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O relato e a realidade

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Duas semanas atrás, quando escrevi sobre a Primeira Guerra, pelo menos três pessoas mencionaram o mesmo livro: Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque. Um dos poucos volumes que eu trouxe quando vim para a França, mas que aguardava com a maior paciência na estante, ainda sufocado no plástico, com etiqueta, preço e tudo. Jamais esperneou, talvez antevendo que o projeto de recuperar meu pobre alemão não iria muito longe, e a tradução brasileira não seria preterida em definitivo pelo original. De fato, sua espera foi recompensada: depois das vivas recomendações na caixa de comentários, o livro está sendo devorado, enquanto a versão alemã segue descansando numa livraria qualquer.

Pois bem, devo dizer que esta pequena obra, considerado o maior romance pacifista do último século, está arruinando minha vida. Como explicar? Poderia ser o estilo, mas… Acontece que o ex-soldado Remarque relata sua vida nas trincheiras de uma forma tal, que dignifica o próprio conceito de relato, enquanto cobre de vergonha a idéia de estilo, por assim se dizer.

Ora, o estilo é próprio das narrativas, encaixe habilidoso de passagens e sentenças, com o fito de produzir uma obra literária. O relato, por outro lado, prescinde do estilo, na medida em que não narra, mas conta, nem quer produzir obra alguma, mas gravar na atenção do ouvinte – desculpe, do leitor – uma reprodução tão perfeita quanto possível dos fatos que ficaram gravados na carne de quem relata. É isso, no fundo, o fato. Pelo meno saquele que pode ser transmitido por um relato: uma impressão forte, indelével, gravada na carne, muito mais do que na memória.

Pois é o que me dá quando estou lendo esse livro. Os fatos relatados por Remarque ficam gravados na minha atenção como se marcados a faca, e é na carne que os sinto. Eu poderia dizer que é culpa do realismo… mas que tolice a minha! Realismo é um estilo e o relato passa ao largo dessas coisas. Remarque falando da guerra que viveu é mil vezes mais marcante que qualquer realismo, mesmo o hiperbólico de um Zola, por exemplo. E isso não é demérito algum para o mestre francês. O gênio que lhe cabe é o da narração; nesse campo, seu lugar no Panthéon está garantido.

Narrados, os fatos que Remarque despeja no papel desapareceriam, soterrados pelo estilo. Seria uma obra e, como toda obra, poderia ser amada, criticada, resenhada e assim por diante. Não é o caso. Nada de Novo no Front não se presta a resenhas e questões de Vestibular. Na realidade, só pode ser ouvido – desculpe, lido. Só é romance na medida em que o narrador [sic] se chama Paul (Bäumer) e o autor se chama Erich Maria. No mais, é o puro perpetuar daquilo que não deveria ter sido esquecido, mas foi: que as manobras e treinamentos militares, as querelas da geopolítica, as glórias nacionais, aniquilarão o humano com a facilidade de um primeiro disparo.

Justamente por ser tão simples, quase frio, o relato de Remarque tem colocado em risco meu respeito por nosso gênero e meu interesse por todas essas questões fuleiras que discutimos todo dia, nos jornais, nas universidades, nos escritórios, hélas!, na internet. Foi por isso que eu disse que ele estava arruinando minha vida. Desculpe soar como Adorno, mas como posso estudar, trabalhar, escrever; como posso me preocupar com as obras críticas de Baudelaire e coisas do gênero, depois de um trecho como os que seguem? Peço que você os leia, mesmo que não tenha estômago para “esse tipo de coisa”:

À minha frente, abriu-se uma cratera; vejo-a confusamente. É raro cair mais de uma granada no mesmo buraco, e, por isso, procuro entrar nele. De um salto, atiro-me para dentro, achatado como um peixe fora d’água. Novamente, um sibilar faz-se ouvir; encolho-me depressa; procuro abrigar-me. Sinto alguma coisa à minha esquerda, aperto-me contra ela, a coisa cede. Gemo, a terra desfaz-se, apressão do ar troveja nos meus ouvidos, arrasto-me por baixo da massa que cede, puxo-a por cima de mim, é madeira e pano, um abrigo, um miserável abrigo contra os estilhaços que caem à minha volta.

