentimento de culpa, toda a vergonha pela colaboração com o nazismo, forte em todos os países que a Alemanha ocupou e mesmo em alguns que seguiram livres, nada disso teria acontecido. A maneira de pensar elitista e, sem dúvida, racista do século XIX, que até o holocausto nunca tivera necessidade de esconder o rosto, ganharia mais um bom meio século de hegemonia escancarada. Certamente, menos sangue teria sido derramado no período infernal do domínio de Hitler. Mas também cabe se perguntar quanto sangue a mais não teria sido derramado depois. E eis uma pergunta mais difícil, porém talvez mais importante: a bomba, não tendo estourado em 1939, demoraria quanto tempo a mais para estourar? E teria estourado mais forte, com armamento atômico já desenvolvido?

Ninguém sabe, é claro. Mas sabemos, isso sim, que hoje, no início do século XXI, uma outra bomba está armada. Desta vez, o crescimento das hostilidades é mais lento e mais disfarçado. O mundo é outro, mais global, mais competitivo, mais exausto por uma exploração predatória e irresponsável. Há mais gente para se sentir injustiçada, há mais gente para empobrecer com a crise. Mas a idéia de que haja inimigos espalhados pelo mundo inteiro está voltando à moda. Jörg Haider, a figura emblemática, na Europa, deste tipo de pensamento, acaba de morrer. Talvez os ânimos se acalmem um pouco por enquanto, ao menos na Áustria, na falta de um grande líder irresistível.

Mas e depois? E se (what if…) surgir um outro? E nem precisa ser aqui. Os Estados Unidos, que não têm a mesma história, nem a mesma cultura, nem os mesmos problemas, nem o mesmo “paradoxo” da Europa, estão loucos, mal se segurando nas calças, para entrar pelo mesmo caminho de sandices. E já que atravessamos o Atlântico, por que não estender as perguntas: e se Obama não for eleito? E se for eleito, mas não puder assumir? E se…

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Marlon Brando, o terrorista

Ventava forte naquela noite. Choveria ao final da sessão, senão antes. Mas, contra o clichê literário, ainda não estava escuro quando começou o filme. Os organizadores do festival adiantaram o início, temendo a tempestade inevitável. O cinema ao ar livre é uma delícia, mas está sujeito a emoções fortes também fora da tela, como bem sabe quem frequenta o evento anual do <em>Parc de la Villette</em>, cravado num dos bairros mais humildes de Paris.

A tela enorme ondulava a tal ponto que os <em>closes</em> e paisagens pareciam de sonho ou embriaguez. Tínhamos combinado com um grupo de amigos, mas quando nos sentamos sobre a grama, éramos só nós, o casal de guerreiros inquebrantáveis. Todos os demais tiveram medo da fúria dos céus, e com razão. No dia seguinte, algumas cidades da França foram desmontadas por um tornado. Ora… os covardes vivem mais, mas saboreiam menos a vida.

Nós, ao contrário, por amor ao cinema, nos enrolamos em cobertores e enfrentamos a tormenta. Pois os nomes pesavam mais do que as nuvens, era irresistível. Roteiro de John Steinbeck, ninguém menos. Marlon Brando e Anthony Quinn sob a direção de Elia Kazan, magníficos todos eles. Um grande clássico, quase uma chave inaugural da Guerra Fria: <em>Viva Zapata!</em>, de 1952. Com todos os tiros, belos cavalos e proselitismo velado em que o cinema americano é imbatível.

Marlon Brando, em seu estilo habitual, travestiu-se de seu personagem, para não precisar interpretá-lo. O astro, que esticou os olhos para virar japonês, pintou o cabelo para virar polonês e encheu a boca de algodão para virar italiano, vestiu organdi branco e sombrero, passou uma temporada na praia, fez-se de estrábico e se pôs a falar muito lentamente. <em>Voilà</em>! Um autêntico mexicano humilde, analfabeto, honrado e bigodudo. Zombaria à parte, o filme é um espetáculo. Anthony Quinn rouba a cena. Embora nos créditos seu nome ainda não apareça com destaque, já mostra por que foi um dos maiores atores do cinema no último século. As batalhas, os diálogos, tudo é belíssimo. E, se há incorreções históricas, se há um a pitada de doutrinamento, respondo que ao cinema tudo se perdoa. Era a Guerra Fria, cada fotograma tinha de estar a serviço da pátria.

