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O relato e a realidade

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Duas semanas atrás, quando escrevi sobre a Primeira Guerra, pelo menos três pessoas mencionaram o mesmo livro: Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque. Um dos poucos volumes que eu trouxe quando vim para a França, mas que aguardava com a maior paciência na estante, ainda sufocado no plástico, com etiqueta, preço e tudo. Jamais esperneou, talvez antevendo que o projeto de recuperar meu pobre alemão não iria muito longe, e a tradução brasileira não seria preterida em definitivo pelo original. De fato, sua espera foi recompensada: depois das vivas recomendações na caixa de comentários, o livro está sendo devorado, enquanto a versão alemã segue descansando numa livraria qualquer.

Pois bem, devo dizer que esta pequena obra, considerado o maior romance pacifista do último século, está arruinando minha vida. Como explicar? Poderia ser o estilo, mas… Acontece que o ex-soldado Remarque relata sua vida nas trincheiras de uma forma tal, que dignifica o próprio conceito de relato, enquanto cobre de vergonha a idéia de estilo, por assim se dizer.

Ora, o estilo é próprio das narrativas, encaixe habilidoso de passagens e sentenças, com o fito de produzir uma obra literária. O relato, por outro lado, prescinde do estilo, na medida em que não narra, mas conta, nem quer produzir obra alguma, mas gravar na atenção do ouvinte – desculpe, do leitor – uma reprodução tão perfeita quanto possível dos fatos que ficaram gravados na carne de quem relata. É isso, no fundo, o fato. Pelo meno saquele que pode ser transmitido por um relato: uma impressão forte, indelével, gravada na carne, muito mais do que na memória.

Pois é o que me dá quando estou lendo esse livro. Os fatos relatados por Remarque ficam gravados na minha atenção como se marcados a faca, e é na carne que os sinto. Eu poderia dizer que é culpa do realismo… mas que tolice a minha! Realismo é um estilo e o relato passa ao largo dessas coisas. Remarque falando da guerra que viveu é mil vezes mais marcante que qualquer realismo, mesmo o hiperbólico de um Zola, por exemplo. E isso não é demérito algum para o mestre francês. O gênio que lhe cabe é o da narração; nesse campo, seu lugar no Panthéon está garantido.

Narrados, os fatos que Remarque despeja no papel desapareceriam, soterrados pelo estilo. Seria uma obra e, como toda obra, poderia ser amada, criticada, resenhada e assim por diante. Não é o caso. Nada de Novo no Front não se presta a resenhas e questões de Vestibular. Na realidade, só pode ser ouvido – desculpe, lido. Só é romance na medida em que o narrador [sic] se chama Paul (Bäumer) e o autor se chama Erich Maria. No mais, é o puro perpetuar daquilo que não deveria ter sido esquecido, mas foi: que as manobras e treinamentos militares, as querelas da geopolítica, as glórias nacionais, aniquilarão o humano com a facilidade de um primeiro disparo.

Justamente por ser tão simples, quase frio, o relato de Remarque tem colocado em risco meu respeito por nosso gênero e meu interesse por todas essas questões fuleiras que discutimos todo dia, nos jornais, nas universidades, nos escritórios, hélas!, na internet. Foi por isso que eu disse que ele estava arruinando minha vida. Desculpe soar como Adorno, mas como posso estudar, trabalhar, escrever; como posso me preocupar com as obras críticas de Baudelaire e coisas do gênero, depois de um trecho como os que seguem? Peço que você os leia, mesmo que não tenha estômago para “esse tipo de coisa”:

À minha frente, abriu-se uma cratera; vejo-a confusamente. É raro cair mais de uma granada no mesmo buraco, e, por isso, procuro entrar nele. De um salto, atiro-me para dentro, achatado como um peixe fora d’água. Novamente, um sibilar faz-se ouvir; encolho-me depressa; procuro abrigar-me. Sinto alguma coisa à minha esquerda, aperto-me contra ela, a coisa cede. Gemo, a terra desfaz-se, apressão do ar troveja nos meus ouvidos, arrasto-me por baixo da massa que cede, puxo-a por cima de mim, é madeira e pano, um abrigo, um miserável abrigo contra os estilhaços que caem à minha volta.

Abro os olhos. Meus dedos seguram uma manga, um braço. Um ferido? Grito-lhe, nenhuma resposta… é um morto. Minha mão esquadrinha mais longe e encontra lascas de madeira. Lembro-me então de que estamos no cemitério.