Abro os olhos. Meus dedos seguram uma manga, um braço. Um ferido? Grito-lhe, nenhuma resposta… é um morto. Minha mão esquadrinha mais longe e encontra lascas de madeira. Lembro-me então de que estamos no cemitério.

Mas o fogo é mais forte do que tudo. Destrói a consciência; arrasto-me mais profundamente sob o caixão, ele deve proteger-me mesmo que a própria Morte esteja deitada nele.

À minha frente, abre-se uma cratera. Abarco-a com os olhos como se fosse com as mãos, preciso entrar nela de um só salto. Sinto algo no rosto, uma mão que agarra meu ombro… será que o morto ressuscitou? A mão me sacode, viro a cabeça e, na luz tênue, reconheço Katczinsky: tem a boca aberta e berra. Não escuto nada, ele me sacode, aproxima-se e, num momento de menos barulho, sua voz me alcança:

– Gás… Gáas… Gáaas! Avise aos outros!…

(…)

Com um estrondo, qualquer coisa escura cai a pouca distância de nós; é um caixão que fora atirado para o alto.

Vejo Kat mover-se na direção do objeto e rastejo até lá. O caixão caiu em cima do braço estendido do quarto homem da nossa cratera. Com a outra mão, tenta arrancar a máscara contra gás. Kropp agarra-o nesse momento, torce seu braço firmemente e o mantém assim.

Kat e eu começamos a tentar liberar o braço ferido. A tampa do caixão está solta e quebrada; é fácil arrancá-la; o morto, nós o retiramos: ele cai no chão como um saco. Depois, soltamos a parte inferior do caixão.

(…)

O bombardeio acabou. Volto na direção da cratera e faço sinal para os outros, que saem arrancando, também, as máscaras. Pegamos o ferido; um de nós segura o braço entalado. E, assim, afastamo-nos depressa aos tropeções.

O cemitério é um campo de ruínas. Caixões e cadáveres estão espalhados por toda parte. É como se tivessem sido mortos novamente, mas cada um dos que foram feitos em pedaços salvou a vida de um de nós.

Reconhecemos os rostos contraídos, os capacetes lisos: são franceses. Quando alcançam os restos das redes de arame farpado, já tiveram sensíveis perdas. Uma fileira completa foi abatida por nossas metralhadoras; depois, temos várias dificuldades com os tiros, e eles conseguem aproximar-se.

Vejo um que cai de pé num cavalo de frisa, o rosto voltado para cima. O corpo abate-se sobre si mesmo, como um saco, as mãos ficam juntas, como se quisesse rezar. Então, o tronco destaca-se inteiramente; apenas as mãos, decepadas pelos tiros da metralhadora, ficam penduradas, com uns farrapos de braços, no arame farpado.

(…)
Tornamo-nos animais selvagens. Não combatemos, defendemo-nos da destruição. Sabemos que não lançamos as granadas contra homens, mas contra a Morte, que nos persegue, com as mãos e capacetes. Pela primeira vez em três dias, conseguimos vê-la cara a cara; pela primeira vez em três dias, podemos nos defender contra ela. Uma raiva louca nos anima, não esperamos mais indefesos, impotentes, no cadafalso, mas podemos destruir e matar, para nos salvarmos… e para nos vingarmos. Escondemo-nos, abaixados atrás de cada canto, por trás de cada defesa de arame farpado, e, antes de corrermos, atiramos montes de granadas aos pés dos inimigos que avançam. O estampido das granadas de mão repercute poderosamente nos nossos braços e pernas. Corremos agachados como gatos, submersos por esta onda que nos arrasta, que nos torna cruéis, bandidos, assassinos, até demônios; esta onda que aumenta nossa força pelo medo, pela fúria e pela avidez de vida, que procura lutar apenas pela nossa salvação. Se seu próprio pai viesse com os do outro lado, você não hesitaria em atirar-lhe uma granada em pleno peito.

Quem há de dizer que esses trechos são escatológicos, se eles traduzem uma realidade pura, inquestionável? Quem há de argumentar que são apelativos, se o apelo que esses homens fariam seria, antes de qualquer coisa, para voltar ao convívio de suas famílias?