Mas o melhor de tudo, na verdade, foi ver projetada na tela a ironia do tempo. Se fosse produzido hoje, <em>Viva Zapata!</em> seria considerado um atentado ao patriotismo. George Bush o condenaria como antiamericano, acabariam deportando Elia Kazan de volta para a Turquia, a Fox se recusaria a passar o material promocional. Marlon Brando, o mito fanhoso e fortão, teria seu retrato afixado em praça pública, procurado como perigoso terrorista. O grande sucesso, quem diria, transformado em enorme perigo pela correnteza das décadas.

Não há dois seres humanos mais distintos que o Zapata que morreu no México em 1919 e o Zapata que nasceu em Hollywood em 1952. Este último se espelhava metade em São Francisco de Assis, metade em Rambo. Descendia de uma família de renome, mas não sabia ler e não tinha um grão de terra que fosse seu. Desprezava as roupas elegantes e só queria um pouco de paz para os camponeses, seus vizinhos. Virou general por acaso, derrubou governos por sorte, teve uma rápida passagem pela presidência, mas renunciou, tomado de asco pelo universo do poder. Quando morreu, na emboscada, era cansaço de tanta luta, quase uma desculpa para depor as armas.

O Zapata do México era um pouquinho diferente. Tinha terras; era pouca, mas produzia. Adorava vestir-se com garbo, destoava pela elegância até exagerada nas festas, cultivava um bigode que devia lhe subtrair não pouco tempo da vida. É provável que soubesse ler, caso contrário teria sido em vão o esforço do amigo Ricardo Flores Magón em lhe apresentar livros anarquistas. Mas, ao contrário, deu resultado: Zapata se encantou pelo anarquismo a ponto de escrever um projeto de reforma agrária, o Plano Ayala, que influenciou o debate político mexicano por décadas. Por fim, se ele foi presidente do México, esqueceram de registrar e só contaram a Steinbeck.

Nem preciso dizer que o Zapata das telas é muito mais interessante. Fico imaginando os suspiros de nossas avós nos cines Serrador e Payssandu. O verdadeiro era muito humano, não chegou a general por acaso, tinha aspirações políticas e gosto de sangue, perdeu muitas batalhas e morreu porque se deixou enganar. Já Marlon Brando, quando mexicano, levava uma vida muito dura em nome de uma causa. Vivia escondido nas montanhas, arregimentava pobres camponeses ingênuos para sua luta, atacava comboios, preparava emboscadas, o escambau. Suprema ousadia, associou-se com comunistas e exilados para derrubar sucessivos presidentes de seu país. Alguns deles, até eleitos.

Não raro, dava um passo para fora de seu analfabetismo e discursava com as melhores técnicas da oratória. Conclamava cada homem a pegar em armas contra a iniquidade dos poderosos. Afirmou mais de uma vez que, se os oprimidos não se organizassem e lutassem, seriam humilhados até o fim dos tempos. Para ele, não havia governo e não havia lei que estivessem acima do sagrado direito do trabalhador à terra. Parecia que falava Jacobo Arenas ou Osama bin Laden, mas não. Era um astro americano, explicando ao público o poder do indivíduo contra a ameaça soviética.

Eis, porém, que nesse meio-tempo os vermelhos viraram poeira. Grupos armados que vivem nas montanhas, preparam emboscadas, atacam comboios, ameaçam governos e desconsideram leis fundiárias ganharam uma nova alcunha. Não são mais interpretados por galãs do naipe de Marlon Brando, levam no máximo alguns cascudos de James Bond, quando tentam destruir a civilização ocidental como antes faziam os vilões russos. A idéia de que as pessoas peguem em armas contra os poderosos se tornou perigosamente inconveniente, agora que no ringue do poder mundial só sobrou um lutador de pé.

O Zapata de Marlon Brando não era um general competente como o Zapata de Morelos: era um terrorista (pelos padrões contemporâneos) cujas vitórias se apoiavam tão somente em sua ideologia e sua sede de lutar. Hoje, mais de meio século depois de filmado, <em>Viva Zapata!</em> de Elia Kazan, mais do que um filme épico, é um documento histórico. Onde mais podemos ver a indústria de Hollywood aplaudindo efusivamente um grupo paramilitar, sabotador, proscrito, liderado por um anarquista violento, mal ajambrado e de pele morena (artificial, mas enfim)! Em tempos de Halliburton, o filme é uma oportunidade rara de ver os Estados Unidos prestando homenagem à iniciativa privada.

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