Mas o fogo é mais forte do que tudo. Destrói a consciência; arrasto-me mais profundamente sob o caixão, ele deve proteger-me mesmo que a própria Morte esteja deitada nele.

À minha frente, abre-se uma cratera. Abarco-a com os olhos como se fosse com as mãos, preciso entrar nela de um só salto. Sinto algo no rosto, uma mão que agarra meu ombro… será que o morto ressuscitou? A mão me sacode, viro a cabeça e, na luz tênue, reconheço Katczinsky: tem a boca aberta e berra. Não escuto nada, ele me sacode, aproxima-se e, num momento de menos barulho, sua voz me alcança:

– Gás… Gáas… Gáaas! Avise aos outros!…

(…)

Com um estrondo, qualquer coisa escura cai a pouca distância de nós; é um caixão que fora atirado para o alto.

Vejo Kat mover-se na direção do objeto e rastejo até lá. O caixão caiu em cima do braço estendido do quarto homem da nossa cratera. Com a outra mão, tenta arrancar a máscara contra gás. Kropp agarra-o nesse momento, torce seu braço firmemente e o mantém assim.

Kat e eu começamos a tentar liberar o braço ferido. A tampa do caixão está solta e quebrada; é fácil arrancá-la; o morto, nós o retiramos: ele cai no chão como um saco. Depois, soltamos a parte inferior do caixão.

(…)

O bombardeio acabou. Volto na direção da cratera e faço sinal para os outros, que saem arrancando, também, as máscaras. Pegamos o ferido; um de nós segura o braço entalado. E, assim, afastamo-nos depressa aos tropeções.

O cemitério é um campo de ruínas. Caixões e cadáveres estão espalhados por toda parte. É como se tivessem sido mortos novamente, mas cada um dos que foram feitos em pedaços salvou a vida de um de nós.

Reconhecemos os rostos contraídos, os capacetes lisos: são franceses. Quando alcançam os restos das redes de arame farpado, já tiveram sensíveis perdas. Uma fileira completa foi abatida por nossas metralhadoras; depois, temos várias dificuldades com os tiros, e eles conseguem aproximar-se.

Vejo um que cai de pé num cavalo de frisa, o rosto voltado para cima. O corpo abate-se sobre si mesmo, como um saco, as mãos ficam juntas, como se quisesse rezar. Então, o tronco destaca-se inteiramente; apenas as mãos, decepadas pelos tiros da metralhadora, ficam penduradas, com uns farrapos de braços, no arame farpado.

(…)
Tornamo-nos animais selvagens. Não combatemos, defendemo-nos da destruição. Sabemos que não lançamos as granadas contra homens, mas contra a Morte, que nos persegue, com as mãos e capacetes. Pela primeira vez em três dias, conseguimos vê-la cara a cara; pela primeira vez em três dias, podemos nos defender contra ela. Uma raiva louca nos anima, não esperamos mais indefesos, impotentes, no cadafalso, mas podemos destruir e matar, para nos salvarmos… e para nos vingarmos. Escondemo-nos, abaixados atrás de cada canto, por trás de cada defesa de arame farpado, e, antes de corrermos, atiramos montes de granadas aos pés dos inimigos que avançam. O estampido das granadas de mão repercute poderosamente nos nossos braços e pernas. Corremos agachados como gatos, submersos por esta onda que nos arrasta, que nos torna cruéis, bandidos, assassinos, até demônios; esta onda que aumenta nossa força pelo medo, pela fúria e pela avidez de vida, que procura lutar apenas pela nossa salvação. Se seu próprio pai viesse com os do outro lado, você não hesitaria em atirar-lhe uma granada em pleno peito.

Quem há de dizer que esses trechos são escatológicos, se eles traduzem uma realidade pura, inquestionável? Quem há de argumentar que são apelativos, se o apelo que esses homens fariam seria, antes de qualquer coisa, para voltar ao convívio de suas famílias?

Esse relato atira por terra um dos ditos mais questionáveis que existem, aquele segundo o qual uma imagem vale por mil palavras. Pois sim… Afirmo que uma imagem é ela mesma e nada mais. Um punhado de palavras, curto que seja, ao contrário, multiplica ao infinito a possibilidade imagética do receptor. E tanto, que qualquer tentativa de reduzi-las a uma só imagem é obrigada, a fortiori, a mutilar profundamente o sentido e o poder da comunicação. A imagem é frustrante, auto-referente e muito pobre, se comparada à palavra – e olha que sou apaixonado por cinema.