Esse relato atira por terra um dos ditos mais questionáveis que existem, aquele segundo o qual uma imagem vale por mil palavras. Pois sim… Afirmo que uma imagem é ela mesma e nada mais. Um punhado de palavras, curto que seja, ao contrário, multiplica ao infinito a possibilidade imagética do receptor. E tanto, que qualquer tentativa de reduzi-las a uma só imagem é obrigada, a fortiori, a mutilar profundamente o sentido e o poder da comunicação. A imagem é frustrante, auto-referente e muito pobre, se comparada à palavra – e olha que sou apaixonado por cinema.

Por sinal, a sétima arte e seus derivados, na tentativa desesperada de envolver e enredar seu espectador, tem se tornado cada vez mais explícita, mais frenética, mais barulhenta, mais ofuscante. Mas, mesmo se desorienta o senso de realidade do público, não adianta. O fato é que as imagens sangrentas, de gosto duvidoso, do cinema de hoje podem me causar desconforto, até medo, e me dar vontade de desviar os olhos ou mudar de canal.

Bah… Lendo o relato de Remarque, minha única preocupação é sair logo dessa maldita batalha, dessa trincheira infecta, dessa loucura interminável que não conhece artifício. Nada de Novo no Front é um dos únicos livros que jamais me fizeram estremecer, quero dizer, literalmente, fisicamente, como se as balas zunissem em volta dos meus ouvidos e eu fosse um garoto desamparado com um rifle na mão. Coisa assim nunca me aconteceu com filme algum.

Paro por aqui, embora muito ainda pudesse ser dito. Por exemplo, sobre como o livro deveria ser obrigatório nas escolas, tão obrigatório que as questões perguntassem por detalhes insignificantes, para garantir que cada um dos estudantes o leu e releu de cabo a rabo. Ou então, sobre como ele me ajudou a entender um pouco melhor por que os Partidos Comunistas foram tão fortes na Europa do pós-guerra – e, tudo bem, vai aí mais um trecho que não deixa dúvidas quanto ao que quero dizer:

Quando volto do quartel, uma voz forte me chama. Ainda perdido nos meus pensamentos, viro-me e me vejo diante de um major. Dirige-se a mim com rispidez:

– Não sabe bater continência?

– Queira desculpar, major – digo, confuso. – Não o tinha visto.

Grita mais alto ainda:

– Também não sabe falar como deve?

Gostaria de dar-lhe uma bofetada, mas controlo-me, pois, do contrário, lá se vai minha licença; eu me aprumo, na posição de sentido, bato os calcanhares, e digo:

– Não o vi, meu major.

– Então, faça o favor de prestar mais atenção – vocifera. – Como se chama?

Dou o meu nome.

Seu rosto vermelho, gordo, ainda mostra indignação.

– Qual é o regimento?

Respondo de acordo com o regulamento. Ainda não é o suficiente para ele.

– Onde se encontra a sua Companhia?

Mas, agora, não agüento mais e digo:

Entre Langemark e Bikschote.

– O quê? – pergunta perplexo.

Explico-lhe que cheguei há uma hora, de licença, e suponho que então ele vá me deixar em paz.

Mas eu me engano. Fica ainda mais furioso:

– Certamente acha que pode trazer para cá os maus costumes do front, não é? Pois está redondamente enganado. Graças a Deus, aqui domina a ordem! Vinte passos à retaguarda, marche – comanda.

Dentro de mim, ferve uma raiva surda.

Mas nada posso fazer, mandar-me-ia prender imediatamente, se quisesse. Então, recuo, avanço, e, seis metros à sua frente, contraio-me numa continência garbosa, que só relaxo quando me encontro a seis metros de distância.

Ele me chama novamente e, com benevolência, me explica que mais uma vez está colocando a piedade acima do regulamento. Mostro-me devidamente agradecido.

– Pode retirar-se – comanda.

Dou meia-volta e vou embora.

Foi o suficiente para estragar-me a noite. Apresso-me a ir para casa e jogo a farda a um canto; aliás, era o que já deveria ter feito.

Mas fica um último comentário sobre o título. No original, é Im Westen nichts neues, ou seja, Nada de Novo no Front Ocidental.Essas famosas trincheiras da Primeira Guerra ficavam justamente na França, “conhecida” pelo Estado-Maior prussiano como “frente ocidental”. Imagino que o tradutor brasileiro tenha riscado de nossa versão a menção a de qual frente se está falando porque não se pressupõe que o leitor brasileiro saiba que a Alemanha lutou a guerra em duas frentes, a Rússia contando como frente oriental. A propósito, como será o nome do livro em Portugal, onde os leitores têm, provavelmente, um conhecimento maior da situação alemã nessa guerra?

PS: Minha edição é da L&PM Pocket, Porto Alegre, 2004. Tradução de Helen Rumjaneck.

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arte, barbárie, descoberta, desespero, deus, economia, escândalo, estados unidos, ironia, modernidade, obituário, opinião, passado, Politica, reflexão, religião, trabalho, transcendência

Litania para o capital

Fuçando nos arquivos mais recônditos deste HD, acabei encontrando a brincadeira que segue abaixo. Foi escrita quando eu estava na faculdade (e, aliás, este HD nem fabricado era), para provocar meus colegas corretores da Bovespa, que andavam um tanto nervosos, conseqüência de alguma dessas crises por aí.

Lembro-me particularmente de um desses meus amigos, a quem perguntei, por pura gaiatice, já sabendo a verdade, se a corda estava apertando demais o pescoço da empresa em que ele trabalhava. (A tal empresa foi absorvida por outra bem maior, poucos dias depois.)

Pois bem, a resposta do rapaz foi adorável: “Agora, só resta rezar.”

Passei o dia imaginando como rezariam os colegas do rapaz, logo antes da abertura dos negócios, à espera do retinir do sininho. Seria como uma grande celebração, engravatados de joelhos, mãos unidas, ar de introspecção. Aos poucos, vai se erguendo uma voz coletiva, um grande uníssono, para este que, em nosso século, tomou o lugar que já foi de Deus e outros deuses.

Enfim, segue abaixo um esboço do que clamariam os infelizes. Já vou avisando a Duncan Niederauer que cobrarei os direitos autorais se ele quiser adotar a nova oração nas cerimônias da NYSE.

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Litania para o capital

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Ó Vós, que permitis, divinamente,
A implosão de todo patrimônio!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que sois pai de todas as Bolsas,
idolatria de derivativos!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que distribuís as sementes
da fortuna e da fome, cegamente!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós que podeis prever o porvir
daqueles que abdicam de consumir!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Vós que negais os frutos do trabalho,
escutai as preces do investidor:

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  • Concedei-nos cobrir as perdas!
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arte, Brasil, cartola, crônica, descoberta, flores, imprensa, música, paris, reflexão, saudade

O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

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arte, Brasil, direita, esquerda, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Informação e ânimos exaltados

Todos+os+homens+do+presidente+capa
Muito interessantes, as reações que causou o último texto. Em primeiro lugar, nunca tive tantas visitas, o que é algo a comemorar; por outro lado, o fato de que uma boa parte dessas visitas tenha chegado através do webmail do Ministério Público Federal de vários Estados é bem preocupante. Em segundo lugar, meu comentário (que se queria frio) sobre a baixa qualidade da reportagem produzida no Brasil, com um breve sumário de algumas de suas possíveis razões, foi recebido quase como um manifesto revolucionário. Parece que tocar no nome da revista Veja suscita paixões intempestivas nas pessoas. O quadro é mais ou menos assim: de um lado, há os que sorvem aquelas páginas coalhadas de adjetivos depreciativos como se fosse o néctar do Olimpo. De outro, há toda uma multidão de ex-leitores que só esperam a oportunidade para empastelar o carro-chefe dos Civita.

Houve gente que, comentando minha análise, falou em derrubada de ditaduras, o que me pareceu um tanto fora do contexto, mas, enfim, ninguém é obrigado a ler os textos que comenta. Ao mesmo tempo, alguns leitores aproveitaram a oportunidade para descarregar, numa enxurrada de palavrões, toda a raiva contida contra a revista. Aliás, agradeço aos que tiveram a discrição de fazê-lo por e-mail, em vez de baixar o nível na minha caixa de comentários. Aos demais, lamento não ter podido aprovar suas intervenções, e peço que as reescrevam em tom menos agressivo. A propósito, também seria adequado se aqueles que se irritaram com o que lhes pareceu uma ofensa à sua revista preferida se abstivessem de cumprir a promessa de atentar contra a integridade física do ofensor. O tempo de preparar a vingança seria melhor empregado na releitura do texto, com a cabeça mais fria.