Por sinal, a sétima arte e seus derivados, na tentativa desesperada de envolver e enredar seu espectador, tem se tornado cada vez mais explícita, mais frenética, mais barulhenta, mais ofuscante. Mas, mesmo se desorienta o senso de realidade do público, não adianta. O fato é que as imagens sangrentas, de gosto duvidoso, do cinema de hoje podem me causar desconforto, até medo, e me dar vontade de desviar os olhos ou mudar de canal.

Bah… Lendo o relato de Remarque, minha única preocupação é sair logo dessa maldita batalha, dessa trincheira infecta, dessa loucura interminável que não conhece artifício. Nada de Novo no Front é um dos únicos livros que jamais me fizeram estremecer, quero dizer, literalmente, fisicamente, como se as balas zunissem em volta dos meus ouvidos e eu fosse um garoto desamparado com um rifle na mão. Coisa assim nunca me aconteceu com filme algum.

Paro por aqui, embora muito ainda pudesse ser dito. Por exemplo, sobre como o livro deveria ser obrigatório nas escolas, tão obrigatório que as questões perguntassem por detalhes insignificantes, para garantir que cada um dos estudantes o leu e releu de cabo a rabo. Ou então, sobre como ele me ajudou a entender um pouco melhor por que os Partidos Comunistas foram tão fortes na Europa do pós-guerra – e, tudo bem, vai aí mais um trecho que não deixa dúvidas quanto ao que quero dizer:

Quando volto do quartel, uma voz forte me chama. Ainda perdido nos meus pensamentos, viro-me e me vejo diante de um major. Dirige-se a mim com rispidez:

– Não sabe bater continência?

– Queira desculpar, major – digo, confuso. – Não o tinha visto.

Grita mais alto ainda:

– Também não sabe falar como deve?

Gostaria de dar-lhe uma bofetada, mas controlo-me, pois, do contrário, lá se vai minha licença; eu me aprumo, na posição de sentido, bato os calcanhares, e digo:

– Não o vi, meu major.

– Então, faça o favor de prestar mais atenção – vocifera. – Como se chama?

Dou o meu nome.

Seu rosto vermelho, gordo, ainda mostra indignação.

– Qual é o regimento?

Respondo de acordo com o regulamento. Ainda não é o suficiente para ele.

– Onde se encontra a sua Companhia?

Mas, agora, não agüento mais e digo:

Entre Langemark e Bikschote.

– O quê? – pergunta perplexo.

Explico-lhe que cheguei há uma hora, de licença, e suponho que então ele vá me deixar em paz.

Mas eu me engano. Fica ainda mais furioso:

– Certamente acha que pode trazer para cá os maus costumes do front, não é? Pois está redondamente enganado. Graças a Deus, aqui domina a ordem! Vinte passos à retaguarda, marche – comanda.

Dentro de mim, ferve uma raiva surda.

Mas nada posso fazer, mandar-me-ia prender imediatamente, se quisesse. Então, recuo, avanço, e, seis metros à sua frente, contraio-me numa continência garbosa, que só relaxo quando me encontro a seis metros de distância.

Ele me chama novamente e, com benevolência, me explica que mais uma vez está colocando a piedade acima do regulamento. Mostro-me devidamente agradecido.

– Pode retirar-se – comanda.

Dou meia-volta e vou embora.

Foi o suficiente para estragar-me a noite. Apresso-me a ir para casa e jogo a farda a um canto; aliás, era o que já deveria ter feito.

Mas fica um último comentário sobre o título. No original, é Im Westen nichts neues, ou seja, Nada de Novo no Front Ocidental.Essas famosas trincheiras da Primeira Guerra ficavam justamente na França, “conhecida” pelo Estado-Maior prussiano como “frente ocidental”. Imagino que o tradutor brasileiro tenha riscado de nossa versão a menção a de qual frente se está falando porque não se pressupõe que o leitor brasileiro saiba que a Alemanha lutou a guerra em duas frentes, a Rússia contando como frente oriental. A propósito, como será o nome do livro em Portugal, onde os leitores têm, provavelmente, um conhecimento maior da situação alemã nessa guerra?

PS: Minha edição é da L&PM Pocket, Porto Alegre, 2004. Tradução de Helen Rumjaneck.

Padrão
crônica, descoberta, ironia, passado, prosa, reflexão, tempo, trabalho, transcendência

Anátema

Imagine esta circunstância sobrenatural: se aproxima de você uma entidade misteriosa, digamos, um anjo, e lhe estende umas folhas de papel. Você toma o volume e se põe a ler. Tem uma certa dificuldade em entender o que está escrito, mas aos poucos vai juntando os cacos para decifrar o documento. São as linhas gerais de uma personalidade. Meia dúzia de frases explicativas, um diagrama das leis que regem o sistema de convicções, uma tabela com o índice de respeito aos princípios, um gráfico com a taxa de desvio da norma (auto-imposta) e, ao final, o histórico das reorientações de conduta, organizado em tópicos.

Você chega ao termo da última página. Leu tudo, porque não quer ser desrespeitoso com um enviado dos céus, mas não entende por que lhe entregaram um relatório tão detalhado sobre a alma de algum desconhecido. Uma pessoa que, coitada, recebe impulsos e sofre influências de todos os lados, respeita mas critica tudo em que jamais acreditou, deseja o que despreza, desconhece o que quer, faz perguntas a si própria e se perde nelas, sem que a resposta ao menos seja de seu interesse. Um espírito que age segundo certezas perdidas no inconsciente, enquanto as idéias que profere mal tocam suas emoções, mas não entende por que continua comendo quando quer emagrecer, por que entra em brigas quando bebe, por que não consegue largar o emprego e partir para aquele safári na África.

Não que a mente dos outros seja desinteressante, mas, convenhamos, você pensa: quanta indiscrição!

Confuso, mas ainda em deferência ao ser de pura razão que tem à sua frente, você ousa lhe perguntar o que é aquilo. No tom mais suave que consegue, é claro. O anjo sorri, como sempre sorriem os anjos, a crer nos relatos, e responde: és tu, cabra. Impossível, você pensa. Mas emudece. O anjo repousa o sorriso, que não seria de bom tom sorrir tendo à frente um mortal perplexo. Confere se não há mais questões e, finda a missão, parte em silêncio. Os anjos, bem se sabe, dizem somente o necessário. Está no manual.

E você segue no mesmo lugar, sentado ao meio-fio, melhor lugar possível para se entregar ao exame de um material tão perturbador. Aquilo ali é o esclarecimento de todo o seu ser, trazido por um enviado de Deus, mas não tem jeito de você se reconhecer na papelada. Vem a aflição. Um aperto. Será verdade? É, ora, porque tem de ser. Mas como, cadê, nada ali parece bater, é um disparate. Talvez o tal anjo seja um gênio maligno, destacado para enganá-lo. Talvez seja um sonho. Aquele não é você, você que se conhece, você que vive à sua própria volta o dia inteiro. Nas linhas, aqui e ali, um ponto que coincide, nada de mais. Uma idéia do passado, mas que já foi. Manias difíceis de sufocar, mas superadas eventualmente. Pensamentos repetidos e vícios de linguagem que, no fundo, é verdade, você tem, pensando melhor.

Detalhes, detalhes, se desse para contar com eles, a vida seria impossível. E, no entanto, são eles que começam a se encaixar. E mesmo assim, é bastante aleatório. Uma coisa que virou outra, a metamorfose de uma crença, a fusão de um par de sonhos, o abandono involuntário de um trajeto. O que está aqui, na primeira página, bate bem com uma passagem da penúltima. Juntos, os dois trechos explicam um terceiro, perdido nas notas de rodapé. Uma frase que não tem sentido, ah, mas tem, é só reler em seguida a esta outra, que também parecia não dizer nada. Cáspite! Você não se conhece.

Nos anexos, trechos inteiros de pensamentos, desses em que você se perde durante as caminhadas no calçadão. Que escândalo: no mesmo dia, pior, na mesma manhã, você fez a descoberta da escalação ideal para o seu time. Mas são escalações diferentes, e você nem percebeu. Mas como nenhuma delas coincidiu com a do técnico, não houve problema em considerá-lo um incapaz, principalmente depois da derrota contra um time mais fraco. Consta também uma paixão fulminante pela responsável do atendimento, já esquecida, e um tanto improvável. Como se apaixonar por aquela mulher desprezível, sem graça, artificial, interesseira, carreirista e acima do peso? Só pode ser mentira. No entanto, está ali e ponto final. Como também está a vez em que você votou contra seu grupo, traidor, só de birra. E o episódio da doença fingida, para não passar por covarde diante de um lutador mais forte, mais treinado e, ainda por cima, desleal.