Curiosamente, os comentários sobre o próprio Nassif foram parcos. Sobre seu trabalho de reportagem, quase nulos. A maior parte preferiu desviar o foco para seu caráter: para uns, um semi-deus. Para outros, um sujeitinho anti-ético, como mostraram as acusações de Diogo Mainardi (explicaram-me, mais tarde, que as tais acusações são, na verdade, um parágrafo de uma coluna na própria Veja, em que Mainardi insinua, sem afirmar peremptoriamente, que Nassif teria, quem sabe, sido favorecido pelo governo). Cá entre nós, não tenho a menor idéia do padrão ético do jornalista; jamais colocaria a mão no fogo por ele. Achava suas crônicas da Folha, enviadas sempre com atraso, terrivelmente sem graça. Também sou da opinião de que alguém que conhece a música de Danilo Brito não pode apreciar a técnica de Nassif ao bandolim. Mas repito o conteúdo do último texto: o trabalho de reportagem que ele vem fazendo nas suas catilinárias anti-Veja é de primeira qualidade, e todo esse debate ganharia muito se o outro lado se propusesse a agir da mesma forma.

Certos comentários causaram reflexões que quero compartilhar. Antes de mais nada, preciso esclarecer um ponto fundamental. Um esperto homem de Marketing afirmará, sem dúvida, que os sentimentos suscitados por Veja depõem a seu favor. Mantêm a marca em evidência; são, no fundo, uma publicidade gratuita; podem até aumentar a circulação e fortalecem a posição do veículo como porta-voz das idéias de uma parcela da sociedade. Mas eu discordo inteiramente. Para mim, o irracionalismo que cerca a avaliação que o público tem de Veja é um indício de que ela não cumpre sua função como imprensa. Jornais e revistas não são feitos para serem amados e odiados. São feitos para serem respeitados e lidos. Sei que não é assim no Brasil, terra de Assis Chateaubriand, Mário Rodrigues e Carlos Lacerda, mas em sociedades minimamente organizadas, respeito e leitores não se conquistam com sentimentos animalescos como os que Veja suscita, e sim com credibilidade. Credibilidade, um conceito que deveria ser fundamental na imprensa, mas que vou deixar para discutir mais adiante.

Agora, prefiro comentar um pedaço do aparte de meu amigo Leonardo: a Veja, segundo ele, deixou de ser um veículo de informação para ser um veículo de opinião. No entendimento de Leo, pelo que me pareceu, há aí dois erros: deixar de ser um veículo de informação e passar a ser um veículo de opinião. Se for isso mesmo, discordo. Para mim, só há um erro nessa frase, que é deixar de informar. Ser um veículo de opinião não é crime nenhum. Todos os grandes jornais do mundo são fortemente opinativos e deixam suas opiniões bem claras. O melhor exemplo é o da revista britânica The Economist. Sua posição é bem simples: a favor do liberalismo econômico e fim de papo. A Fox News é uma rede de televisão francamente favorável ao governo Bush, e isso não foi problema algum até o momento em que ficou claro que ela manipulava informações para isso. O New York Times nunca escondeu sua preferência pelo Partido Democrata. O Última Hora, de Samuel Wainer (cuja autobiografia merece um texto à parte), jamais escondeu sua linha getulista. A Carta Capital, quando das eleições de 2002, colocou-se, em editorial, claramente favorável a Lula. Quem, na França, não sabe que o Le Figaro é o jornal da direita tradicional, o Le Monde, da direita moderna, também conhecida como centro, e o Libération, um jornal francamente de esquerda? Tem também o famoso La Croix, que jamais precisou esconder o fato patente de que pertence à Igreja Católica.

A opinião está longe de ser proibida aos veículos de imprensa; aliás, muito pelo contrário. Redação nenhuma é habitada por almas cândidas, incapazes de parcialidade. No entanto, o trotskista mais ferrenho não cometerá a sandice de afirmar que a The Economist só tem “mentiras”. Será tomado por louco varrido, mesmo entre seus colegas, se o fizer. Mesmo um leitor republicano, um verdadeiro neocon, poderá ler o NYT sem medo de encontrar inverdades publicadas ali por motivos políticos. Quando um jornalista foi flagrado inventando matérias no jornal, e o assunto nem era política, foi sumariamente demitido. Mas o mais importante é que a edição seguinte do jornal continha um enorme mea culpa. Por que esse ato de contrição tão reforçado? Porque a pior coisa que poderia acontecer ao jornal seria perder sua credibilidade.