Raio de anjo! Por que essa tortura? Você azeda, se revolta, levanta de um salto, determinado a esquecer que tudo isso aconteceu, acordar do pesadelo, tocar sua vida. Que os deuses, seja lá quem forem, saibam que você é humano, é imperfeito, tem o direito de mudar e cometer deslizes, cair em contradição, mentir sem querer, ser honesto mas sucumbir a tentações. E que não venham lhe causar amargura e angústia de novo, à toa desse jeito! Dado o recado, você parte, batendo os pés. Mas, veja só, não rasga o documento, não atira no lixo o resumo de sua vida, não queima seu passado impresso. Leva-o na mão, enrolado como um diploma, até chegar em casa e se atirar no sofá.

* * *

Sei de pelo menos um psicólogo que vai ler este texto. E ele há de exclamar diante da tela: céus, o rapaz está fazendo uma auto-análise em público! E já que vou ser desmascarado de qualquer forma, então admito, não tem jeito, é mesmo algo assim. Pelo menos, tive o bom senso de esconder as idéias debaixo de uma alegoria, soterradas pela metáfora. Digo isso para provar que não pirei, nem andei experimentando substâncias pesadas antes do tempo.

Por outro lado, se não recebi a visita de anjo nenhum (ainda bem), recebi um comentário de um texto muito antigo, vindo de um desconhecido. Se não me entregaram uma folha de papel, mil perdões, é uma metáfora ordinária para a tela do computador. Se não estava escrita minha vida inteira, estava, sim, uma fração de um eu que deixei escapar, que ficou para trás enquanto eu tinha olhos, braços e pernas voltados só para novos eus desconhecidos. Ganhei deste lado, perdi daquele. Deixei de ser idêntico a mim mesmo.

Que importa, é o que acontece com todos. Muda-se tanto, que não dá mais nem para identificar um eu original com quem se poderia ser idêntico daí por diante. Mas é terrível ser confrontado com a encarnação de uma parte do próprio espírito (e é precisamente isso que um texto é). Outro estilo, outro tom, outro tema. Quase, poderíamos dizer, outro autor.

Daí advém toda sorte de questionamentos. Esquecemos os ganhos, damos atenção demais às perdas e nos deixamos asfixiar pela nostalgia de qualquer coisa de muito indefinida. A pergunta vem sem ser chamada: o que quero de mim, para mim, como mim, é aquilo ou é isto? Ou seria ainda uma terceira coisa? Por que não posso manter aquele ritmo, aquele estilo, aquela mente, e apenas enriquecê-la com esta?

Nada fácil ser fiel a si próprio! Em meus devaneios, desvio o foco para este blog. Relendo seu título, penso no que me motivou a batizá-lo assim. Foi há dois anos. Que nome teria o blog se fosse começado hoje? “Para ler sem olhar” é que não seria, pensei, numa tristeza inopinada. Tenho olhado tanto para aquilo que leio… Seria de um cinismo repulsivo renomear este espaço tal e qual. A leveza que me pautava, implodi-a. Quis ganhar musculatura, ganhei foi peso. Estrangulei o último lirismo que sobrevivia nesta prosa e deformei a tal ponto meus parágrafos que quem me conheceu naqueles tempos, hoje atravessaria sem um relance o meu caminho.

Maldito anjo desconhecido, que se meteu a exumar idéias que enterrei sei lá onde. Você me paralisou, roubou meu fôlego e meu apetite. Não posso nem desejar sua morte, seu imortal, mas posso me recusar a encarar as verdades que me trouxe. Se, pela marcha fatal da vida, me é vetado falar como me apetece, meu protesto será o silêncio embirrado.

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De dois plátanos

Platano
Bem no meio da região conhecida Batignolles, existiu até meados do século XIX um terreno largado, coberto de lixo deixado pelos fazendeiros do entorno, em suas idas e vindas para os mercados da capital. Não havia o menor motivo para prestar atenção no que houvesse sobre os tufos de grama anêmica. Eram objetos esquecidos, indesejados, pontilhando o espaço entre umas poucas árvores quase desfolhadas, tortas, irrelevantes.

Do dia para a noite, Batignolles se tornou um naco do 17o arrondissement de Paris, pelas ordens de Napoleão III (“o pequeno”, segundo Zola). Pequeno ou não, o sobrinho do diabo corso mandou transformar em parque aquela área perdida no meio de seu novo e estimado bairro burguês. Dando seguimento a uma folclórica fixação sua, quis algo no estilo inglês, em que os caminhos são curvos e a grama, impecável. Encarregou seu paisagista preferido, Jean-Charles Alphand, de canalizar a água e criar um córrego com pequenas cachoeiras e pontes, dando num lago artificial para os patos e cisnes negros que passariam a viver ali. Um canto para crianças, caminhos tortuosos, grama capinada e árvores substituídas, uma pequena estufa para uma única pequena árvore, trazida da Ásia e coberta de folhas até hoje. Alphand era um homem muito competente. A square Batignolles, século e meio depois, é um lugar delicioso para ver o tempo passar, pelo menos quando não faz muito frio.

De casa até lá, ando pouco mais de dez minutos. Um caminho que já percorri um sem-número de vezes. Sempre que precisei de sossego, inspiração, verde, rostos. É o lugar em que vivem os tais plátanos sobre os quais venho prometendo escrever desde o início do mês. São dois. Caules robustos e negros implantados com firmeza na terra, um ao lado do outro, seus galhos espalhados a uma distância desrespeitosa. Cobrem o lago inteiro, servem de pouso e guarda-sol para as aves, recortam a vista do céu como se quisessem nos lembrar de que a vida real está aqui, colada ao chão, e as copas das árvores mais vetustas são seu limite.

Até a última vez em que os vi, jamais tinha percebido que eram dois. Contemplava o emaranhado opulento de madeira escura e era só o que via: um emaranhado opulento de madeira escura. Desta vez, por acaso, e essas coisas só acontecem por acaso, vi-me parado diante de um dos troncos, que eu não conseguiria abraçar sozinho. Pude observar as ranhuras da casca, as reentrâncias na madeira, as cicatrizes do tempo, que acumula madeira em camadas, como uma vela que vai derretendo. Mas quanto tempo? Pensei que jamais saberia. Até que avistei, distraído, uma plaqueta verde pendurada, quase invisível. E descobri que se trata de uma árvore de 1860.

Aquele plátano silencioso mudou de figura no mesmo instante. Seu nascimento precedia de alguns anos o do próprio parque. Foi plantado pelo vento, não pelo homem, a quem só coube a sabedoria de não derrubá-lo e incluí-lo em seus cálculos. O lago recebeu seu formato tal como é simplesmente porque, com o tempo, uma bela árvore cresceria e abriria os galhos sobre ele, como asas de um cisne sobre os filhotes. Alphand subiu no meu conceito: além de paisagista competente, não comungava do maior vício de seu tempo, que era a fé doentia na razão e no planejamento humanos. Essa presunção estúpida, que derrubou monumentos e matas, teria levado qualquer engenheiro da época a impor ao lago o traçado de seu esquadro. Mas Alphand considerou que dali a 150 anos um plátano valeria mais do que uma piscina, e cedeu. Com toda razão.

E não foi a última conclusão que tirei do passeio. Mais uma meia-dúzia de passos e fui surpreendido com a informação de que não havia um plátano, mas dois, como eu já disse. Esse segundo tinha o caule ainda mais largo, escuro e áspero. Um grande buraco, à altura de meus olhos, banhava em breu o coração da árvore e revelava o heroísmo com que ela se mantinha de pé. Aquela imagem de força e decrepitude tinha a singular qualidade de ser ao mesmo tempo bela e sublime, se é que os guardiães da Estética me permitem falar assim.

Em seguida, procurei conferir a idade. A placa me deu mais informações do que eu precisava. Seus poucos numerais explicavam que já crescia a árvore antes mesmo de a região entrar para Paris. Os vendedores que atiravam seu lixo sobre a grama o faziam nas redondezas de um jovem plátano. Enquanto Haussmann botava a capital abaixo, folhas nasciam e caíam dos mesmos galhos, em obediência às leis da primavera e do outono, da mesma maneira como as vejo agora.