E, pronto, eis-nos de novo nela. A tal credibilidade. O trotskista respeita a The Economist porque sabe que o jornalismo feito ali é sério, ele o vê nas matérias. Sabe quais são as fontes, sabe quais são os documentos, tem acesso à redação. O republicano respeita o NYT pelo mesmo motivo. Aqui na França, jamais escutei de alguém de direita a frase: “Ah, deu no Libé [ou no Nouvel Observateur, por outra]? Então é mentira, eles são de esquerda!” Nem ouvi a proposição inversa da boca de um esquerdista, dispensando algo que tenha saído no Figaro. É como se isso só existisse no Brasil.

Falando em Brasil, uma pergunta: que veículo em nosso país pode reclamar o título de credível? Penso, penso, penso, não encontro nenhum. A Veja está na berlinda por causa dos artigos de Nassif e por ser a revista de maior circulação. Mas, por exemplo, poderiam ser as Organizações Globo, condenadas pelo próprio passado. Tomando uma Veja entre as mãos, nunca sei se algo que esteja escrito ali é verdadeiro ou falso. Já houve casos em que a falsidade era evidente. Certa vez, topei com um diagrama que não citava, nem naquelas letras minúsculas que ninguém lê, qual foi o instituto que cedeu os dados. Se a incerteza pode chegar a esse ponto, como posso dar crédito a todo o resto? A dúvida paira sobre a totalidade do que está publicado na revista. O resultado é que mesmo os dados que eventualmente forem verdadeiros, e a grande maioria o é (pelo menos, espero que seja), recebem o selo amargo da desconfiança. É por isso que as pessoas de bom senso que conheço estão gradualmente abandonando a imprensa brasileira. É por isso que as empresas andam às voltas com problemas financeiros gravíssimos. É por isso que os melhores jornalistas migram para a internet em páginas pessoais. E seria muito pior, se o Brasil tivesse um público leitor que soubesse exigir credibilidade.

Para terminar, uma palavra sobre o conceito de “denúncia”. Quem acha que o jornalismo brasileiro, do qual Veja é um dos maiores expoentes, faz maravilhosas denúncias (sobretudo contra o governo) deveria buscar um livro chamado Todos os homens do presidente, de Bob Woodward e Carl Bernstein. Aos cultos, desculpe citar uma obviedade. Aos preguiçosos, não desanimem: há um filme homônimo, com Robert Redford e Dustin Hoffman. Eis ali um verdadeiro trabalho de reportagem investigativa que resultou, de fato, na derrubada de um presidente, graças à qualidade técnica com que foi realizada. Assim como acontece no Brasil, uma fonte interna deu a dica do caminho a seguir. Mas, ao contrário de nosso procedimento tupiniquim, em vez de botar a boca no trombone com o famoso “fontes ligadas ao palácio afirmam que…”, os dois americanos se enfiaram nos dados, nas conexões, nas entrevistas e nos telefonemas. Foram apoiados pelo editor-executivo, o célebre Ben Bradlee, apesar de todas as pressões que se podem imaginar. O que conseguiram, graças a um trabalho sério que mal conseguimos compreender no Brasil, foi mudar a história dos Estados Unidos. Sem precisar de piadinhas infames.

Paro por aqui, porque o texto está enorme. Espero ter deixado claro o que ficou obscuro no primeiro texto. Concordo com quem diz que a imprensa tem um papel de vigiar o poder, e acho impressionante como tanta gente esquece que existe uma maneira de fazer isso, e essa maneira se chama “jornalismo”. Não é de hoje que nossos veículos de comunicação deixaram para lá esse pequeno detalhe quando decidem bater no governo. Há muita gente que gostaria, por exemplo, de ver Lula sofrer um processo de impeachment, e se escandalizam porque os ataques da imprensa não conseguem derrubá-lo. Pois eu lanço aqui um balão de ensaio: certamente existem fatos e dados suficientes para justificar que o presidente seja afastado do cargo. Certamente esses fatos e dados estão acessíveis à imprensa. Concluindo: se a imprensa quiser, de fato, tirar Lula do poder, ela tem plena capacidade de fazê-lo. E lá vai a pergunta capital: por que os ataques ao presidente ficam só na retórica e não lançam mão de suas verdadeiras armas?

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Um repórter, finalmente!

%C3%A1rvores+no+inverno

Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

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