A regularidade do ciclo biológico não foi alterada nem com as barricadas de 1848, nem com os alemães desfilando pelas Champs-Élysées em 1870, nem com a violência da Comuna, no ano seguinte, nem com a chegada dos nazistas. Tudo isso nada significou para nenhum dos plátanos. Se a Sorbonne parou em 68 e em 2006 (mal comparando), os plátanos nem ficaram sabendo.

De repente, surpreendi meu pensamento nas palmeiras imperiais do Jardim Botânico, enfeitando os caminhos desde que éramos colônia. Quietas, belas, soberanas, enquanto tivemos golpes, ditaduras, escravos e reis, miséria e milagre. Lembrei de D. João VI e do hábito que temos de retratá-lo como glutão e ligeiramente retardado. Que seja, mas então são as palmeiras de um retardado que nos ligam com maior clareza a nosso passado, leia-se nossa história.

De lá para cá, derrubamos o morro do Castelo, abrimos a avenida Rio Branco, demolimos os prédios elegantes que lhe enfeitavam o entorno. Mudamos de capital, de regime, várias vezes de vocação econômica, ao sabor de caprichos nacionais. E as palmeiras balançando ao sabor de ventanias e chuvaradas. Neutras enquanto nossos pais e avós as contemplavam e deixavam de contemplar, elas acompanharam nossos nascimentos e mortes. Exatamente como esses dois plátanos que uma dúzia de crianças agitadas, dois passos à minha frente, tenta desenhar para um trabalho de escola. Plantados no mesmo lugar desde Napoleão III, até Sarkozy e sabe Deus quem mais.

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barbárie, Brasil, calor, crônica, descoberta, desespero, doença, férias, frança, ironia, passeio, prosa, tempo, verão, viagem

O mal que vem dos Trópicos

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Quase uma confusão terrível. Por pouco, não sou tomado por um risco à saúde pública. Do jeito que a turma anda neurótica por estas bandas, uma quarentena seguida de deportação não estaria inteiramente fora de questão. Durante alguns momentos, estive na berlinda, confundido com uma aberração doentia; lepra, micose, varíola, sei lá o que pensaram que eu tinha. Mas é profundamente desconfortável a sensação que dá quando as pessoas, no máximo de discrição de que são capazes, afastam suas cadeiras de você. O isolamento é doloroso, eu digo. E não passava, claro, de um pequeno mal-entendido.

Melhor começar pelo princípio, manda a prudência. Pois bem. Uma sala de aula ocupada por inteiro, três dezenas de pessoas espremidas em algo como 15 metros quadrados. Lá fora, a temperatura oscila entre frações de grau negativo e uns quebrados positivos. Dentro, a calefação automática exala seu ar pesado e mal-cheiroso, relegado à redundância pelas quase trinta respirações simultâneas. Alguém sugere abrir as janelas, mas os outros recusam. Medo do vento gelado e da chuva fina que às vezes cai.

O professor discorre sobre fenômenos, númens e coisas em si. É bom prestar atenção, para não perder o raciocínio. Difícil, com as alfinetadas do calor debaixo das três ou quatro camadas de roupa; entre a primeira e a pele, o suor se dissemina, desconfortável. Nada pior do que suar no inverno. Tentando não incomodar os demais, liberto-me do paletó opressor. Poucos minutos mais tarde, também parte o colete. É pena, mas tirar a camisa seria passar do limite. O máximo permitido é arregaçar – ou melhor, enrolar – as mangas. Eis o erro.

Área perigosa. Segunda fileira, posição central, bem diante dos olhos do professor. Enquanto transcrevo suas explicações intrincadas, ele lança um olhar involuntário para meu braço. Faz uma pausa, engole em seco, titubeia para voltar ao discurso. Mas é experiente e recupera o fio. À direita, um arrastar de cadeira. À esquerda, outro, um pouco mais violento. Buchichos; o mestre se irrita um pouco. Demoro a entender que a culpa é minha, mesmo quando dá a hora e todos se levantam.

Enquanto visto de volta as peças que arrancara em desespero, aproxima-se meu velho amigo Germain. Com a delicadeza que lhe é particular, tenta sorrir. Ofereço-lhe a mão para um cumprimento, mas ele, embaraçado, faz de conta que tem as suas ocupadas. Um ato desajeitado, que só fez sentido mais tarde. Tento não demonstrar que entendi. Germain, esforçando-se por não se aproximar demais, acompanha meus gestos com os olhos esbugalhados. Confesso-lhe minhas dificuldades com a aula. Ele não ouve; ao contrário, emenda uma questão envergonhada, em seu estilo pouco natural de falar, cheio de volteios literários e eufemismos estilísticos.

– Caro amigo, desculpe perguntar; quando você visitou seu país [ele sempre chama o Brasil de “meu país”], parece que cometeu uma pequena imprudência…

Nem preciso dizer que fiquei surpreso.

– Que imprudência, Germain?

– Estou certo de que existem avisos nas praias, para informar quando estiverem impróprias para o banho… Sua saudade era tão grande assim, a ponto de mergulhar em águas poluídas?

Só pude sorrir. Contei-lhe que não mergulhei em praia nenhuma. Nem própria, nem imprópria. Passei ao largo do fato de que os avisos aos banhistas só vêm pelos jornais e, mesmo assim, sem grande clareza. Expliquei que choveu o tempo inteiro nessas duas semanas, não deu praia, para meu desespero. Aliás, não me lembro que expressão usei para “dar praia”. Deve ter sido algo como “as condições não eram propícias”.

Germain alçou as sobrancelhas. Duvidava de mim. Sua incredulidade foi mais surpreendente do que ofensiva. Jamais ele havia colocado restrições a alguma declaração minha. Parecia absurdo que, de repente, ele resolvesse descrer assim. Percebi um movimento em seus lábios. De bem conhecê-lo, soube, desde o primeiro momento, que ele ruminava uma maneira de abordar o assunto incômodo sem causar ferimentos em minha sensibilidade.

– Desculpe, erro meu; pensei isso por causa da doença que te aflige…

Não há doença alguma que me aflija neste momento. Germain percebeu a interrogação desenhada entre meus olhos e se embaraçou. Gaguejou acintosamente e enrubesceu. Jamais eu o vira nesse estado. Quando, condoído, resolvi partir em seu socorro, ele se adiantou, inspirou profundamente e retomou o prumo. Delicadamente, admitiu a origem de sua idéia.

– Quando você enrolou a manga, pude ver o estado da pele… É terrível, quero que você saiba o quanto sou solidário!

Não foi de imediato que liguei os fatos. Quando o fiz, caí na risada. O professor, ainda na sala, me encarou, assustado, e escorregou para fora num instante. A expressão de Germain era toda enigma. Nas duas semanas em que estive no Brasil, de fato não deu praia; houve um único dia de sol. Nesse dia, eu estava nas montanhas. Sol de montanha, bem se sabe, é terrível. Fiquei vermelho, meus ombros ardiam, o peito do pé doía enormemente.

E como explicar para Germain que eu estava apenas descascando? Nem conheço a palavra francesa para “descascar”, nem, pelo visto, o sol da Côte d’Azur, do país basco e da Bretanha são capazes de fazer um banhista trocar de pele no dia seguinte. Tentei lhe explicar o princípio do descascamento: o sol bate, a gente esqueceu a loção 30, a pele vai escurecendo, às vezes fica vermelha, não passamos hidratante (bom, alguns passam…). Dá uns dias, a pele forma umas bolhas, pronto: descasca. Perfeitamente natural.

As sobrancelhas de meu amigo seguiam arqueadas; em sinal de dúvida, sim, mas sobretudo de asco. Esse papo de pele que descasca é coisa de bárbaros tropicais. As epidermes européias podem ficar encardidas, ásperas ou transparentes, mas, pelos céus!, jamais descascam. Nada disso ele formulou explicitamente, claro, mas pude ler por trás de seus olhos cinzentos. Era algo que ele preferia jamais ter aprendido. A esse ponto, eu já me divertia como uma criança; como uma criança, decidi torturá-lo.

Arregacei a manga novamente e anunciei: “vou te mostrar…” Germain é ágil, não me deu nem sequer o tempo de puxar a primeira pontinha de pele morta. Agradeceu, lembrou-se de algum compromisso e projetou-se porta afora, deixando-me de pé, sozinho na sala, brincando de descascar e rindo até cair no chão. Só consegui me controlar muito tempo depois, quando lembrei do professor: a essa hora, o sinistro filósofo poderia estar ao telefone, denunciando um aluno contaminado para o Ministério da Saúde.

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